O Brasil é um dos poucos países do mundo onde se usa água potável para a descarga sanitária, a lavagem de calçadas e carros e a rega de jardins. Apesar das sucessivas crises hídricas e mesmo com tantas campanhas de incentivo ao uso racional, a água tratada continua sendo desperdiçada em limpezas de pisos, lavagem de calçadas e carros e para molhar plantas, o que poderia ser feito com a água de reuso. O reaproveitamento da água, aliado ao uso de metais sanitários adequados, faz parte do processo de eficiência hídrica de um empreendimento, que pode resultar em uma economia entre 20% e 60%, segundo especialistas.
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Essa tendência pode ser impulsionada por uma nova lei, vigente a partir deste mês. A Lei Federal 14.546/23 prevê, entre outras medidas, que o poder público estimule o uso de água da chuva e o reaproveitamento das chamadas "águas cinzas" em novas edificações urbanas residenciais e comerciais, além da indústria e do agronegócio. É classificado como água cinza qualquer efluente gerado por uma residência, exceto o esgoto sanitário. São as águas usadas em chuveiros, pias, tanques e máquinas de lavar.
A proposta é que essas águas, depois de usadas, possam ser coletadas, tratadas e disponibilizadas apenas para uso em rega de jardins, lavagem de calçadas e pisos e descarga sanitária. Dessa forma, a água potável deixaria de ter esta destinação, o que geraria uma economia na conta de água e contribuiria para a preservação ambiental, com o uso racional do recurso hídrico.
O aproveitamento de água da chuva não é mais tão raro no Brasil. Em Curitiba (PR), é lei desde 2007 para novos empreendimentos. Mas o aproveitamento das chamadas águas cinzas está apenas começando - por isso, as expectativas com a nova lei. Ainda não é viável em residências individuais porque demanda uma grande volume de água, mas pode ser mais facilmente instalado em condomínios, tanto verticais quanto horizontais.
O primeiro prédio residencial da capital paranaense projetado para o reuso de águas cinzas foi entregue em 2020. É o New Town. Agora, um segundo está em construção na cidade com previsão de entrega para 2024 e deve contar com a mesma tecnologia. "Em edifícios residenciais ainda não é comum o aproveitamento das águas cinzas”, diz Giancarlo Antoniutti, engenheiro civil e sócio da incorporadora AGL, responsável pelos dois empreendimentos residenciais sustentáveis de Curitiba, voltados às classes B e C.
Reaproveitamento de águas cinzas foi fator decisivo na compra do imóvel
A arquiteta Julianna Lang, moradora do edifício New Town, conta que as soluções sustentáveis do empreendimento foram decisivas para a compra do apartamento. "É nosso primeiro imóvel. Eu e meu marido visitamos vários apartamentos, alguns inclusive mais em conta que esse, mas nos encantamos com as soluções e com a preocupação que a construtora teve em relação ao meio ambiente", destaca a moradora. Ela diz que o casal fez contas e concluiu que o investimento valia a pena. "Vimos muito valor agregado aqui", pontua.
A moradora explica que o edifício tem uma rede de tratamento de toda a água cinza, que vem de chuveiros e torneiras. "Essa água é tratada dentro do próprio prédio e volta para as descargas dos banheiros", diz. Julianna lembra que, no ano passado, durante os períodos de rodízio no abastecimento de água por conta da crise hídrica, nunca faltou água para as descargas no apartamento. "Isso prova que o sistema é eficiente e que a economia é certa", avalia.
Julianna cita outra solução sustentável que o imóvel oferece: o sistema de aquecimento da água do chuveiro é proveniente de placas solares. "No inverno, quando temos menos dias quentes, a nossa economia em comparação ao sistema de aquecimento tradicional é de 50%. No verão, chega a 80%", diz.
O outro prédio com as soluções sustentáveis ainda em construção é o New Urban, em processo de certificação de sustentabilidade para a conquista do selo GBC (Green Building Council). Além do reuso da água, o empreendimento terá painéis fotovoltaicos, sistema de eficiência energética e conforto térmico e acústico. Segundo Antoniutti, a relação custo-benefício compensa.
“A implantação de um sistema para captar as águas cinzas encarece entre 0,5% e 1% o custo geral da obra. Em compensação, garante uma economia de cerca de 20% no consumo de água".
Giancarlo Antoniutti, responsável por dois empreendimentos residenciais sustentáveis de Curitiba.
Para ele, o aproveitamento das águas cinzas tem ainda uma vantagem em relação à água das chuvas. “A água da chuva não garante um suprimento constante. Em períodos de seca, pode faltar água para a captação pelas cisternas, já o banho é diário. Então, a cada banho, essa água é recolhida e armazenada para ser usada em lavagem de calçadas, regas de jardins e plantas em geral e descargas sanitárias", compara.
