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No fim de novembro, o Supremo Tribunal Federal encerrou um julgamento em plenário virtual que esclareceu detalhes sobre como deve ocorrer a cobrança da contribuição assistencial, um instrumento de financiamento dos sindicatos que pode constar em acordo ou convenção coletiva de trabalho, e que se aplica até mesmo aos trabalhadores não sindicalizados. Embora a decisão seja um avanço no sentido de coibir abusos que sindicatos vinham cometendo nos últimos anos, ela não passa de um simples prêmio de consolação, pois fica muito longe de resolver o verdadeiro problema, criado pelo próprio Supremo.
Em 2017, o STF havia considerado inconstitucional a cobrança da contribuição assistencial dos trabalhadores não sindicalizados, mas reverteu essa jurisprudência em 2023, alegando que o fim do imposto sindical, após a reforma trabalhista de 2017, havia reduzido drasticamente o caixa de sindicatos, federações e centrais sindicais. Muitas dessas entidades, então, passaram a usar uma série de artimanhas para conseguir tirar dinheiro dos trabalhadores não filiados: aprovar contribuições assistenciais em assembleias esvaziadas, estabelecer pagamentos retroativos referentes ao período entre 2017 e 2023, cobrar valores exorbitantes e, especialmente, dificultar ao máximo a opção de recusar a cobrança – por exemplo, exigindo textos redigidos de próprio punho, comparecimento presencial ao sindicato, ou determinando prazos extremamente curtos. Um mesmo sindicato, não contente em querer levar 12% de um salário dos não filiados em um determinado mês, ainda pedia R$ 150 dos que recusavam a cobrança.
A recente decisão do Supremo não muda o fato de que a corte simplesmente ignora o que está na lei – e, ainda por cima, o faz em prejuízo do trabalhador
Ao analisar os embargos de declaração interpostos pela Procuradoria-Geral da República contra a decisão de 2023, o STF pretendeu coibir esse vale-tudo sindical. Proibiu as cobranças retroativas e não impôs regras específicas, mas estabeleceu que os valores da contribuição assistencial precisam ser “razoáveis e compatíveis com a capacidade econômica da categoria” e que “os trabalhadores disponham de meios acessíveis e eficazes para formalizar sua oposição”, nas palavras do voto vencedor de Gilmar Mendes. Seria tudo muito razoável, a não ser por um detalhe nada desprezível: a Consolidação das Leis do Trabalho continua a ser frontalmente desrespeitada.
Embora a contribuição assistencial esteja prevista em lei, a forma de cobrança autorizada pelo STF em 2023 bate de frente com a legislação. A reforma trabalhista explicitou não apenas em um, mas em vários trechos, que qualquer cobrança precisa da “autorização prévia e expressa” do empregado – e autorização individual, não coletiva (ou seja, a aprovação em assembleia não basta); veja-se, por exemplo, os artigos 578, 579, 582, 583 e, especialmente, o 611-B, que declara inválida qualquer cláusula de acordo ou convenção coletiva que preveja “a supressão ou a redução dos seguintes direitos: (...) XXVI – (...) de não sofrer, sem sua expressa e prévia anuência, qualquer cobrança ou desconto salarial estabelecidos em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho” (destaque nosso).
Em outras palavras, na regra aprovada pelo legislador é o trabalhador não sindicalizado que toma a iniciativa de dizer ao sindicato (e ao empregador) que deseja contribuir; na regra instituída pelo STF, o sindicato impõe a cobrança e o trabalhador tem de se esforçar para comunicar sua oposição. São modelos diametralmente opostos, e a recente decisão do Supremo não muda o fato de que a corte simplesmente ignorou o que está na lei – e, ainda por cima, o fez em prejuízo do trabalhador. Durante o julgamento virtual, apenas André Mendonça defendeu a letra da lei, votando pela exigência de autorização expressa e individual para a cobrança da contribuição assistencial, mas ficou sozinho.
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Esta não é a única, e nem a principal distorção do sistema sindical brasileiro. Um dos argumentos do Supremo para validar uma contribuição assistencial imposta até mesmo aos não sindicalizados (ainda que com o direito à oposição) é o de que eles também se beneficiam quando o sindicato negocia reajustes e outros benefícios com as empresas, o que é verdade – a ciência política chama este fenômeno de “efeito carona”. No entanto, isso é assim porque a Constituição impõe a chamada “unicidade sindical”, no inciso II do artigo 8.º, ou seja, o trabalhador não pode escolher, entre dois ou mais sindicatos representativos da mesma categoria na mesma região geográfica, aquele que consegue melhores negociações ou oferece mais benefícios; sua única opção é filiar-se ao único sindicato existente, ou permanecer não filiado. Se trabalhadores tivessem liberdade de escolha, seria possível pensar em meios legais de eliminar o “efeito carona”.
Sindicatos são importantes em uma sociedade saudável; são instâncias intermediárias que representam o trabalhador, individualmente fragilizado, mas coletivamente forte. Sua existência é necessária. Mas a lógica pela qual eles merecem ser bancados por todos (no caso, todos os trabalhadores de determinada categoria profissional) somente pelo fato de existirem é equivocada, como também o é no caso dos partidos políticos, bancados pelo pagador de impostos brasileiro. Assim como um partido só deveria ser sustentado pelos filiados e por quem acredita em sua plataforma, e para isso precisaria mostrar que realmente representa a população e não os interesses dos seus caciques, um sindicato deve ser bancado pelos seus filiados – que serão mais numerosos à medida que a entidade mostrar serviço na defesa da categoria, em vez de se dedicar a outras atividades ou servir de satélites de interesses político-partidários.



