A cidade brasileira que foi modelo para o transporte coletivo de mais de 170 países chega a um momento crucial e traça iniciativas de como modernizar a mobilidade urbana conforme as necessidades dos usuários e as tecnologias disponíveis. Curitiba, capital do Paraná, mostrou para o mundo o BRT (Bus Rapid Transit, ou ônibus de trânsito rápido), sistema em que os ônibus dispõem de vias exclusivas e integração otimizada para dar melhor vazão ao transporte e economizar o tempo do passageiro. Mas, passados quase 50 anos desde que o projeto começou a ser implementado, a cidade é desafiada a repensar a mobilidade e a tornar o coletivo novamente atraente ao usuário.
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Os dados são claros em evidenciar que, nos últimos anos, o passageiro curitibano tem deixado o ônibus de lado. De 1,9 milhão de pessoas que usavam o transporte coletivo em 2008, boa parte migrou para outra alternativa, principalmente o carro – e, uma década depois, os ônibus passaram a ser responsáveis por transportar 1,38 milhão de passageiros.
Os números que já vinham em queda sofreram uma nova redução expressiva com a pandemia de Covid-19. E, mesmo passada a crise sanitária, o transporte coletivo de Curitiba não recuperou os índices pré-pandemia.
Paralelamente, o número de automóveis em circulação cresce e mantém Curitiba com uma média de carros por habitante que corresponde a quase o dobro do Brasil. Em fevereiro de 2023, a cidade registrava 1,015 milhão de automóveis em circulação para 1,873 milhão de habitantes. Ou seja: a cada duas pessoas em Curitiba, uma tem carro. No Brasil, a média era de um carro para cada 3,5 pessoas em 2022. Os dados são do Departamento de Trânsito do Paraná (Detran-PR) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Soma-se ao desafio de fomentar o uso do transporte público o objetivo de manter a tradição enquanto exemplo de capital pró-meio ambiente. Membro do C40, coalisão de grandes cidades do mundo com compromisso de desenvolver ações para contribuir com a redução das emissões de carbono, Curitiba tem mais uma meta para dar conta, que é zerar as emissões até 2050. Um tempo curto para evoluir em questões que há décadas regridem.
Na corrida contra o relógio, há dois anos a capital paranaense se debruçou sobre um plano de ação climática com 20 ações estratégicas, das quais 3 estão focadas na mobilidade: descarbonização do transporte coletivo, desenvolvimento da mobilidade ativa e criação de alternativas de planejamento e operação para a mobilidade de baixo carbono.
Os estudos levados a cabo pela administração pública mostraram que a maior parte das emissões vem dos transportes em geral: cerca de 67%. “Nesse universo, o transporte público não é o vilão, já que responde por 5% a 6% das emissões. É o que menos emite e o que mais transporta”, avalia Ana Cristina Jayme, assessora de Investimentos do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), autarquia municipal responsável pelos projetos de planejamento e gestão urbana.
Analisando os cenários de desenvolvimento, se nada for feito no que tange à gestão de resíduos, uso de energia e transportes, por exemplo, a cidade vai dobrar, e não zerar as emissões de carbono em 27 anos. No que tange à mobilidade em Curitiba, o desafio de um cenário ideal é, portanto, diminuir a participação de deslocamentos por veículos individuais dos atuais 46% para 7% e alcançar 85% de todos os deslocamentos ocorrendo por meio de mobilidade ativa compartilhada e coletiva. “E aí entra tudo o que se move sobre duas rodas e sobre duas pernas, além de ônibus e carros compartilhados”, explica Ana Cristina.
Ações para colocar a meta em prática
A necessidade de integrar as várias formas de se locomover e usar a base de dados para otimizar o uso de cada meio de transporte é a resposta que especialistas em mobilidade dão para os desafios de vencer distâncias e enfrentar horas de trânsito nas grandes cidades. E Curitiba compartilha dessa avaliação.
Extensão de ciclovias, vias compartilhadas e com prioridade ao pedestre (como na Avenida República Argentina) e projetos de linhas de ônibus pensadas para “conversar” com o uso da bicicleta, patinete e carros compartilhados são a solução, avalia a arquiteta do Ippuc. Além, é claro, do uso da tecnologia enquanto agregadora das informações e serviços que o usuário precisa para encontrar o melhor jeito de se deslocar.
No que tange ao transporte coletivo, as duas grandes apostas são a construção das linhas BRT Leste-Oeste e o novo Inter 2. Projetos que precisaram de financiamentos de porte para sair do papel. Os investimentos são de, respectivamente, US$ 93,7 milhões e US$ 153,4 milhões, financiados pelo New Development Bank e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Juntas, as linhas respondem por 40% da demanda de passageiros dos corredores estruturantes de Curitiba.
Com adequação de canaletas ao longo de 20 quilômetros, reforma de estações e construção de terminais, o BRT Leste-Oeste promete conectar Pinhais, na região metropolitana, ao bairro da Cidade Industrial de Curitiba 23 minutos mais rápido do que hoje. As obras do Inter 2 também pretendem dar mais capacidade e velocidade à linha. Estão divididas em sete lotes, num total de 38 quilômetros, prevendo alargamento de pistas e conexões intermodais nas estações e terminais integrados.
“Os projetos do Inter 2 e do BRT Leste-Oeste são a porta de entrada para todas essas novas abordagens para a mobilidade em Curitiba. Eles terão o conceito dos ônibus elétricos, que além de diminuição de emissões, trazem conforto, impactando na saúde das pessoas e na economia. Hoje só 4% da nossa frota usa combustíveis de baixa emissão. Até 2050 queremos 100% e pelo menos 33% até 2030”, adianta Ana Jayme, que participou dos processos de financiamento dos projetos junto aos organismos internacionais.
