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A decisão liminar do ministro Gilmar Mendes que alterou o rito do impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) apresenta contradições em relação à legislação e às práticas institucionais consolidadas. Ao restringir a legitimidade para denúncias, elevar o quórum de admissibilidade e redefinir o alcance das condutas analisáveis, a medida diverge do que historicamente foi aplicado pelo Senado e previsto na Lei 1.079/1950.
Embora fundamentada na defesa da independência judicial, a liminar se apoia em premissas que não se confirmam no funcionamento real do processo de responsabilização. As novas exigências não constam do texto legal, ignoram filtros tradicionalmente exercidos pelo Legislativo e se amparam em riscos hipotéticos para justificar mudanças profundas no equilíbrio entre os Poderes.
A decisão foi tomada na ADPF 1.259, proposta pelo Solidariedade, em que o partido pedia revisão das normas do impeachment. Gilmar Mendes reinterpretou dispositivos centrais da lei para ampliar garantias à magistratura, alterando quem pode acionar o Senado e quais condutas podem ser avaliadas.
O ministro argumentou que a legislação atual permitiria a “instrumentalização política” do impeachment, citando experiências internacionais de interferência sobre cortes constitucionais. Para ele, restringir a legitimidade e impor quórum mais elevado seria necessário para evitar pressões indevidas.
As manifestações nos autos, porém, apresentaram cenário distinto. O Senado afirmou que nunca abriu um impeachment contra ministros do STF e que pedidos sempre passaram por filtros rigorosos da Presidência da Casa, sem indícios de ameaça à independência judicial. Já a AGU apontou que limitar a legitimidade ao procurador-geral da República não tem respaldo constitucional e desloca ao STF um papel de legislador.
1. Gilmar cita risco de perseguição política, mas o Brasil nunca tentou afastar um ministro do STF
Ao justificar a necessidade de restringir o impeachment de ministros do STF, Gilmar Mendes afirmou que a legislação atual deixaria o procedimento “fácil” e politicamente perigoso. Para ele, um modelo menos rigoroso ampliaria a capacidade de interferência do Legislativo sobre o Judiciário. “Quanto mais fácil e discricionário for o procedimento de impeachment, mais forte será o controle exercido pelo Poder Legislativo”, escreveu. Segundo o ministro, reduzir o “custo político e procedimental” de abertura de um processo criaria “uma forma de controle político indireto, corrosiva da independência judicial”.
Gilmar citou ainda o caso venezuelano como alerta de instrumentalização do impeachment. Ele recordou episódios em que a Suprema Corte do país vizinho foi remodelada e enfraquecida durante o governo Hugo Chávez, fazendo referência a estudos que apontam o uso político da destituição de magistrados. “É isso o que sucede quando se admite, facilmente, o início de um processo para apuração de crime de responsabilidade de membros do Poder Judiciário”, afirmou, acrescentando que o instrumento pode se tornar “ferramenta de intimidação e mitigação das garantias judiciais”.
Ocorre que esse cenário tem pouca relação com a realidade brasileira. O único caso de impeachment ocorreu em 1893, quando Barata Ribeiro deixou o cargo no Supremo por decisão do Legislativo. Houve ainda casos de ministros cassados durante o governo de Getúlio Vargas e no regime militar por decisão do Poder Executivo.
Mas, desde a redemocratização, todos os pedidos apresentados por cidadãos ou parlamentares foram barrados pelo filtro inicial do presidente do Senado, que exerce esse controle há décadas sem sinais de abuso ou manipulação política.
Assim, enquanto a decisão de Gilmar parte da premissa de que o modelo vigente facilita perseguições, o histórico institucional mostra exatamente o contrário: o mecanismo nunca foi acionado na prática. A contradição central, portanto, está entre o risco hipotético apontado na liminar e a absoluta ausência de casos que confirmem esse temor no sistema brasileiro.
2. Ministro cria um “superfiltro” no PGR e ignora que o Senado já cumpre essa função
Defendendo que apenas o procurador-geral da República possa apresentar denúncias contra ministros do STF, Gilmar Mendes argumenta que essa exclusividade funcionaria como uma etapa adicional de controle. “A atribuição exclusiva ao Procurador-Geral da República […] significa também a participação de mais uma instância de controle e filtragem no grave e excepcional processo de impeachment”, escreveu. Para ele, esse mecanismo impediria que “denúncias infundadas ou baseadas em interesses políticos transitórios” avançassem no Senado.
O ministro compara o papel do PGR no impeachment de ministros ao da Câmara dos Deputados nos processos contra o presidente da República. “O impeachment do Presidente está sujeito à aprovação da Câmara, […] um importante filtro, apto a impedir que o processo […] seja aberto de forma precipitada ou movido por interesses momentâneos”, afirma. Segundo Gilmar, o PGR exerceria função semelhante — evitando que “qualquer cidadão sem preparo” pudesse acionar o Senado de maneira irresponsável.
