Uma reunião de cúpula que contou com a participação de quase 100 países entre sexta-feira e domingo, na cidade suíça de Bürgenstock, terminou com uma declaração que enumera os princípios básicos sobre os quais devem ser construídas as negociações de paz que ponham um fim à guerra na Ucrânia. Sem nenhuma exorbitância ou absurdo, dezenas de nações entraram em acordo sobre aquilo que, no fim das contas, já está previsto no Direito Internacional e sem o qual não se pode pretender nenhum tipo de avanço civilizacional. O Brasil, entretanto, escolheu mais uma vez o lado errado, o dos autocratas, dos ditadores e dos valentões.
A declaração faz um apelo pela “segurança nuclear”, tanto pela recusa do uso de armas nucleares por parte da Rússia quanto pelo cuidado com as instalações nucleares ucranianas, como a usina de Zaporizhzhia, atualmente em território dominado pelas forças russas. Pede, ainda, a garantia de livre navegação no Mar Negro, especialmente em relação ao transporte de alimentos. Faz um apelo para a libertação de prisioneiros de guerra e pela devolução das crianças ucranianas sequestradas e levadas ilegalmente para a Rússia. E, por fim, defende o respeito à integridade territorial ucraniana como condição prévia a qualquer negociação de paz.
Não contente em enviar uma “sub do sub do sub” à reunião de cúpula sobre a guerra na Ucrânia, o Brasil rebaixou-se ainda mais ao não assinar a declaração final
São demandas perfeitamente razoáveis, e nem é preciso raciocinar demais para perceber o perigo para todo o planeta representado por uma escalada nuclear, ou pelo desabastecimento súbito de grãos; também é bastante evidente que a deportação de crianças é crime de guerra; e que os territórios invadidos pertencem à Ucrânia, e não à Rússia, e não podem simplesmente ser tomados porque um ditador com maior poder de fogo assim o deseja. O ditador, aliás, já deixou claro que ao menos o último item é inegociável para ele. No mesmo dia em que começava a reunião de cúpula na Suíça, Vladimir Putin afirmou que só pretende iniciar conversações de paz se a Ucrânia se comprometer a não aderir à Otan e se entregar à Rússia todo o território das regiões ucranianas de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhzhia – inclusive as áreas que não estão sob domínio russo.
Isso nada mais seria que a legitimação da “paz dos valentões”, a aceitação explícita do uso da força em vez da diplomacia para resolver quaisquer controvérsias. Que diferença há entre a exigência de Putin e o vergonhoso Acordo de Munique, em setembro de 1938? Naquela ocasião, as potências europeias concordaram em pressionar a Tchecoslováquia a entregar a Hitler a região dos Sudetos, avalizando uma invasão que os alemães já haviam iniciado e dando ao nazista território tcheco que nem havia sido militarmente conquistado. “Paz para os nossos tempos”, celebrou o primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain, acreditando que a Alemanha encerraria ali suas ambições territoriais – o resto, como todos sabem, é história. História que Putin conhece bem, porque já a viu se repetir com a pusilanimidade ocidental diante da invasão e anexação ilegal, em 2014, de outro território ucraniano: a península da Crimeia.
E o Brasil, outrora respeitado internacionalmente pela sensatez de sua diplomacia, escolheu o lado dos valentões. O país participou da reunião na Suíça, mas deixou evidente seu desprezo pelo evento. Os Estados Unidos mandaram a vice-presidente Kamala Harris, e várias nações europeias enviaram seus chefes de Estado ou de governo – como o presidente francês, Emmanuel Macron; o chanceler alemão, Olaf Scholz; e os primeiros-ministros Rishi Sunak (Reino Unido), Giorgia Meloni (Itália) e Pedro Sánchez (Espanha). Presidentes sul-americanos também estiveram presidentes: o argentino Javier Milei, o equatoriano Daniel Noboa e esquerdistas como o chileno Gabriel Boric e o colombiano Gustavo Petro. Mesmo países mais alinhados à Rússia, como a Hungria, ao menos enviaram seus chanceleres. Mas o Brasil se contentou em mandar a embaixadora do país na Suíça. Isso apesar de Lula ter acabado de participar, como convidado, da reunião do G7 na Itália e de ter inclusive cumprido agenda na Suíça, em reunião da Organização Internacional do Trabalho. Teria sido simples ao brasileiro estar no encontro pela paz na Ucrânia – do qual participaram muitos dos que estiveram com ele no encontro do G7. Esnobar a cúpula foi uma escolha deliberada.
Não contente em enviar uma “sub do sub do sub” – para usar a expressão com que Lula, em 2002, se referiu ao então representante comercial dos Estados Unidos –, o Brasil rebaixou-se ainda mais ao não assinar a declaração final. Com isso, escolheu o lado da Rússia, de seus parceiros de Brics e das autocracias em geral, e abriu mão dos “princípios que nos uniram hoje como nações civilizadas”, como afirmou o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, em entrevista ao fim do encontro, referindo-se nominalmente a Brasil e China (que não enviou representantes à Suíça). Uma escolha de palavras certeira, pois não se trata de um antagonismo entre esquerda e direita – a declaração foi assinada por vários países governados pela esquerda, como Espanha, Canadá e Chile –, mas de escolher entre a civilização e o porrete, entre vítima e agressor.
A união das democracias ocidentais em torno da causa ucraniana, é verdade, não basta para encerrar o conflito – e talvez não baste nem para trazer Putin à mesa de negociação, já que a Rússia tem muitos aliados que ajudam o país a contornar as sanções ocidentais. Mas não há como aceitar uma repetição de Munique ou da Crimeia sem colocar o mundo todo em perigo. Expansionistas grandes e pequenos olham para a guerra na expectativa de descobrir se poderão ou não seguir os passos de Putin. De Taiwan ao Essequibo, os que vivem em territórios reivindicados se perguntam se serão os próximos a sofrer com uma invasão. Apoiar a Ucrânia é vital, e talvez poucas vezes na história tenha sido tão fácil escolher o lado certo – mas o Brasil de Lula jamais pode ser subestimado em sua capacidade de errar.
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