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Jack Dorsey, CEO do Twitter, testemunha remotamente enquanto o senador John Kennedy (R-LA) observa durante a audiência do Comitê Judiciário do Senado sobre “censura, repressão e as eleições de 2020” no Capitólio em 17 de novembro de, 2020 em Washington, DC.
Jack Dorsey, CEO do Twitter, testemunha remotamente enquanto o senador John Kennedy (R-LA) observa durante a audiência do Comitê Judiciário do Senado sobre “censura, repressão e as eleições de 2020” no Capitólio em 17 de novembro de, 2020 em Washington, DC.| Foto: Bill Clark/Pool/AFP

“A chanceler considera problemático que as contas do presidente dos Estados Unidos nas redes sociais sejam fechadas definitivamente”, disse na segunda-feira o porta-voz da chanceler alemã, Angela Merkel. Ela nem de longe pode ser descrita como uma apoiadora incondicional de Donald Trump, mas nem por isso a afirmação deve ser considerada surpreendente. Quem tem preocupações genuínas com a democracia, em todas as suas dimensões, repudiou a invasão do Capitólio norte-americano ocorrida no dia 6, mas também enxerga com bastante preocupação a ofensiva conjunta das Big Techs contra Trump, culminando com o cancelamento de suas contas, uma decisão que reflete o enorme poder acumulado por essas companhias e que ameaça a liberdade de expressão ao levar às últimas consequências uma prática que empresas como Twitter e Facebook já vêm adotando há algum tempo, em doses menores, contra famosos e, principalmente, contra anônimos.

Não é uma discussão simples, pois envolve uma série de fatores, como o caráter privado das empresas (o que, para alguns, justifica que elas façam o que bem entenderem); a própria maneira como elas se descrevem ao público e como elas agem na prática; seu caráter quase oligopolista – o que ficou mais evidente em outra ação das Big Techs, ao sufocar uma mídia social alternativa, o Parler –, e a proporcionalidade das punições aplicadas a usuários.

A pergunta “que tipo de serviço, afinal, as mídias sociais oferecem?” está no centro de uma controvérsia legal nos Estados Unidos. De acordo com a Seção 230 da Lei de Telecomunicações de 1996, pessoas ou empresas que se limitem a transmitir conteúdo de terceiros na internet não podem ser responsabilizadas legalmente pelo que ali for publicado. Há exceções, obviamente: mídias sociais não podem usar essa lei para se esquivar de apagar conteúdos que constituem crime ou que violem a propriedade intelectual. E ninguém haverá de acusar agressão à liberdade de expressão quando uma mídia social bane, por exemplo, publicações racistas ou que contenham, por exemplo, pornografia infantil.

É responsabilidade das Big Techs defender e promover a liberdade de expressão, em vez de apossar-se dela como em uma distopia, calando ideias e pessoas de acordo com as próprias preferências

Mas o que as Big Techs vêm promovendo está além disso. Postagens são apagadas e usuários recebem suspensões temporárias por conteúdos que nem de longe constituem crime – o mais provável é que tenham meramente ofendido algum consenso tornado inatacável pela intelligentsia dita “progressista” –, e muitas vezes as empresas nem mesmo explicam de forma clara os motivos da punição. Em outros casos, publicações vêm acompanhadas de “advertências” sobre sua possível falsidade ou imprecisão. Todas essas atitudes fazem das mídias sociais não apenas meros intermediários da transmissão de conteúdo, mas autênticos editores, decidindo o que pode ou não ser publicado – e, o que é mais grave, quem tem voz e quem será calado. Isso lhes retiraria a proteção legal da lei norte-americana; se as mídias sociais agem como editores (“publishers”), deveriam poder ser responsabilizadas pelo que seus usuários ali publicam. E, ainda que a Seção 230 seja uma exclusividade dos Estados Unidos – a maioria dos demais países admite níveis maiores de responsabilização das plataformas –, o debate sobre a natureza das mídias sociais transcende legislações e precisa ser feito.

Isso nos leva ao coração do argumento de muitos liberais que defenderam a punição a Donald Trump. Se Twitter, Facebook e outras mídias quiserem agir como editores, deixando bastante claro que terão essa postura e responsabilizando-se legalmente pelo que for ao ar (abrindo mão, portanto, da proteção legal de que gozam quando se descrevem como simples plataforma que publica conteúdos de terceiros), não deveriam ter o direito de escolher quem pode usar seus serviços, e de que modo? Mais uma vez, a resposta não é tão simples. A revolução tecnológica tornou praticamente impossível a muitas pessoas até mesmo exercerem seu trabalho sem recorrer às Big Techs – e a dificuldade colocada por essas empresas para o surgimento de alternativas que adotem critérios de moderação mais “minimalistas”, como o Parler, mostra que este mercado está se encaminhando para a constituição de um autêntico oligopólio. Tamanha dependência lhes concede um enorme poder, que precisa ser exercido com parcimônia e transparência completa, a começar pela explicitação total dos critérios de moderação, que precisam ser razoáveis, sem dar margens a filtros ideológicos nem a posturas duplas em que certos discursos são mantidos e outros idênticos são removidos, dependendo única e exclusivamente de quem fala e do alvo da crítica.

Por fim, resta a questão da proporcionalidade das punições, o aspecto que despertou a preocupação de Angela Merkel. Se apagar uma postagem ou tuíte é uma resposta adequada, dependendo da ofensa cometida, banir indefinidamente um usuário, na enorme maioria das vezes, será atitude completamente desproporcional. Trump tem usado as mídias sociais para estimular a polarização política norte-americana, erodir pilares da democracia americana e publicar alegações sem provas, mas este é o tipo de ação ao qual se responde de forma pontual, eliminando os conteúdos problemáticos, jamais com o “cancelamento” virtual puro e simples, o que equivale a uma censura, ainda que não aplicada pelo Estado, mas por um particular.

E, quanto maiores as punições, maior o risco de incoerência – ou de hipocrisia. Antes mesmo de Trump, seu ex-assessor Steve Bannon teve sua conta banida em novembro de 2020 ao sugerir que Anthony Fauci, assessor do governo para o combate à Covid-19, e Christopher Wray, diretor do FBI, deveriam ser decapitados; mas a artista Kathy Griffin, que publicou uma foto segurando uma cabeça ensanguentada de Trump em 2017 (e repetiu a dose em 2020), segue tuitando livremente. Outra conta que continua ativa é a do aiatolá iraniano Ali Khamenei, com o Twitter limitando-se a apagar publicações que pregam a destruição de Israel ou defendem a sentença de morte contra o escritor Salman Rushdie.

Ao se descreverem como meros intermediários para troca de ideias e portarem-se como editores; ao não apresentarem com transparência seus critérios sobre quais conteúdos consideram aceitáveis; ao não aplicarem as mesmas regras a todos os participantes, punindo ofensas iguais de maneiras diferentes; ao se organizarem para bloquear o surgimento de mídias alternativas; e ao aderirem ao “cancelamento” da forma mais agressiva possível, as Big Techs se sujeitam, sim, a uma crítica bastante justificada a respeito de sua atuação. Sua responsabilidade é diretamente proporcional ao poder que acumulam na era da informação, e entre essas responsabilidades está a de defender e promover a liberdade de expressão, em vez de apossar-se dela como em uma distopia, calando ideias e pessoas de acordo com as próprias preferências.

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