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Milhares de vítimas de um mundo em conflitos e marcado pela imigração forçada têm encontrado num canto do planeta um oásis de paz e uma chance para recomeçar. Histórias até então geograficamente distantes se cruzam em corredores comuns e linhas de produção nas mais diferentes indústrias do estado do Paraná, principalmente as imensas cooperativas do agro.
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São pessoas que escaparam de cenários caóticos como da guerra entre Rússia e Ucrânia, desde 2022; dos conflitos entre Israel e Hamas na Faixa de Gaza reiniciados em 2023; da perseguição política e religiosa no Oriente Médio; da crise famigerada no Haiti, que provoca uma onda sem precedentes de imigração desde o terremoto de 2010; da crise política e econômica na Venezuela. Apesar das diferenças culturais, das dificuldades à adaptação e do embaraço ao recomeçar, esse grande volume de pessoas busca no Paraná dignidade para dar um novo sentido à vida.
O estado concentra pelo menos 10 das 20 maiores cooperativas do Brasil em rendimento per capita, segundo o World Cooperative Monitor (Monitor Cooperativo Mundial, na tradução literal) e elas estão repletas de empregos. Com base nos registros das Agências do Trabalhador e sistemas diretos de contratação, são mais de 30 mil vagas no estado que vive pleno emprego e que vê dificuldades para encontrar profissionais.
A reportagem da Gazeta do Povo viajou pelos caminhos do reencontro com a dignidade em uma das regiões paranaenses em que as agroindústrias estão ajudando a remontar pequenos mundos, com direito ao ganha-pão e de ajudar a alimentar quem ficou para trás e ainda vive o pesadelo em tão diversas regiões.
Dados do Sistema Federação das Cooperativas do Estado do Paraná (Ocepar) indicam que no estado estão 62 cooperativas ligadas ao agro, com 112.123 trabalhadores com carteira assinada de um total de 145.996 postos de trabalho gerados. Está nos planos da Ocepar incluir às fichas de cadastro dos trabalhadores o item “nacionalidade” para entender melhor esse fenômeno – da língua aos costumes, da acolhida ao processo de pertencimento. Entender estilos de vida tão diferentes, mas com um desejo em comum: viver em paz, longe da destruição, da perseguição e, principalmente, da fome.
Em um recorte regional, um raio-x de empregabilidade desenvolvido pelo Programa Oeste em Desenvolvimento (POD), em 2024, apontou em torno de 5 mil trabalhadores nas indústrias, volume impulsionado pelas cooperativas do agro. É no oeste do Paraná, região do país que faz fronteira com Paraguai e Argentina, que vivem em torno de 10 mil estrangeiros, segundo estimativa da Polícia Federal (PF) - com cada um podendo impactar financeiramente outras três pessoas, dentro e fora do Brasil.
O coordenador do estudo pelo POD, Sérgio Marcucci, lembra que em algumas indústrias, determinados setores chegam a ter 30% de funcionários estrangeiros. “Essa diversidade não apenas enriquece a cultura local como traz habilidades e experiências únicas que impulsionam a inovação e a produtividade. Apesar da necessidade de adequação cultural e da língua, como abordagem adequada é possível aproveitar os benefícios e minimizar desafios, promovendo desenvolvimento econômico e integração cultural na região”.
Ele lembra que a contribuição desses profissionais é fundamental para manter o ritmo de crescimento exponencial da região. “A presença de estrangeiro na base de emprego do oeste paranaense é um fator-chave para o desenvolvimento econômico sustentável e diversificado”.

O novo lar de quem encontrou futuro no Paraná
Moade Suarez está nesta estatística. Mecânico de formação, desembarcou com uma mala quase vazia e um coração cheio de dúvidas e dor. Saiu da Venezuela sem nunca ter ouvido falar do Paraná. Foi impactado. A esposa e os filhos ficaram, com a esperança de um dia estarem juntos novamente. O dia está chegando. “No começo, em 2023, a saudade era tanta que eu parava em um canto da casa onde morava e chorava até as lágrimas acabarem. A saudade ainda dói. Por trás de uma imigração, tem uma história e às vezes pode ser muito triste”.
Assim que conseguiu os documentos e legalizou sua estada no Brasil, Suarez foi contratado pela Coopavel, em Cascavel (PR). Dois anos depois, é hora de buscar esposa e filhos. “Agora temos o que comer todos os dias, uma casa onde vou morar com eles e ainda conseguimos ajudar os que ficaram em Caracas”, conta com orgulho. A família chega para passar o Natal no Brasil, assim que terminar o ano letivo das crianças.
