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Após COP-30

Adiamento de acordo União Europeia–Mercosul aponta novo fracasso da diplomacia de Lula

Ajuste: Lula, na reunião ministerial desta quarta-feira. Enquanto pesquisas indicam alta desaprovação, o petista acredita que o governo não encontrou a "narrativa correta" para convencer o eleitorado.
Lula tentou pressionar União Europeia para acordo com Mercosul. (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

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No próximo sábado (20), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve se reunir com os presidentes do Mercosul e terá que oficializar a eles que ainda não conseguiu fechar o acordo comercial do bloco com a União Europeia. Como presidente temporário do Mercosul, o brasileiro buscava capitalizar politicamente a assinatura do acordo, que deveria ocorrer nessa reunião, para se destacar como articulador internacional. Mas uma decisão da primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, de pedir mais tempo para negociar frustrou os esforços diplomáticos do petista.

O acordo começou a travar na União Europeia, pois ao menos 15 países, correspondendo a 65% da população do bloco, precisam aceitá-lo. A Itália poderia ser o voto decisivo para formar maioria no Conselho da União Europeia. Lula chegou a ameaçar os europeus de cancelar as negociações, que se arrastam por mais de duas décadas e meia.

Mas Meloni adiou sua decisão e Lula teve que recuar e tentar amenizar a situação afirmando que é preciso ter paciência porque Meloni "está vivendo um certo embaraço político por conta dos agricultores italianos".

A presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen anunciou que a negociação foi adiada para janeiro e cancelou sua viagem para a 67ª Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul no sábado (20). O governo do Paraguai começou a sinalizar então que também pode não aceitar o acordo.

O governo brasileiro tratava a data como estratégica, ainda pensando em ter projeção internacional após a COP-30, realizada em novembro no Pará, falhar em costurar um acordo com novas metas internacionais concretas para redução de emissões de gás carbônico e financiamento de esforços para combater o aquecimento global.

Além disso, o prazo da presidência temporária do Brasil no Mercosul está se esgotando. Lula assumiu o posto em julho e queria ser visto como o responsável por fechar o acordo agora em dezembro. Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Bolívia se alternam por períodos de seis meses na liderança do bloco. Não está claro se Lula vai tentar negociar sua permanência no comando por mais dias à espera de uma resposta da Itália.

“É um tratado que atravessa governos, crises e mudanças geopolíticas há 26 anos, sem jamais se converter em realidade prática e ainda há resistência entre países europeus que representam parte significativa da população e da economia. A mais recente incerteza vem da Itália”, avalia o economista e consultor de mercado, Rui São Pedro.

O acordo entre Mercosul e União Europeia promete trazer efeitos diretos para o bolso dos consumidores sulamericanos, principalmente por meio da redução ou eliminação gradual de tarifas de importação. Isso pode resultar em preços mais baixos e maior variedade de produtos nas prateleiras, já que mercadorias hoje taxadas passariam a circular com menos custos. No Brasil, por exemplo, haveria maior acesso a bens industriais europeus, como automóveis, medicamentos, máquinas, equipamentos eletrônicos e produtos químicos.

Além da queda de tarifas, o acordo estimularia a concorrência e ampliaria as opções disponíveis, o que, em geral, pressiona preços para baixo e incentiva melhorias de qualidade. Produtos industriais, como carros e autopeças, teriam redução gradual de impostos ao longo dos anos, enquanto alimentos e bebidas importados poderiam ganhar espaço de forma mais imediata ou por meio de cotas.

“O tratado tem potencial para baratear alimentos, bens de consumo duráveis e insumos industriais, ainda que seus efeitos sejam progressivos e variem conforme o setor”, destaca a economista Regina Martins.

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Acordo trava no Conselho da União Europeia

Há na Europa um grupo de países favoráveis ao acordo comercial, como Espanha e Alemanha, que enxergam nele uma resposta estratégica às políticas comerciais adotadas pelos Estados Unidos, com impactos tanto para a União Europeia quanto para o Brasil. Mas o tema ficou em segundo plano pois no momento os europeus estão discutindo nesta semana um tema que consideram mais emergencial: o financiamento da defesa da Ucrânia contra a invasão russa.

A possibilidade da assinatura do acordo esfriou de vez após a primeira ministra da Itália Giorgia Meloni sinalizar que fechá-lo agora “seria prematuro”. O presidente francês Emmanuel Macron tem reforçado que o acordo não pode ser assinado ainda sob forte pressão dos produtores locais.

Lula, que vinha confiante no destravamento, chegou a afirmar na quarta-feira (17) que o Brasil não pretende estender indefinidamente as negociações. Ele disse que caso o tratado não seja concluído ainda em dezembro, o governo brasileiro não voltará a colocá-lo na mesa enquanto durar o seu mandato, mas depois recuou e afirmou que conversou com Meloni e ela teria prometido que a Itália aprovaria o acordo em uma semana, 10 das ou um mês. A chancelaria italiana disse que daria uma resposta em breve mas não confirmou o prazo.

O presidente brasileiro também disse que o acordo é mais vantajoso para a União Europeia do que para o Mercosul. Ainda assim, afirmou que o Brasil segue disposto a concluir o tratado como um “gesto político em defesa do multilateralismo, em um momento de avanço de práticas unilaterais no comércio internacional".

