Um novo capítulo da história americana – e possivelmente mundial – começou nesta segunda-feira (20) com a posse do republicano Donald Trump como o 47º presidente dos Estados Unidos. Em seu primeiro discurso após ser empossado, acompanhado por dezenas de chefes de Estado, entre eles o argentino Javier Milei, e realizado na Rotunda do Capitólio devido ao frio intenso que atinge a capital Washington D.C., Trump esboçou as diretrizes que deverão guiar os próximos quatro anos do governo americano e suas relações com os demais países do globo.
Prometendo uma “era de ouro” logo no início de seu discurso e chamando o 20 de janeiro de “Dia da Libertação” dos cidadãos americanos, Trump propôs a reestruturação dos EUA e o início de uma “revolução do bom senso” – e é justamente de “bom senso” que os EUA e o mundo, envoltos em tantas visões de mundo nebulosas, mais precisam neste momento. Em meio a turbulências, é necessário, por vezes, dizer o óbvio, reafirmar verdades que tentam ser desacreditadas e apontar de forma firme um caminho a seguir: e foi isso o que Trump fez em seu primeiro discurso.
Já era tempo de os EUA resgatarem os valores que historicamente forjaram o país e o tornaram conhecido e admirado mundialmente, como a liberdade, o respeito ao Estado Democrático de Direito, a meritocracia e a busca pela excelência
O republicano reafirmou o compromisso em restabelecer uma nação “orgulhosa, próspera e livre”, onde “a balança da Justiça será reequilibrada” e que trabalhará para “trazer de volta a esperança, a prosperidade, a segurança e a paz para os cidadãos de todas as raças, religiões, cores e credos”, além de afirmar que sua administração será “inspirada por uma forte busca pela excelência e pelo sucesso incessante”. Trump também disse que seu maior legado será o de um pacificador e unificador, e lembrou o acordo de cessar-fogo entre Israel e o Hamas e a libertação de três reféns do grupo terrorista no último domingo.
Sobre a liberdade de expressão, Trump disse que implantará medidas para “acabar imediatamente com toda a censura governamental e trazer de volta a liberdade de expressão à América” e que nunca mais o poder do Estado americano será usado como arma “para perseguir oponentes políticos, algo sobre o qual sei alguma coisa”, além de prometer restaurar a “justiça justa, igual e imparcial no âmbito do Estado de Direito constitucional”. O novo presidente também ressaltou que o governo americano não adotará mais políticas de diversidade e inclusão, afirmando que a política oficial do governo dos Estados Unidos será a de reconhecer apenas dois gêneros, masculino e feminino, além de exaltar a necessidade de criar uma sociedade que não enxerga a cor da pele e seja baseada apenas no mérito.
São palavras, sem dúvida, auspiciosas. Já era tempo de os EUA resgatarem os valores que historicamente forjaram o país e o tornaram conhecido e admirado mundialmente, como a liberdade, o respeito ao Estado Democrático de Direito, a meritocracia e a busca pela excelência. O apreço à constitucionalidade e o reconhecimento de que não cabe ao Estado ser agente de censura ou repressão política, lição primordial frequentemente esquecida por governantes de todo o mundo, também são pontos a serem comemorados e que, quiçá, poderão servir de inspiração a outros líderes mundiais.
Trump também aproveitou para anunciar algumas medidas, incluindo as primeiras ações para o combate da imigração ilegal, um problema legítimo e que teve lugar de destaque na campanha eleitoral. Uma das primeiras ações será a ocupação da fronteira dos EUA com o México e o retorno da política “Fique no México”, onde os candidatos à imigração aguardam ao sul da fronteira pela permissão para entrar nos EUA, e não já dentro do país, como ocorria durante o governo de Joe Biden. Reafirmou também que fará a deportação de “milhões e milhões de estrangeiros criminosos aos locais de onde vieram”. Mesmo sendo legítimas, são medidas duras, que vão impactar milhares de famílias e que por isso precisarão ser aplicadas de forma equilibrada, norteadas acima de tudo pela legalidade, respeito à dignidade da vida humana e bom senso. Erros que já foram vistos no passado, como o de separar as crianças de suas famílias ou ações truculentas, precisam ser evitados. Outra medida anunciada, a tarifação de produtos estrangeiros, embora possa agradar num primeiro momento o setor produtivo norte-americano, pode se revelar um erro com o tempo. O protecionismo econômico, por vezes justificável de forma pontual e momentânea, não é uma receita de sucesso no longo prazo para a economia e prejudicará não apenas os norte-americanos, mas também países com os quais os EUA fazem negócios.
Mas de todo o discurso, o ponto que suscita mais preocupação foi a menção de Trump ao Canal do Panamá, importante ligação entre o Atlântico e o Pacífico, e a pretensão de expansão territorial dos EUA, embora não se saiba ainda qual o alcance exato dessas palavras. Queixando-se da taxação excessiva aos navios americanos que utilizam o canal, bem como da presença chinesa, Trump referiu-se à obra como um “presente” dos EUA que nunca deveria ter sido dado ao Panamá e que poderia ser “tomado de volta”. Ora, por mais que a insatisfação com a gestão e as taxas aplicadas aos navios americanos seja razoável, trata-se de uma demanda a ser resolvida por meio dos instrumentos legais e administrativos, jamais pela força. Por mais que, por enquanto, seja impossível saber o real alcance das palavras de Trump e suas intenções com declarações como essa, a simples menção à possibilidade de “tomar” uma área em território alheio é preocupante. Já falamos neste espaço sobre o quão perigoso seria uma eventual política expansionista norte-americana. Destituir o direito internacional substituindo-o pela força bruta, é inadmissível.
Um país que deseja se colocar como “pacificador”, um exemplo a ser admirado pelo mundo, é incompatível com o expansionismo territorial baseado na força. Se Trump for por esse caminho – e oxalá não seja esse seu intuito nem alcance real de suas palavras – e opte por fazer valer a lei do mais forte para colocar em prática suas propostas, estará traindo os próprios valores americanos. Mais do nunca, o mundo precisa de líderes verdadeiramente dotados de bom senso e que o apliquem tanto nos discursos quando na prática.