Aos poucos, vão sendo reveladas as entranhas do Estado policial instituído pelo Supremo Tribunal Federal, em que agora cidadãos são investigados e têm sigilos quebrados e recursos bloqueados por “crimes de opinião” e “crimes de cogitação”. E um personagem que não faz parte de nenhum órgão responsável por investigar ou punir brasileiros tem registrado presença frequente nesses bastidores. O senador Randolfe Rodrigues, do Amapá, e seu partido, a Rede, já eram notórios por buscar o Supremo para impor pela via judiciária o que a legenda não conseguia no Congresso, graças à sua ínfima representação. Agora, o parlamentar pretende também se tornar uma espécie de “procurador-geral da República informal”.
No caso da operação ordenada por Alexandre de Moraes contra oito empresários motivada pela divulgação de suas conversas privadas em um grupo de WhatsApp, a participação de Randolfe se deu pela solicitação de medidas cautelares que nem mesmo a Polícia Federal havia pedido. O delegado Fabio Shor, por mais surreais que fossem suas considerações a respeito da necessidade de uma investigação, havia se limitado a pedir a quebra de sigilo telemático dos oito empresários, como fica evidente ao fim da representação enviada a Moraes. Como afirma o relator logo na primeira página da decisão que autorizou a operação, foi o senador da Rede quem pediu quebras de sigilo bancário, bloqueio de contas e a prisão preventiva dos empresários, e só não foi atendido no último item.
Parlamentares que integram a Casa legislativa que deveria impor limites aos excessos do STF se juntam com gosto à perseguição movida pela corte
A informação de que os celulares apreendidos de alguns dos empresários tinham conversas com o procurador-geral da República, Augusto Aras, de imediato levanta suspeitas de que os empresários estejam sendo vítimas da “pescaria probatória”, um procedimento ilegal e abusivo no qual os órgãos de investigação realizam devassas para encontrar elementos incriminatórios de quaisquer gênero, mesmo que sem relação nenhuma com o inquérito formalmente instaurado. Isso não incomodou Randolfe, que, aliado a três colegas de Senado – Renan Calheiros (MDB-AL), Humberto Costa (PT-PE) e Fabiano Contarato (PT-ES) –, pediu a quebra do sigilo dessas conversas, chamadas por eles de “diálogos antidemocráticos” ainda que seu teor não tenha sido tornado público, a não ser que os parlamentares estejam considerando “antidemocrático” o mero fato de empresários conversarem com um procurador-geral.
Na manifestação em que a vice-procuradora-geral Lindôra Araújo defende a manutenção do sigilo, ela afirma que “a legislação processual penal (...) não contempla a legitimação de terceiros para intervir em petição criminal sigilosa em curso no Supremo Tribunal Federal” e que, “a prevalecer a argumentação dos senadores, mutatis mutandis, qualquer inquérito em curso perante o Judiciário poderia sofrer intervenções de ‘interessados’ ou de autoridades locais, para solicitar diretamente ao magistrado diligências investigatórias, o que o CPP não autoriza nem mesmo ao ofendido”. Parlamentares, segundo a vice-procuradora, “não podem, de forma anômala, intentar assumir a condução investigativa e proceder à persecução”. Lindôra Araújo também rejeita o pedido alegando justamente que se trata de “pescaria probatória”, mencionada na manifestação pelo seu nome em inglês, “fishing expedition”; e arremata dizendo que os senadores agem movidos por “intenções midiáticas” e “autopromoção pessoal”.
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E não há como alegar que não haveria problema na divulgação das conversas com base no famoso “quem não deve não teme”. Se assim fosse, estaríamos legitimando a violação total da privacidade não apenas de Aras, mas de qualquer agente público, sem pretexto algum. Se não há indício de cometimento de crime, investigação formalmente instaurada e decisão formal referente à quebra de sigilo telemático, não há razão alguma para a divulgação de diálogos, mesmo que de autoridades. Pretender o contrário é tolerar que, em nome de uma compreensão equivocada do que seja a transparência, o Estado avance ainda mais sobre os direitos dos brasileiros, retirando-lhes garantias constitucionalmente protegidas.
Os abusos cometidos contra os oito empresários – dos quais, lembre-se, apenas três trataram de um possível golpe no Brasil – já colocam o país no rumo de uma autocracia em que opiniões e conjecturas são vigiadas e punidas. Agora, parlamentares que integram a Casa legislativa que deveria impor limites aos excessos do STF se juntam com gosto à perseguição movida pela corte e pretendem ampliar a violação de direitos básicos daqueles de quem se discorda politicamente. Nesta “parceria” entre senadores e ministros liberticidas, o cidadão brasileiro se vê cada vez mais acuado – tudo, claro, “em nome da democracia”.
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