Entre os principais alvos dos cortes de gastos implementados neste início de mandato pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, com a ajuda do bilionário Elon Musk e seu Departamento de Eficiência Governamental (Doge), está a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid). A ordem executiva assinada por Trump em 20 de janeiro revoltou setores da opinião pública norte-americana e mundial já propensos a criticar Trump por quaisquer de suas ações, mas a repercussão negativa faz questão de ignorar que parte significativa da ação da agência tem pouco ou nada a ver com a ajuda humanitária que caracterizou sua atuação inicial.
Repasses a órgãos de imprensa de países desenvolvidos (incluindo os próprios Estados Unidos), financiamento de iniciativas de caráter identitário, políticas de controle populacional e incentivo à promoção ou legalização do aborto em países pobres, e até mesmo convênios com o objetivo de fomentar o controle da informação e da liberdade de expressão, inclusive no Brasil, e repasses para entidades ligadas a grupos terroristas como o Hamas – absolutamente nada disso pode ser considerado como “ajuda humanitária” nem mesmo pelo mais frouxo dos critérios. Trata-se de ação de caráter ideológico com o uso do dinheiro do contribuinte norte-americano, e que um governo tem todo o direito de suprimir. Se a isso acrescentarmos a possibilidade de que recursos da Usaid tenham sido empregados para desequilibrar disputas políticas em alguns países – como chegou a afirmar Michael Benz, ex-chefe de informática do Departamento de Estado dos EUA no primeiro governo de Donald Trump, a respeito do Brasil –, as ações de Trump se tornam ainda mais justificadas.
Apesar de seu desvirtuamento, a Usaid não deixou de lado iniciativas realmente humanitárias, como o envio de alimentos e medicamentos a áreas atingidas pela miséria, pela guerra e por desastres naturais
No entanto, em meio a todo esse joio, também há trigo. Apesar de seu desvirtuamento, a Usaid não deixou de lado as iniciativas realmente humanitárias, como o envio de alimentos e medicamentos a áreas miseráveis do globo, ou a países devastados por guerras e desastres naturais, bem como a oferta de bolsas de estudo para estudantes de países pobres. Não se pode esquecer que a Usaid foi importante no desenvolvimento da Embrapa, que por sua vez foi vital para que o Brasil se tornasse a potência agrícola que é hoje. Felizmente, ao menos parte dessas iniciativas segue em curso: em 28 de janeiro, o Departamento de Estado norte-americano publicou uma lista de exceções, afirmando que a assistência humanitária com o objetivo de salvar vidas deve continuar em funcionamento. Isso inclui envio de medicamentos e assistência médica (mas não a oferta de abortos, contracepção ou terapias de mudança de gênero), alimentos, abrigo e auxílio à subsistência.
Bem sabemos que a criação da agência, em 1961, por John Kennedy, não foi motivada por altruísmo puro e simples; ela se deu em um contexto de Guerra Fria, em que era preciso atrair o máximo possível de nações para a órbita de influência norte-americana. A Guerra Fria terminou, mas o componente geopolítico continua a existir, e também deveria estar no radar de Trump: se os Estados Unidos abrirem mão da atuação humanitária, seus adversários no tabuleiro global ocuparão esse espaço – especialmente a China, que também tem uma agência similar à Usaid, mas que age de forma totalmente opaca e submetida aos interesses do Partido Comunista Chinês. Um exemplo recente é o do Camboja, onde o governo chinês já se prontificou a substituir a Usaid no financiamento dos esforços de remoção de minas terrestres e bombas não detonadas deixadas no país na década de 1970.
Muito mais relevantes que o fator geopolítico, no entanto, são as obrigações morais envolvidas e que são essenciais para a cooperação internacional. A primeira delas é a obrigação de as nações desenvolvidas ajudarem os países que sofrem com miséria, doenças e desastres; a segunda, relacionada à primeira, é o de honrar compromissos assumidos, especialmente quando uma reviravolta súbita pode ter consequências brutais para populações vulneráveis. Os Estados Unidos respondem, hoje, por quase metade de toda a assistência humanitária em todo o mundo; trata-se de dinheiro que não pode simplesmente desaparecer sem lançar populações inteiras no completo desespero.
A ordem assinada por Trump prevê um congelamento de 90 dias nas atividades da Usaid (com as exceções já mencionadas) para que seja realizada uma revisão total das atividades da agência. Terminado este prazo, Trump não pode jogar fora o bebê com a água do banho. Um futuro desmantelamento da Usaid, se tem a vantagem de interromper o fluxo de dinheiro para programas de cunho ideológico e que muitas vezes atentam contra a dignidade humana, por outro lado também paralisaria inúmeras ações que de fato podem fazer a diferença entre a vida e a morte para inúmeras pessoas em áreas pobres ou conflagradas. Direcionar a agência para a verdadeira ajuda humanitária, com total transparência, é a melhor forma de atender os interesses dos Estados Unidos e de toda a comunidade internacional.