Especialmente após a instauração do inquérito das fake news, aquele em que o Supremo Tribunal Federal assumiu o múltiplo papel de vítima, investigador, acusador e julgador, a sociedade brasileira tem percebido que a Constituição, a lei e os regimentos internos são detalhes que ministros da corte aprenderam a contornar e ignorar quando lhes é conveniente, sempre em nome de intenções consideradas nobres, como o combate às chamadas fake news, ou ao menos àquilo que os ministros consideram como tal. A Constituição proíbe a censura prévia, mas isso não impediu a censura da Crusoé. A Constituição garante a liberdade de expressão, mas ministros ameaçam banir aplicativos, ordenam a eliminação de perfis em mídias sociais e endossam quebras de sigilo de quem apresenta opiniões divergentes sobre temas que estão (ou deveriam estar) abertos ao debate. A Constituição protege a imunidade parlamentar, mas ela foi abolida (com a subserviência da Câmara, é preciso dizer) no caso do deputado Daniel Silveira, o protagonista de novo choque com a corte suprema.
E as recentes decisões do ministro relator Alexandre de Moraes (designado a dedo em 2019 pelo então presidente do STF Dias Toffoli, contornando o tradicional sorteio de relatorias) são nova demonstração de que um inquérito que nasce eivado de erros é quase impossível de consertar – a tendência é que os equívocos apenas se avolumem. No fim de março, Moraes considerou que Silveira havia desobedecido determinações judiciais e deveria voltar a usar uma tornozeleira eletrônica. O pedido da Procuradoria-Geral da República alegou três descumprimentos de determinações judiciais anteriores, pois Silveira se encontrou com outro investigado no inquérito das fake news, deu uma entrevista e criticou Moraes durante evento em Londrina (PR). Como Silveira se recusava a colocar de volta o dispositivo, chegando a passar noites nas dependências da Câmara dos Deputados, Moraes determinou multa diária e bloqueio das contas do parlamentar, que acabou cedendo.
Como as decisões do STF são tomadas dentro de uma moldura de funcionamento normal do Judiciário, o arbítrio, mesmo quando motivado pelas melhores intenções, acaba revestido de um verniz de legalidade; mas nem por isso deixa de ser arbítrio
Há uma série de aspectos que merecem crítica em todo o episódio. A proibição de conceder entrevistas, de imediato, já representa ataque claro à liberdade de expressão do parlamentar, como apontado por vários juristas ouvidos pela Gazeta do Povo. E será muito difícil encontrar algum crime real nas palavras do deputado durante o evento na cidade paranaense. Afirmar que falta “bússola moral” aos ministros, que Moraes está cometendo “inconstitucionalidades” e que o Judiciário está adotando “imposições” para uma “tomada de poder” é simplesmente exercer um direito de crítica que a Constituição garante a todo brasileiro, independentemente de haver ou não fundamento nas afirmações. Mesmo quando Silveira diz que “está ficando complicado aqui para o senhor [Moraes] continuar vivendo aqui, nem que seja juiz”, será preciso muito malabarismo hermenêutico para se enxergar ali uma ameaça concreta à vida ou à integridade física do relator.
Além disso, pode-se ainda questionar o recurso à tornozeleira eletrônica como medida cautelar imposta a membro do Congresso sem necessidade de autorização do Legislativo. Em 2017, em um caso envolvendo o então senador Aécio Neves, o Supremo decidiu que medidas cautelares que afetassem o exercício do mandato precisavam ser referendadas pela casa a que pertencesse o parlamentar, mas Moraes argumentou que o uso de tornozeleira eletrônica não se encaixava nesta situação. Por mais que já exista jurisprudência apoiando esta alegação, ela nos parece incorreta. Afinal, a tornozeleira deve monitorar se Silveira está cumprindo outra determinação, que limita sua circulação entre Brasília e Petrópolis (RJ), onde tem domicílio registrado. E esta limitação, sim, prejudica sua atividade parlamentar, impedindo-o, por exemplo, de integrar missões oficiais ou visitar outros locais onde sua presença seria importante. Seria preciso, portanto, que todas essas medidas fossem referendadas pela Câmara dos Deputados.
Mas é na forma usada por Moraes para levar Silveira a colocar a tornozeleira que está a mais recente inovação jurídica do relator. O Código de Processo Penal (CPP) não prevê multa ou bloqueio de bens – estas medidas são permitidas apenas na esfera cível, e em disputas entre particulares. Quando o tema foi levado ao plenário do Supremo, de forma virtual, apenas Nunes Marques e André Mendonça foram capazes de apontar este grave erro. A multa, afirmou Nunes Marques, “não tem qualquer arrimo no ordenamento jurídico pátrio e caracteriza-se de forma transversa em confisco dos bens do réu em processo penal por decisão monocrática e cautelar do relator em ação penal originária, sem o devido processo legal, claramente incompatível com a Constituição da República. Afinal, vivemos em uma democracia, onde o Estado de Direito vige, não sendo, portanto, admitida a imposição de qualquer medida privativa e/ou restritiva de direito não prevista no ordenamento jurídico legal e sobretudo constitucional” – o ministro ainda criticou a desproporcionalidade no valor cobrado, que em dois dias consumiria toda a renda mensal de um deputado, embora este nem seja o maior problema da medida.
Nunes Marques identificou corretamente o caminho jurídico usado por Moraes: já que tais medidas existem, mas no Código de Processo Civil, o relator resolvera aplicá-las por analogia ao processo penal para conseguir que Silveira cedesse. Este, no entanto, é um recurso que a boa doutrina jurídica não admite. Como o direito penal lida com a liberdade dos indivíduos, é ali que as garantias do réu se fazem ainda mais necessárias que nos outros ramos do direito. Não há possibilidade, portanto, de analogias ou aproximações: vale única e exclusivamente o que está na lei; “não há espaço para poder criativo por parte do Estado”, como afirmou em recente palestra on-line o juiz e professor Rodrigo Capez. “Ou você tem a legalidade estrita ou vai cair numa generalização de um poder geral da cautela, que é inadequado no processo penal, porque não tem um poder geral de punir”, alerta o professor Aury Lopes Jr., doutor em Direito Processual Penal, ouvido pela Gazeta do Povo. Mesmo assim, a medida foi referendada pela maioria dos ministros, em uma ironia que retrata muito bem o Supremo atual: a corte que age de forma tão “garantista”, ao sempre escolher uma interpretação possível da lei que acaba beneficiando bandidos e corruptos, contra outra interpretação igualmente possível e que penda para o lado do bem público, fechou os olhos às garantias reais existentes na lei e que protegem réus da vontade de juízes interessados em inventar crimes ou medidas que não estejam previstos no ordenamento jurídico.
E por que isso tem ocorrido de maneira tão acintosa nos últimos tempos? Como a Constituição e as demais leis se tornaram acessórios? Uma resposta tão certeira quanto simples é: os ministros agem dessa forma porque, cegos pela polarização política que domina o país e convictos de seu papel “iluminista” e “contramajoritário”, julgam poder (e, dependendo do caso, até dever) fazê-lo. Aqueles que o sistema de freios e contrapesos consagrou como os responsáveis por garantir que o Supremo não extrapole suas funções, os senadores, vêm se omitindo no seu papel de fiscais. E, como as decisões do STF são tomadas dentro de uma moldura de funcionamento normal do Judiciário, o arbítrio, mesmo quando motivado pelas melhores intenções, acaba revestido de um verniz de legalidade; mas nem por isso deixa de ser arbítrio.
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