Intermodalidade nas estações
Para as estações um conceito novo será testado, que é oferecer um hub de mobilidade em Curitiba, com espaço para bicicletas, patinetes e carros compartilhados, além de abastecimento por energia solar. Para que o passageiro chegue até o ônibus, a promessa é oferecer boas calçadas (queixa recorrente de parcela dos curitibanos) e vias compartilhadas, que o estimulem a ir a pé, em distâncias não tão grandes, construção de ciclovias e serviços de bicicletas compartilhadas, além de carros compartilhados, para vencer distâncias maiores.
Segundo a arquiteta do Ippuc, a malha cicloviária de Curitiba será quase dobrada até 2025, passando dos atuais 261 para 408 quilômetros. Para as bicicletas compartilhadas, a prefeitura abriu edital de credenciamento de prestadores do serviço, em setembro do ano passado, e a estimativa é que no início do segundo semestre as estações estejam implantadas e as bicicletas disponíveis para locação, segundo a Superintendência de Trânsito (Setran).
Quanto aos carros compartilhados, ainda em 2019 a prefeitura discutia um projeto de parceria com a Renault para disponibilização de carros elétricos, com vagas de estacionamento exclusivas e pontos de recarga. A meta, à época, era ter 550 carros rodando até 2025. Mas, com a vinda da pandemia, o projeto não evoluiu como previsto e foi suspenso.
Atualmente, a Mobilize, marca do grupo Renault focada em novas mobilidades, vem expandido o serviço de carsharing (compartilhamento de veículos), mas no âmbito de parcerias com empresas, com aluguel de frotas de elétricos para uso entre os funcionários, como foi feito com a Companhia Paranaense de Energia (Copel) recentemente.
A perspectiva é estender a operação para o público em geral - mas sem um prazo concreto para isso. "Ainda não está aberto ao público, estamos controlando isso por uma questão de qualidade na prestação, mas acho que devagar vamos implementando essa cultura e muito em breve estaremos abertos à população", informa o head da Mobilize Beyond Automotive no Brasil, Ricardo Mendes.
Plataforma de dados para integrar os serviços a favor da mobilidade em Curitiba
Os projetos, sozinhos, não alcançam a necessidade de integração para que os transportes público e compartilhado vinguem. Precisa uma vertical de dados para dar conta do recado. Curitiba pretende ser a primeira cidade da América Latina a implantar uma plataforma aberta de mobilidade como serviço (mobility as a service, ou MaaS), que vai indicar ao usuário como planejar o deslocamento com base no melhor custo-benefício/tempo do momento. “Terá uma base tecnológica onde será possível conectar diversos serviços de mobilidade, públicos e privados, inclusive pagamentos, com entrega para o usuário na interface de um aplicativo”, explica Ana Jayme.
O aplicativo indicará qual o meio de transporte mais rápido e barato, ou uma combinação deles. E permitirá operar as funcionalidades dos diversos aplicativos usados nos celulares, como os de transporte particular, de ônibus e dos futuros carros e bicicletas compartilhados em apenas um. “Estamos na fase de contratar o projeto-piloto da plataforma de dados via Marco Legal das Startups, usando a modalidade de contratação pública de solução inovadora, que é, em vez de contratar o produto, a solução para o problema”, diz, citando a Lei Complementar 182 de junho de 2021, sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
A ideia é contratar uma solução de mercado e, a partir do projeto-piloto, incrementar a plataforma, conforme as necessidades de mobilidade específicas de Curitiba. A expectativa é lançar um edital de concorrência internacional para contratação ainda este ano, com apresentação para o público em 2024.
Status das obras do transporte coletivo
As obras do BRT Leste-Oeste e do Inter 2 têm projetos executivos prontos e orçamento em caixa para a construção. O eixo Leste-Oeste está em fase de construção de binários entre os bairros Tarumã e Cajuru e o edital para contratação da execução do corredor de ônibus está em vias de ser publicado, segundo o Ippuc. Já o projeto do Inter 2 teve duas tentativas de licitação frustradas e a prefeitura acaba de lançar um novo edital para concorrência. Dividida em lotes, a obra será feita em etapas. Os contratos preveem cinco anos para a execução das linhas.
Os projetos de mobilidade de Curitiba incluem também o VLT (veículo leve sobre trilhos, espécie de intermediário entre o ônibus e o metrô) ligando o Centro Cívico ao Aeroporto Internacional Afonso Pena, em São José dos Pinhais. Ainda em estágio inicial, a implantação envolve uma parceria com o Governo do Paraná e com o município de São José dos Pinhais e, no momento, os órgãos atuam na contratação do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) para estruturação do projeto.
O metrô, propagandeado por governos municipal, estadual e federal, principalmente em meio às tratativas para a Copa do Mundo de futebol de 2014, não é um modal que deve integrar os projetos de mobilidade em Curitiba. Depois de iniciados os trabalhos em 2009 para estudos de impacto ambiental, o projeto parou, sem perspectivas de retomada. De acordo com o Ippuc, a estruturação para viabilizar uma parceria público-privada (PPP) foi feita, sem sucesso. E por conta da demanda decrescente dos passageiros do transporte público, o metrô sequer se justificaria.
O próximo passo com data para acontecer é a inclusão de ônibus elétricos articulados na frota, em fase de testes. “Estamos com chamada pública para demonstração, para testar nas linhas existentes. Temos oito propostas, de três articulados e cinco padrão”, adianta a assessora do Ippuc. Os testes começam entre abril e maio.
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