Nenhum jornalista, comentarista político ou marqueteiro disposto a mostrar ao mundo todo o acelerado processo de desmantelamento da democracia brasileira teria feito melhor que a Polícia Federal no último domingo, dia 25. Poucas horas antes da manifestação popular convocada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro na Avenida Paulista, agentes da PF retiveram o jornalista português Sérgio Tavares por algumas horas após seu desembarque no Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP), tomaram-lhe o passaporte e só o liberaram depois de um interrogatório não sobre possíveis crimes que ele tivesse cometido, mas sobre suas opiniões políticas. Ele viera ao Brasil para cobrir a manifestação em seu canal do YouTube, que tem algumas centenas de milhares de inscritos.
O absurdo foi, inclusive, admitido pela própria Polícia Federal em nota divulgada ainda no fim da manhã de domingo, mas não sem antes espalhar fake news. “Tal indivíduo [Tavares] teria publicado em suas redes sociais que viria ao país para fazer a cobertura fotográfica de um evento. Todavia, para isso, é necessário um visto de trabalho, o que ele não apresentou”, dizia a nota. Mas há um motivo bastante simples para o jornalista português não ter apresentado nenhum visto de trabalho: ele simplesmente não era necessário, como aliás afirma o site do Ministério das Relações Exteriores: “cidadãos da União Europeia que viajem ao Brasil para exercer atividade jornalística estão isentos de visto para estadas de até 90 dias, desde que a atividade não seja remunerada por fonte brasileira”. Na melhor das hipóteses, portanto, estamos diante de um desconhecimento grotesco das regras para entrada de profissionais de imprensa no Brasil; já na pior das hipóteses, a PF alegou um pretexto que sabia ser inexistente para conduzir um interrogatório de natureza totalmente política.
Democracia nenhuma no mundo que seja digna deste nome impede estrangeiros de entrar, a turismo ou trabalho, porque eles tenham alguma avaliação desmerecedora do país, de seu povo ou de suas autoridades
Afinal, a nota da PF segue dizendo que “o estrangeiro foi indagado sobre comentários que fez sobre a democracia no Brasil, afirmando que o país vive uma ‘ditadura do Judiciário’, além de outras afirmações na mesma linha, postadas em suas redes sociais” – segundo o relato de Tavares, as questões tratavam também sobre vacinas e sobre os ministros do STF Flávio Dino e Alexandre de Moraes, e o delegado lhe teria dito que recebera instruções de Brasília. Orientado por um advogado, o jornalista permaneceu em silêncio, até porque ele está bem ciente de que no Brasil de hoje há muitas coisas que não se pode mais dizer sem correr o risco de sofrer consequências indesejadas.
A nota é praticamente a admissão de uma detenção política, ainda que de curta duração. Afinal, não existe nada no ordenamento jurídico brasileiro que permita às autoridades migratórias se basear em convicções políticas para permitir ou negar a entrada de um estrangeiro que cumpra os requisitos formais para vir ao Brasil. A Lei de Migração (13.445/17) é bem explícita a esse respeito em seu artigo 45, que lista as situações em que um estrangeiro pode ser impedido de entrar no Brasil, nenhuma delas aplicável ao jornalista português (entrevistar Jair Bolsonaro, como Tavares fizera no início de fevereiro, ainda não é crime no Brasil); e, no parágrafo único, arremata: “ninguém será impedido de ingressar no país por motivo de raça, religião, nacionalidade, pertinência a grupo social ou opinião política”. De pouco adianta alegar que Tavares acabou liberado; o fato é que ele nem deveria ter sido questionado sobre os temas que a própria PF listou em sua nota.
Juntaram-se à vergonha as entidades representativas de jornalistas no Brasil, que permaneceram em silêncio enquanto um colega de profissão era vítima de interrogatório de natureza política. Uma das poucas vozes que se levantaram na crítica à PF foi a do jornalista Glenn Greenwald, que tem experiência praticamente em primeira mão do arbítrio de autoridades migratórias: em 2013, seu companheiro, o brasileiro David Miranda (falecido em 2023), foi barrado no aeroporto de Heathrow, em Londres, e teve seus equipamentos eletrônicos confiscados com base em uma lei antiterrorismo local. Miranda, obviamente, não era terrorista; seu “crime” era estar ligado ao jornalista que divulgara ao mundo documentos fornecidos por Edward Snowden e que revelavam o tamanho da rede de espionagem montada por norte-americanos e britânicos. À época, o governo brasileiro, comandado pela petista Dilma Rousseff, protestou veementemente, e com razão, contra a intimidação; hoje, o governo brasileiro, comandado pelo petista Lula, é quem promove a intimidação.
Democracia nenhuma no mundo que seja digna deste nome impede estrangeiros de entrar, a turismo ou trabalho, porque eles tenham alguma avaliação desmerecedora do país, de seu povo ou de suas autoridades; nem porque tenham determinadas opiniões sobre temas quaisquer, ainda que impopulares ou controversas. Que a PF agora sirva como polícia política, um equivalente tupiniquim de uma KGB ou uma Stasi, seja por iniciativa própria, seja por ordens superiores (venham de qualquer lado da Praça dos Três Poderes), só reforça o grau de arbítrio que está se impondo sobre o país.
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