A argumentação, porém, ignora que esse filtro já existe e sempre esteve nas mãos do próprio Senado. Desde a redemocratização, todos os pedidos de impeachment contra ministros do STF passaram pelo presidente da Casa, que exerce um juízo prévio de admissibilidade. Rodrigo Pacheco e Davi Alcolumbre, por exemplo, nunca acataram um único pedido, arquivando todos com base na falta de justa causa — exatamente o tipo de contenção institucional que Gilmar afirma ser necessária.
Ao criar um filtro adicional no Ministério Público, a decisão acaba substituindo um controle político-institucional previsto na Constituição por um filtro monocrático concentrado no PGR. A contradição aparece porque o filtro já operante no Senado — plural, estável e historicamente eficaz — é simplesmente desconsiderado como se não existisse, enquanto a liminar cria um novo mecanismo que não está previsto em lei e não tem precedentes no sistema brasileiro.
3. Gilmar intervém por temer uma interpretação futura, mesmo admitindo que o Senado sempre aplicou a correta
Em outro ponto da decisão, Gilmar Mendes afirma que a legislação atual pode gerar “extrações hermenêuticas inadequadas”, isto é, interpretações equivocadas da lei que, futuramente, poderiam autorizar um impeachment indevido. Para ele, essa “possibilidade” já seria suficiente para justificar a atuação do STF e a alteração das regras por meio de uma ADPF.
A contradição aparece ao notar que o próprio Senado declarou seguir exatamente a jurisprudência do STF sobre o tema, reconhecendo que ministros não podem ser impedidos pelo mérito de suas decisões jurisdicionais. A Casa reforçou que nunca aplicou interpretação que permitisse esse tipo de abuso — e que, quando pedidos são apresentados com esse fundamento, são arquivados de imediato.
Apesar disso, Gilmar sustenta que a mera “possibilidade futura” de uma leitura equivocada torna legítima a intervenção da Corte, mesmo que a prática institucional esteja correta há décadas. Trata-se de uma justificativa que se afasta do princípio da autocontenção judicial, segundo o qual o STF só intervém quando há lesão concreta e atual a preceitos constitucionais. Aqui, a motivação é preventiva — e baseada em hipótese, não em fato.
Com isso, o ministro reconhece que o sistema funciona, mas ainda assim decide alterá-lo por receio de que, algum dia, possa deixar de funcionar.
4. Decisão proíbe punir “mérito de votos”, mas dispositivos legais miram conduta, não interpretação jurídica
Ao fixar que o mérito de decisões judiciais não pode ser enquadrado como crime de responsabilidade, Gilmar Mendes faz referência ao chamado “crime de hermenêutica”, rejeitado amplamente pela doutrina. O ministro afirma que itens da Lei 1.079/1950 poderiam dar margem a interpretações que permitissem punir um ministro apenas por divergência jurídica.
Mas os dispositivos atacados — itens 4 e 5 do art. 39 — não tratam do conteúdo de decisões judiciais. Eles descrevem condutas funcionais como desídia no cargo ou comportamento incompatível com a dignidade do posto. O Senado observou que essas normas sempre foram aplicadas de forma restritiva, e que cabe à própria Casa avaliar se há justa causa antes de admitir uma denúncia.
Além disso, quando cidadãos alegam decisões judiciais como fundamento para impeachment, os presidentes do Senado têm arquivado de imediato, demonstrando que o sistema já neutralizou abusos antes mesmo da fase processual.
5. Gilmar extingue a iniciativa popular e cria conflito com o direito constitucional de petição
Ao suspender o trecho da Lei 1.079/1950 que permitia a “todo cidadão” denunciar ministros do STF e o procurador-geral da República, o ministro Gilmar Mendes estabeleceu que apenas o chefe do Ministério Público pode apresentar uma denúncia formal por crime de responsabilidade contra membros do Judiciário. A mudança concentra em uma única autoridade a porta de entrada de todo o processo de impeachment — etapa que antes também podia ser provocada pela sociedade civil.
A medida, porém, esbarra em um ponto sensível da Constituição. O artigo 5º, inciso XXXIV, assegura a qualquer pessoa o direito de petição aos Poderes Públicos “em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. Esse dispositivo sempre foi interpretado como garantia de que o cidadão pode provocar instituições do Estado, inclusive em casos que envolvam autoridades de alta hierarquia. Ao suspender essa possibilidade, a decisão cria tensão com um direito fundamental de acesso e participação republicana.
Os autores da ADPF argumentaram que o impeachment teria natureza semelhante à ação penal pública e, portanto, a denúncia deveria caber exclusivamente ao Ministério Público, enquanto manifestações de cidadãos seriam tratadas apenas como notitia criminis - informação levada às autoridades sobre a possível ocorrência de um crime. A liminar de Gilmar, porém, foi além dessa interpretação: não apenas conferiu exclusividade ao PGR, como suprimiu do ordenamento a legitimidade direta do cidadão, ainda que restrita ao ato de provocar o Senado.
A controvérsia surge porque, historicamente, essa participação popular nunca significou abertura automática de processos — cabia ao presidente do Senado filtrar e arquivar pedidos infundados, o que sempre ocorreu. Assim, ao eliminar essa possibilidade, a decisão acaba limitando o exercício de um direito constitucionalmente assegurado sem que haja, na prática, o abuso que ela busca prevenir.