A esposa também deve trabalhar em uma das cinco maiores cooperativas do Brasil que estão instaladas na região. A disputa por trabalhadores entre as empresas envolve a busca por eles, todos os dias, a dezenas de quilômetros de distância. É o caso da Cooperativa Lar, em Medianeira (PR). O diretor da empresa Irineo da Costa Rodrigues conta que, diariamente, ônibus fretados pela unidade transportam centenas de funcionários de municípios vizinhos.
Enquanto a busca por mão de obra não para, Suarez lembra que não consegue mandar muito dinheiro para os parentes na Venezuela, mas é o suficiente para que “esposa, filhos, pais idosos e irmãos não morram de fome”. O imigrante teme pela realidade política e econômica de seu país e pela segurança dos que ficaram.
“Da realidade que venho, poucas pessoas são imigrantes porque querem ser imigrantes. Ninguém é um imigrante por vontade deixando família, casa, vida, tudo. Nenhum ser humano deveria passar por isso. Venci algumas etapas, reconstruo todos os dias e foi no lugar em que trabalho que me devolveram dignidade”, conta.
Segundo o superintendente do Sistema Ocepar, Nelson Costa, uma parcela significativa dos estrangeiros em cooperativas do estado paraense veio da Venezuela. Na sequência se destaca o Haiti, país de onde chegou Mariá Nenas.
Ela foi contratada pela C.Vale, em Palotina (PR). “Saí em uma condição triste. Cheguei com a roupa do corpo e um casaco amarrado à cintura. Passava fome, foi difícil chegar. Primeiro vivi em Belo Horizonte, depois São Paulo, mas foi no Paraná que consegui recomeçar. Não é fácil, mas é uma batalha que a gente vence todo dia”, conta em um português já fluente, após cinco anos de Brasil.
Nenas deixou os pais idosos no país de origem. Soube da morte de um irmão, não conseguiu ir ao funeral pelo valor elevado da passagem. Pensou algumas vezes em planejar a volta mas, aos poucos, desiste da terra natal. “Não há futuro no Haiti, a vida é um caos. Guerra entre gangues, corrupção, a capital é dominada pelo crime e não há empregos. Eu já vivi o inferno, hoje quero continuar no céu”.
Escassez de mão de obra eleva salários e melhora oportunidades
Além de Venezuela e Haiti, há muitos estrangeiros vindos de países do Oriente Médio, aponta o superintendente da Ocepar - e mais recentemente, da Argentina. “Arrisco dizer que se não fossem esses profissionais, muitas indústrias estariam em uma condição ainda mais delicada, pois elas estão em uma busca constante de profissionais”, reitera.
Costa aponta que muitos destes trabalhadores também migram entre um parque industrial e outro. “Se uma indústria quer manter o profissional, precisa aumentar salário, conceder mais benefícios e cativar esse trabalhador. Temos visto o salário médio nas indústrias do estado avançarem nos últimos anos e isso acaba sendo um grande atrativo”, evidencia.
A estimativa é que existam 10 mil vagas de emprego abertas na região oeste do Paraná, principalmente nas indústrias de transformação. “Não fossem essas pessoas tão ricas em cultura e diversidade, muitas plantas industriais estariam estagnadas ou muitos turnos de trabalho teriam de ser interrompidos”, alerta, por experiência própria, o industrial Rainer Zielasko, do município de Toledo. Ele é dono de uma indústria de fios que precisou, pontualmente nos últimos anos, interromper linhas de produção por falta de trabalhadores.
Em 2024, o Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (Ipardes) cruzou informações e analisou dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) do Ministério do Trabalho e Emprego e identificou que em 2022 – último ano disponível para apuração – o Paraná contava com quase 38 mil trabalhadores estrangeiros. Em 2018 eram menos de 20 mil. Na ocasião se avaliou que quase 40% estavam empregados no setor industrial, totalizando próximo de 15 mil pessoas em todo o estado. De lá para cá, a estimativa é que esse número aumentado.
“Todas as semanas chegam pessoas dos mais diferentes cantos do mundo e é nas cooperativas e indústrias regionais, com tantas vagas, que as pessoas encontram uma forma rápida e digna de recomeçarem a vida”, enfatiza a coordenadora da Embaixada Solidária, Edna Nunes. A entidade acolhe imigrantes que desembarcam com pouco ou quase nada, mas trazem bagagem de diversidade cultural, somada à vontade de recomeçar.
“Jamais saberei de fato o que é sentir o que essas pessoas sentem quando chegam em um lugar onde não falam a língua, não conhecem nada nem ninguém e que é tão diferente culturalmente. As cooperativas e as indústrias têm um papel importante nesse acolhimento. Independente da cultura e do país que venham, nos ajudam a contar também as nossas histórias, porque agora somos todos daqui, deste lugar”.
