“O médico brasileiro não precisa de nenhum tutor, não. O médico brasileiro sabe tratar o paciente dele. Ele não precisa que jornalistas, políticos, defensores públicos, ninguém, nem entidades médicas, digam para ele o que fazer”, afirmou, em entrevista à Gazeta do Povo, o presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Ribeiro. Ele e a entidade que preside têm sido voz quase solitária na defesa de um dos pilares da profissão, a autonomia médica. Autonomia esta que está para sofrer mais um ataque desmedido, caso o Ministério Público de São Paulo consiga impor à Prevent Senior um Termo de Ajustamento de Conduta em que, na prática, os promotores tomam o lugar dos médicos na definição do tratamento para pacientes de Covid-19.
A empresa de saúde, que tem unidades próprias, vem sendo acusada de uma série de práticas, como obrigar os médicos da rede a empregar o dito “tratamento precoce” contra o coronavírus, ou usá-lo sem que os pacientes estejam cientes disso, além de omitir a Covid-19 em atestados de óbito para “inflar” estatísticas de sucesso no tratamento da doença. São acusações muito graves e que precisam ser apuradas com todo o rigor, com a devida responsabilização caso se comprove o uso de tais expedientes. No entanto, o TAC proposto pelo MP-SP lança o pêndulo para o outro extremo quando se refere à maneira como os pacientes de Covid deverão ser tratados na rede futuramente.
Membros do MP querem substituir os médicos no trabalho de determinar como cuidar dos pacientes, uma violação grotesca da autonomia médica
O primeiro item do TAC obriga a Prevent Senior a “não entregar, distribuir, enviar, promover, prescrever ou receitar, onerosa ou gratuitamente, a qualquer título, direta ou indiretamente, e por qualquer meio, inclusive pessoalmente, por via postal ou por transporte próprio ou terceirizado, o denominado ‘kit Covid’ aos seus pacientes, sejam esses sintomáticos, assintomáticos ou ainda testados ou não testados para a Covid-19”. E o “kit Covid” é definido como o “grupo de medicamentos considerados ineficazes para tratamento da Covid-19”, incluindo, “dentre outros medicamentos, cloroquina, hidroxicloroquina, flutamida, etarnecept, azitromicina, oseltamivir, ivermectina, nitazoxanida, colchicina, zinco, corticoides, vitaminas e anticoagulantes”.
Logo de início, há um erro conceitual grave, pois, como já lembramos recentemente neste espaço, há uma enorme diferença entre um tratamento ser “considerado ineficaz”, ou seja, estar plenamente estabelecido que ele não funciona, e ter “eficácia não comprovada”, ou seja, ainda não estar plenamente estabelecido que ele realmente ajuda a curar a Covid. Ribeiro enfrentou este tema em sua entrevista. “Se quiser discutir a eficácia da hidroxicloroquina e da ivermectina para o tratamento da Covid, essa discussão é legítima. Porque você tem de tudo na literatura. Tem estudos que mostram eficácia e estudos que não mostram. (...) Onde que está estabelecido na literatura, de forma limpa e cristalina, que a ivermectina não tem ação na Covid? Você tem de tudo. Há trabalhos seríssimos mostrando que não tem ação. E tem bons trabalhos também mostrando que tem ação”, afirmou, mostrando que o tratamento precoce se encaixa no segundo grupo, o de “eficácia não comprovada”.
Mais grave ainda, no entanto, é a pretensão dos procuradores do MP-SP em determinar como os médicos da Prevent Senior deverão tratar os pacientes com suspeita ou confirmação de Covid – ou, melhor dizendo, como deverão não tratar, pois o TAC proíbe a prescrição dos medicamentos do tratamento precoce, mas não oferece nenhuma outra alternativa. Em outras palavras, são membros do MP querendo substituir os médicos no trabalho de determinar como cuidar dos pacientes, uma violação grotesca da autonomia médica que Ribeiro, mesmo sem comentar especificamente o caso da Prevent Senior, também contesta. “Como que alguém, em sã consciência, pode questionar a autonomia do médico? (...) O médico tem de te tratar dentro daquilo que ele julgue que seja o melhor para você. Ele tem de ser autônomo para estabelecer o que é melhor no tratamento do paciente”, afirma.
“Nós estamos falando da Covid, uma doença que não tem dois anos. A ciência não deu resposta”, diz o presidente do CFM. E, se a outra opção disponível é simplesmente tratar sintomas e torcer para que a doença não se agrave, médico e paciente têm todo o direito de recorrer a tratamentos que julguem ser capazes de levar à cura. Ribeiro é bem claro quanto aos parâmetros em que isso deve ocorrer: o paciente precisa ter toda a informação, estar ciente de que o resultado positivo não é garantido, e a decisão precisa ser tomada em conjunto – afinal, trata-se do chamado “uso off-label”, em que um medicamento é usado para finalidade diferente daquela para a qual foi criado.
Se a outra opção disponível é simplesmente tratar sintomas e torcer para que a Covid não se agrave, médico e paciente têm todo o direito de recorrer a tratamentos que julguem ser capazes de levar à cura
A chave é a liberdade de médico e paciente. Pois a autonomia, como lembra Ribeiro, contempla todos os casos, inclusive o do médico que não confia no tratamento precoce. Se, por um lado, o presidente do CFM questiona: “Por que nós não respeitamos o médico que usa a droga e tem bons resultados com a droga?”, por outro ele recorda que também “existem pacientes que querem ser tratados com essas drogas reposicionadas, e o médico não acredita e fala: ‘Não vou te tratar com essa droga’. O nosso parecer dá respaldo para o médico tanto em uma ponta como na outra”. Esta liberdade é essencial para o bom exercício da medicina, aquele que tem em vista sempre o bem do paciente, e que muitas vezes exige decisões rápidas e difíceis por parte dos profissionais.
“Se nós não temos resposta, deixem o médico brasileiro em paz”, pede Ribeiro – um pedido que o MP-SP não parece disposto a ouvir, querendo assumir o papel dos médicos ao definir o que pode e o que não pode ser usado na tentativa de curar uma doença nova e para a qual ainda não há nenhum medicamento específico e de comprovada eficácia. Um órgão que tem por missão defender os interesses da sociedade acaba, assim, agindo contra esses interesses, violando direitos de pacientes e profissionais e, possivelmente, contribuindo para negar aos infectados pela Covid o mesmo direito à saúde que diz estar protegendo.
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