A situação catastrófica da liberdade de expressão no Brasil pode finalmente ganhar a repercussão internacional que tem faltado até agora. Pedro Vaca Villareal, relator especial para a liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), está no Brasil desde o último domingo, dia 9, e deve ouvir tanto autoridades dos três poderes quanto representantes da academia, da imprensa e de plataformas digitais, sem falar em algumas das inúmeras pessoas que foram censuradas em algum momento desde a instauração do inquérito das fake news no STF, em abril de 2019. Até onde se sabe, não deve haver nenhum tipo de pronunciamento durante a visita: o relator vem apenas para ouvir, e só depois deve expor sua avaliação em um relatório.
Em Brasília, Vaca Villareal já se encontrou, na segunda-feira, com o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, que chamou seu colega Alexandre de Moraes, o censor-mor da República. A julgar pela nota publicada pelo STF após a reunião, já que o relator não deu declarações ou entrevistas, os ministros fizeram o seu melhor para convencer Vaca Villareal que está tudo na mais perfeita ordem; que, se foi preciso censurar, foi apenas em nome da “defesa da democracia”; e que nada foi feito às escondidas. Obviamente, se o relator tiver um mínimo de desconfiômetro, haverá de se perguntar como é que se “defende a democracia” agredindo a liberdade de expressão de forma tão escancarada. E temos tudo para crer que os ministros não lhe disseram que a suspensão sumária de perfis não tem amparo no Marco Civil da Internet, e é inclusive inconstitucional, por configurar um tipo de censura prévia inaceitável em uma democracia.
Se Vaca Villareal tiver um mínimo de desconfiômetro, haverá de se perguntar como é que se “defende a democracia” agredindo a liberdade de expressão de forma tão escancarada
Mas, ainda que o relator não tenha estudado a lei brasileira antes de sua viagem para descobrir que o Marco Civil da Internet só permite a remoção de publicações específicas, e não a censura de perfis, os parlamentares de oposição que ele encontrou nesta terça-feira certamente terão explicado a Vaca Villareal onde residem as ilegalidades e os abusos cometidos pelas cortes superiores ao longo de todos esses anos, a começar pela censura da revista Crusoé, em 2019, um dos primeiros episódios do inquérito das fake news, e que deu o tom de tudo o que viria a seguir. Foram esses parlamentares que deram início ao processo que terminaria com a vinda do relator ao Brasil: em novembro de 2024, eles foram a Washington para uma reunião que acabou cancelada de última hora (e substituída por uma audiência a portas fechadas), sob a alegação de que o governo brasileiro havia convidado o relator especial para vir ao país – é esta visita que está em andamento agora.
O relator da CIDH ainda terá muito mais a ouvir. Ele poderá conhecer, em primeiríssima mão, as histórias de brasileiros censurados arbitrariamente pelas cortes supremas (alguns desses relatos já lhe haviam sido enviados por escrito); e saberá que, ao contrário do que lhe disseram Barroso e Moraes, as decisões de censura costumam ser sigilosas, a ponto de muitas das vítimas nem sequer saberem quais publicações as colocaram na mira do STF ou do Tribunal Superior Eleitoral. Ainda ouvirá juristas especializados em liberdade de expressão, que dirão a Vaca Villareal que não apenas o ato de censura em si é uma violação grotesca da Constituição brasileira e da Convenção Americana de Direitos Humanos, mas também que brasileiros são censurados por publicações que nem sequer constituem crime, pois nem “fake news”, nem “desinformação”, nem “discurso de ódio” são categorias definidas na lei brasileira.
Que Vaca Villareal tenha a disposição de ouvir com verdadeira abertura os relatos sobre nossa mistura de O Processo, 1984 e Fahrenheit 451; a honestidade intelectual de perceber quão maltratada tem sido a liberdade de expressão no Brasil; e a coragem de, em seu relatório, chamar as coisas pelo que são e mostrar como o Judiciário brasileiro, com o apoio do atual Executivo e de seus aliados na sociedade civil, tem solapado sistematicamente as garantias democráticas no Brasil. Neste momento, é impossível garantir que será de fato assim, mas, se isso acontecer, estaremos diante de uma grande vitória. Independentemente de haver ou não consequências formais (por exemplo, uma condenação), a mera exposição, com a chancela da Organização dos Estados Americanos (OEA, à qual a CIDH é vinculada), do regime censor instaurado pelo STF já terá o poder de chamar a atenção do mundo para o que ocorre no Brasil – e isso não é pouca coisa.