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Com ambiente considerado favorável a negócios, Paraná atrai estrangeiros
Na análise do presidente do Ipardes, Jorge Callado, o avanço econômico e social do estado está entre os elementos que atraem mais estrangeiros ao Paraná. Ele considera que, além daqueles vindos de regiões em crise ou conflitos, nota-se a chegada dos que desembarcam vindos de países ricos. “Isso reflete o investimentos de multinacionais no Paraná com um ambiente favorável de negócios”.
Segundo Costa, superintendente da Ocepar, estrangeiros estão galgando – e alcançam – postos de trabalho que vão além das linhas da produção. “Isso é muito positivo porque a dedicação e o preparo levam a novos cargos e a salários maiores, com valorização, independentemente de onde venham ou a língua que falem”.
O diretor-executivo da empresa Frimesa, Elias Zydek, que comanda o quarto maior player do mercado suíno do Brasil, reforça que os imigrantes são fundamentais para manter os parques funcionando. "É uma via de mão dupla", segundo ele. A Frimesa é outra cooperativa instalada no oeste paranaense que mantém recorrência em contratações. São até 300 novas oportunidades diariamente, principalmente na planta industrial de abate de suínos na cidade de Assis Chateaubriand (PR).
Muito disso também é resultado da alta rotatividade. “Observamos muito a entrada e a saída de profissionais, mas precisamos entender essas pessoas e a possibilidade do recomeço. A região vive pleno emprego e cresce muito. Automatizamos alguns serviços porque não temos pessoas para tudo, mas temos os braços abertos aos que estão chegando em busca desta reconstrução, com milhares de oportunidades”, afirma Zydek.
Para avançar, as cooperativas do Paraná sabem que precisam, e muito, dos brasileiros natos e dos que acabaram de desembarcar no país. As empresas projetam faturamento de R$ 300 bilhões para 2027 e ousados R$ 500 bilhões para 2030.
O presidente da Ocepar, José Roberto Ricken, confirma: para a estratégia de faturamento se concretizar, há um cenário a ser vencido que engloba planejamento estratégico, infraestrutura adequada, crédito para crescimento, juros adequados, expansão, manutenção de mercados - e principalmente gente.
Acolhimento requer iniciativas públicas atreladas às oportunidades de emprego
O presidente da Associação Brasileira de Proteína Animal, Ricardo Santin, aborda um ponto relevante para o acolhimento: os desafios sociais, sobretudo em infraestrutura dos municípios com a chegada de tantos novos moradores. Sozinhas, as cooperativas não conseguem resolver o problema. Precisam de parcerias com as administrações municipais, estaduais e federal para avançar em frentes como a construção de casas, de vagas em creches, escolas disponíveis, atendimento médico suficiente e segurança pública.
“Essas pessoas precisam de uma casa digna para morar, os filhos necessitam de escolas. Isso tudo passa pela estrutura política. Por este motivo, muitas cooperativas estão fechando parcerias com prefeituras e o estado para construção de casas, creches, unidades de saúde. Com direitos garantidos, as pessoas se sentem mais seguras para trabalhar e as cidades crescem de forma equilibrada e sustentável”, opina Santin.
Para além da estrutura de apoio, as indústrias e cooperativas paranaenses estão tentando aprofundar a compreensão com as histórias e as tradições diversas. “Não se apaga uma história, não se confunde nem se julga um imigrante pelos seus governantes. Essas pessoas chegam com um jeito de viver e se sentem impactadas pela nova realidade. Esse acolhimento emocional, além do estrutural, é fundamental para quem chega com o coração partido e a vida dilacerada”, enfatiza Edna Nunes, da Embaixada Solidária.
Ela lembra que todos, em algum nível ou momento da história, foram ou são migrantes. “Nossos pais, nossos avós. Por isso é preciso um olhar acolhedor”. Na Embaixada Solidária existe uma regra: ninguém trata de qualquer assunto, por mais delicado ou complexo que seja, com fome. A alimentação é a prioridade inicial a ser sanada. E o mercado formal de empregos no Paraná, com destaque à indústria, compartilha disso: não ter fome precisa ser prioridade.
Não se apaga uma história, não se confunde nem se julga um imigrante pelos seus governantes.
Coordenadora da Embaixada Solidária, Edna Nunes
O economista Rui São Pedro rechaça a avaliação simplista de "estrangeiros tirando empregos" de brasileiros. “Na maioria das vezes, os imigrantes desempenham um papel que os brasileiros não desejam fazer. Mesmo assim, temos milhares de vagas abertas, para brasileiros e estrangeiros em diversos cantos do estado”, reforça.
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