Para viabilizar o aproveitamento das águas cinzas, é instalado nos prédios um sistema de coleta da água usada no chuveiro, nas pias e em máquinas de lavar louça e roupa. O sistema de reuso de águas residuais é composto por tubulação exclusiva. As águas cinzas são enviadas para a estação de tratamento, implantada dentro do próprio condomínio, para desinfecção e reutilização na lavagem das áreas de uso coletivo e descargas dos vasos sanitários dos apartamentos.
Economia começa no canteiro de obra
A incorporadora adotou também o aproveitamento de águas pluviais no canteiro de obras. A expectativa é reduzir em 15% o consumo de água potável durante a obra. De acordo com a empresa, o consumo de água durante o período fica em torno de 200 a 250 litros para cada metro quadrado construído. E, para fazer a compactação de um metro cúbico de aterro, podem ser consumidos até 300 litros.
Por isso, o desafio de reduzir o consumo de água, como medida de enfrentamento à crise hídrica, deve começar na etapa da construção. A construção civil está entre os maiores consumidores de água tratada do planeta. Dados do Green Building Council mostram que o setor é responsável por cerca de 21% do consumo de água no mundo.
Segundo o engenheiro e gerente de planejamento da AGL, Vinícius Hanser, o aproveitamento das águas cinzas é de grande valia para a redução do consumo de água potável nas unidades habitacionais, o que deve impactar nas contas de água dos futuros moradores. “Se uma família formada por quatro pessoas consome, em média, 10 mil litros de água potável por mês, 1.440 litros deste total são gastos pelo sistema convencional de descarga. Com o reuso das águas cinzas, a economia pode chegar a 15% do consumo total”, explica.
Além da implantação da infraestrutura, a incorporadora vai orientar os futuros moradores sobre os cuidados necessários para o bom funcionamento do sistema de reuso de águas residuais. No empreendimento já entregue, o percentual de economia de água dos moradores chega a 22%.
“É importante orientar os proprietários, já que o sistema é projetado para receber apenas águas provenientes de chuveiros e lavatórios. Portanto, nestas tubulações específicas, não se deve despejar esgoto sanitário ou gordura, resíduos de tintas, thinner, aguarrás, óleo, combustíveis em geral, como diesel, gasolina e etanol, além de corantes industriais. Essas substâncias podem danificar os componentes do sistema de tratamento”, ressalta Hanser. Outra norma importante a ser seguida pelos condôminos, segundo o engenheiro, é não fazer alterações na rede de esgoto de lavatórios e de chuveiros, evitando o comprometimento do sistema projetado apenas para as águas cinzas.
Novos empreendimentos buscam a eficiência hídrica
O assessor parlamentar do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea-PR), o engenheiro civil Euclesio Finatti, confirma o ineditismo da proposta do aproveitamento de águas cinzas em prédios residenciais. Diferente do já difundido reuso da água de chuva, segundo ele o aproveitamento das chamadas águas cinzas é um pouco mais complexo porque demanda conhecimento técnico mais apurado em projeto e execução, mas pode ser feito.
Finatti menciona que há prédios comerciais em Curitiba que fazem o reuso de águas cinzas há mais de cinco anos. Mas, em edifícios residenciais, só mesmo os novos empreendimentos devem seguir neste conceito. “Serão os primeiros de muitos, porque a gente não pode jogar água fora”, destaca.
O consultor em sustentabilidade e engenheiro civil Iago de Oliveira, um dos sócios fundadores da Bloco Base, escritório de engenharia com foco em sustentabilidade, avalia Curitiba como uma cidade avançada na pauta da sustentabilidade em relação ao Brasil. "É uma cidade bem vanguardista no aproveitamento dos recursos naturais, com uma legislação arrojada em relação ao país e com um consumidor bastante crítico que entende o valor disso", pontua.
De acordo com o consultor, o aproveitamento da água da chuva não demanda grandes investimentos. É basicamente captar a água, que vem quase limpa e demanda um tratamento simples. Já a água cinza demanda mais tratamento, mas reduz o esgoto. A água é tratada no próprio prédio e reutilizada e deixa de ir para a rede de tratamento.
Chuveiros e torneiras projetados para gastar menos
A eficiência hídrica num empreendimento não se restringe ao reuso da água. A escolha adequada de metais sanitários faz parte do processo e pode impactar na redução do consumo de água. "Um chuveiro padrão gasta entre 60 e 80 litros de água por minuto. Hoje, há chuveiros projetados para um consumo entre 6 e 8 litros de água a cada minuto", explica o consultor em sustentabilidade.
