“A norma é correta, o que falam dela é mentira, mas mesmo assim resolvemos revogar.” A atitude do governo federal, ao revogar a normativa da Receita Federal sobre monitoramento de movimentações no Pix e no cartão de crédito acima de R$ 5 mil para pessoas físicas e R$ 15 mil para pessoas jurídicas, bem poderia ser resumida nessa afirmação carregada de cinismo. A verdade é que, com um vídeo de alguns poucos minutos, o deputado Nikolas Ferreira impôs um 7 a 1 na partida de estreia do marqueteiro Sidônio Palmeira como “ministro da Propaganda” lulista – e, agora, os derrotados e sua torcida estão mais que dispostos a recorrer ao tapetão.
Não há a menor dúvida de que o estopim para o recuo do governo foi a enorme disseminação do vídeo do deputado do PL de Minas Gerais, que bateu rapidamente os 217 milhões de visualizações – é como se todo brasileiro tivesse assistido ao vídeo uma vez. Não é nosso objetivo, no momento, analisar a medida da Receita ou o mérito das críticas de Nikolas. A discussão sobre quais medidas se pode tomar para combater a sonegação (desde, é claro, que não se descambe para violações de sigilo), que grupos deveriam ser fiscalizados com mais rigor, a conduta específica da Receita Federal do Brasil, e a conveniência da normativa agora revogada é perfeitamente lícita em uma sociedade democrática. E é justamente por isso que temos de lamentar a enorme degradação do debate público ocorrida neste episódio.
Isso porque, em vez de contra-argumentar e tentar defender o acerto da resolução, a única estratégia que o governo federal e seus apoiadores na imprensa e em outros setores da opinião pública empregaram foi qualificar o vídeo como “fake news” e “desinformação”. E ainda por cima o fizeram como se apenas o qualificativo bastasse, já que não houve nem sequer um esforço para demonstrar qual afirmação factual o deputado havia feito e que era incorreta. Ironicamente, o deputado colocou bastante ênfase em negar (mais de uma vez) a principal informação factualmente falsa que vinha sendo veiculada a respeito do imbróglio todo, a de que o Pix seria taxado.
Se os profissionais da informação são incapazes de reconhecer a diferença entre uma crítica legítima e a afirmação factual falsa, é certo que o futuro da liberdade de expressão está em maus lençóis no país
Sem isso, o que sobrou a alguns jornais foi afirmar, em tom de denúncia, que Nikolas “acusava o governo de querer taxar Pix”, como se isso fosse uma barbaridade completa, e não um recurso legítimo empregado na discussão pública desde que o mundo é mundo. Não há candidato que deixe de dizer, durante uma campanha, que seu adversário fará um mau governo, fazendo inclusive afirmações sobre o que pode vir a acontecer em determinados setores, como a economia. A própria esquerda, na política e na imprensa, se comporta assim o tempo todo: basta observar as previsões apocalípticas feitas após a eleição de Donald Trump ou após a mudança nas políticas de moderação das mídias sociais de Mark Zuckerberg.
Seria, por acaso, fake news dizer que os Estados Unidos caminharão para o fascismo após a posse de Trump, ou que Instagram e Facebook virarão campo fértil para o cometimento de crimes com a saída dos checadores? Certamente que não, pois não se trata de afirmações factuais incorretas – se forem incorretas, isso só será possível saber no futuro. O mesmíssimo princípio se aplica quando Nikolas diz que uma taxação do Pix pode entrar no radar do governo – e nem a medida provisória recentemente publicada serve como argumento para desqualificar essa afirmação ou transformá-la em fake news, já que o Brasil é o país onde até a suprema corte viola cláusulas pétreas da Constituição.
De resto, o que há no vídeo – e nos espanta que isso pareça tão difícil de perceber para tanta gente – é crítica pura e simples. No caso da normativa da Receita, Nikolas critica, por exemplo, o suposto efeito da medida sobre brasileiros mais pobres que recorrem à informalidade como meio de aumentar sua renda. Em um contexto mais amplo, o deputado menciona a sanha arrecadadora, as promessas não cumpridas (inclusive no caso da “taxa das blusinhas”), o sigilo a respeito de gastos da Presidência, e a espiral crescente do gasto público. Nada disso é “desinformação”, muito menos fake news – independentemente de Nikolas estar certo ou não a respeito do que diz. Também a crítica é parte do debate público, que se faz na base do embate de argumentos e da exposição de dados que comprovem ou desmintam certa tese. É direito de qualquer cidadão; no caso de parlamentares como Nikolas, é até mesmo parte de suas funções. Mas o governo e seus aliados querem negar ao brasileiro esse direito.
Na quarta-feira, ao anunciar a revogação da norma, o secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, fez um agradecimento revelador. Enquanto fazia sua justificativa contraditória, de que a norma estava sendo anulada apesar de estar tudo certo com ela e apesar de as críticas serem todas “mentirosas”, Barreirinhas afirmou: “Preciso agradecer a imprensa, que foi parceira da gente na tentativa de afastar essas mentiras”. A “parceria”, no caso, consistiu em ecoar o discurso governista, chamando de “fake news” e “desinformação” um vídeo que definitivamente não merece tal qualificativo, em mais uma demonstração do baixíssimo nível que o debate sobre liberdade de expressão assumiu no Brasil. Se os profissionais da informação são incapazes (isso na mais benigna das hipóteses) de reconhecer a diferença entre uma crítica legítima e a afirmação factual falsa, é certo que o futuro de uma garantia democrática está em maus lençóis no país.
E, como no Brasil de Lula tudo pode piorar, o vídeo de Nikolas Ferreira ainda pode se tornar alvo de perseguição judicial, já que o grupo Prerrogativas (que se tornou uma espécie de AGU pessoal do presidente da República) anunciou que iria à Procuradoria-Geral da República e ao Conselho de Ética da Câmara contra o deputado – por um crime que não existe, diga-se de passagem; e, ainda que existisse, não poderia jamais ser imputado a alguém que não espalhou fake news, mas apenas exerceu sua liberdade de expressão e seu direito de crítica. Direito este que, incrivelmente, há jornalistas querendo cassar, como fez Eliane Cantanhêde na GloboNews ao afirmar que “desacreditar, atacar medidas públicas é crime” – os totalitários do século 20 não teriam dito de outra forma.
“Temos de tomar uma medida pedagógica”, justificou o advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do Prerrogativas, ao anunciar sua perseguição contra Nikolas Ferreira. “Pedagógico” é a palavra perfeita: desde as mudanças anunciadas por Mark Zuckerberg nas políticas de moderação de suas redes sociais, e agora, com o caso do Pix, o brasileiro está aprendendo que o governo Lula e parcelas importantes da imprensa e do mundo jurídico, quando falam em “regulação das mídias sociais”, não estão nem um pouco preocupadas com democracia ou proteção dos usuários: trata-se apenas de controlar o discurso, decidir quem pode falar e o que pode ser dito – e esta última categoria, evidentemente, não inclui críticas ao governo.