Segundo ele, o mesmo acontece com torneiras. "Há uma preocupação por parte das indústrias de metais sanitários em desenvolver produtos com design projetado para o menor consumo", ressalta. Oliveira explica que muitas vezes é um pequeno detalhe no modelo do equipamento que garante a pressão desejada com um menor volume de água.
O engenheiro diz que a associação do aproveitamento da água da chuva com a seleção de metais sanitários adequados vão permitir uma economia média de 59% num prédio residencial projetado dentro dos conceitos de sustentabilidade em Curitiba, o edifício Muda WF, que está em construção pela incorporadora Weefor. Um dos futuros moradores do edifício, o arquiteto Felipe Ferreira, aponta que as soluções de sustentabilidade foram decisivas na compra do imóvel.
"A vantagem financeira, com a diminuição na conta da água, e a consciência ambiental me fizeram decidir pelo imóvel", diz o arquiteto. Segundo ele, a água da chuva pode ser usada para as bacias sanitárias nos apartamentos e para a rega do jardim nas áreas comuns do prédio. Além disso, cada apartamento terá uma sacada com horta, que contará com um sistema automático de irrigação com uso da água pluvial.
Maria Eugênia Fornea, uma das sócias da incorporadora, explica que o nome do prédio (Muda) remete à mudança. "É o conceito de transformar, de inovar de forma positiva não pensando apenas no ganho financeiro, mas no menor impacto ambiental que um empreendimento pode causar", destaca.
Águas cinzas como alternativa às secas
Um dos fundadores do Green Build Council Brasil, Guido Petinelli, conta que o aproveitamento das águas cinzas começou no mundo há cerca de 15 anos como solução nas regiões mais áridas. “Nos países do Oriente Médio, na Austrália e em algumas regiões dos Estados Unidos, como a Califórnia, essa solução vem da própria concessionária que presta serviço de saneamento", conta.
Segundo ele, é comum, nessas localidades, os moradores terem duas instalações em casa: uma recebendo a água potável e a outra as águas cinzas, tudo sendo provido pela concessionária do serviço de saneamento. “Isso acontece em regiões que sofrem com a escassez hídrica crônica”, observa. Em países como Alemanha e Canadá, a solução é apresentada pelas construtoras privadas, da mesma forma que agora está começando no Brasil.
O GBC Brasil é uma Organização Não Governamental (ONG) que tem como missão transformar a indústria da construção civil com práticas sustentáveis. Petinelli, que atuou como diretor de desenvolvimento do World Green Build Council (WorldGBC), destaca o Paraná como líder no Brasil em sustentabilidade nas edificações. “Nesse quesito, o Paraná está para o Brasil assim como a Califórnia está para os Estados Unidos”, compara.
Ele informa que no Paraná são mais de 40% os edifícios que atendem os quesitos de eficiência, conforto e sustentabilidade. “Em todo o Brasil, são menos de 10%”, diz. Nesse caso, não se trata apenas do reaproveitamento da água, mas de outras soluções que impactam na eficiência e no conforto, como aquecimento da água por painéis solares e conforto térmico e acústico. “De nada adianta um prédio adotar soluções ditas sustentáveis se não oferece conforto aos moradores”, pontua.
Dentro do Paraná, Petinelli cita Maringá, Londrina, Cascavel e Foz do Iguaçu entre as cidades que trazem essas soluções. Mas é a capital, Curitiba, que ganha o destaque. “Curitiba é muito avançada na pauta sustentabilidade em relação ao Brasil como um todo. Tem legislação bastante arrojada que determina o reuso da água nas edificações”, observa.
Segundo o consultor, o aproveitamento das águas cinzas em prédios comerciais na capital paranaense começou há cerca de 10 anos. “Temos em Curitiba o primeiro prédio do mundo com consumo zero de água”, pontua. É o Euro Business, que opera totalmente independente da concessionária de abastecimento, a Sanepar.
Esse edifício consome apenas cerca de 40% de água, em comparação a prédios convencionais. São 30% de água de reuso e 10% vêm do poço artesiano construído especificamente para abastecer o prédio. Além disso, 100% do esgoto é tratado e retorna para ser aproveitado em serviços de limpeza e rega de plantas. “A economia na conta de água chega a 95%”, informa.
Petinelli diz que, em relação ao aproveitamento de água da chuva e das águas cinzas, a tecnologia é muito simples. "Não é nada que precise ser inventado. E depende basicamente das instalações hidráulicas e das estações de tratamento", explica. Já a instalação do sistema para consumo zero de água em prédios residenciais ele avalia como mais complicada, por enquanto, pelo fato de um condomínio ter uma gestão compartilhada. Mas o consultor informa que um hotel com o mesmo conceito de consumo zero está sendo projetado para o litoral de Santa Catarina.
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