“Vai além das divergências entre os europeus, tem um peso da negociação do Mercosul sob Lula que não avançou. A assinatura teria um peso político relevante, principalmente como presidente do bloco às vésperas de uma eleição presidencial”, destaca Regina Martins.

Ela lembra que além do protecionismo, países europeus não estão convencidos das práticas ambientais de produção, sobretudo brasileiras. “Eles ainda resistem sob temas ambientais e a COP-30 não foi capaz de dissolver essa impressão apesar de o agro brasileiro seguir rígidos padrões de produção e proteção ambiental”.

Na Itália, produtores rurais e ativistas ambientais comemoraram o adiamento da negociação. O Greenpeace conclamou líderes locais a protestarem contra o acordo, que a ONG considera "tóxico" por ser prejudicial ao meio ambiente e cheio de contradições em relação a uma relação sustentável entre a Europa e a América do Sul.

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Protecionismo do mercado europeu e a dificuldade em avançar com o Mercosul

A Europa vinha sendo considerada o último bastião do livre mercado, em uma época em que a maioria dos países intensificavam suas políticas protecionistas, incluindo o Brasil. Mas o protecionismo começou a ganhar força também no mercado europeu a partir da segunda metade da década de 2010, especialmente após 2016, quando a União Europeia passou a ampliar o uso de instrumentos de defesa comercial — como tarifas antidumping, cotas, salvaguardas e exigências ambientais e sanitárias mais rigorosas — para proteger setores considerados estratégicos, em especial à agricultura e à indústria de base.

Esse processo se intensificou após a pandemia de Covid-19, a partir de 2020, com a valorização do conceito de “autonomia estratégica”, e ganhou novo impulso com a guerra da Rússia contra a Ucrânia, em 2022, quando a UE passou a tratar comércio, segurança alimentar e cadeias produtivas como temas de soberania.

“Desde então, o bloco tem adotado medidas cada vez mais seletivas para taxar ou restringir produtos de países terceiros, combinando tarifas, regras ambientais e critérios de subsídios como forma de proteger produtores internos e reduzir dependências externas”, descreve Rui São Pedro. O mesmo é feito por Estados Unidos e nações asiáticas.

Para o analista Rui São Pedro, isso justifica novas salvaguardas que foram aprovadas pelo parlamento europeu nesta semana para um possível acordo Mercosul-UE. Elas passaram com ampla maioria — 431 votos favoráveis e 161 contrários — e instituem um sistema de acompanhamento específico para produtos considerados sensíveis, como carne bovina, aves e açúcar do Mercosul.

“O objetivo deles foi criar instrumentos que permitam reagir rapidamente caso o ingresso de mercadorias sul-americanas provoque desequilíbrios no mercado europeu, nisso a União Europeia avança para benefícios próprios enquanto o Mercosul parece apenas aguardar pelo acordo”, segue Martins.

O texto aprovado pelos congressistas nesta semana, mas que precisa ser validado pelo Conselho da União Europeia, prevê a possibilidade de reintrodução de tarifas sempre que houver indícios de desestabilização dos preços ou de aumento expressivo das importações.

“A versão endossada pelos eurodeputados é mais restritiva do que aquela inicialmente aceita pelos governos nacionais, ao reduzir os limites que acionam a intervenção da Comissão Europeia e naquilo que Lula apostava ser viável sob sua presidência do bloco”, avalia o consultor em mercado internacional, Paulo de Orso.

Pela nova regra, a Comissão poderá agir se o preço de um produto do Mercosul ficar ao menos 5% abaixo do praticado na UE e se o volume de importações com isenção tarifária crescer mais de 5%. Na proposta original, os gatilhos eram de 10%.

Antes dessa alteração, o modelo apresentado pela Comissão Europeia previa a abertura de investigações em três hipóteses principais: quando os preços de importação do Mercosul fossem 10% inferiores aos de produtos equivalentes europeus; quando houvesse aumento superior a 10% nas importações anuais sob condições preferenciais; ou quando os preços desses produtos recuassem 10% em relação ao ano anterior.

“Com a decisão do Parlamento, esses parâmetros se tornaram mais rígidos, refletindo a pressão política de setores agrícolas e incertezas sobre a capacidade de produção sul-americana com as regras e rigidez que eles cobram”, alerta o analista.

O ministro da Agricultura brasileiro, Carlos Fávaro, disse que, com diálogo, com trabalho, o Brasil até toparia discutir salvaguardas. "Não adianta a gente ficar procurando o acordo perfeito (...) Nós temos que implementar gradativamente e ir aperfeiçoando", disse. Para analistas políticos, esse seria mais um sinal que o próprio governo brasileiro está com um pé atrás sobre a assinatura ainda neste ano.

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Entre os principais elementos políticos que dificultam a assinatura e a implementação imediata, destacam-se:

Falta de consenso interno na União Europeia

O acordo continua refém das divisões políticas dentro do bloco europeu. Países como França, Polônia e agora Itália, mantêm oposição aberta, pressionados por seus setores agrícolas e por agendas ambientais domésticas. Esse dissenso fragiliza qualquer tentativa de assinatura solene. Segundo Orso, isso expõe a ausência de unidade política para sustentar o tratado no longo prazo e o governo brasileiro não poderá capitalizar para si um acordo que, mesmo que seja assinado, possa travar no momento das implementações.

Governos europeus enfrentam ciclos eleitorais, crises internas e avanço de movimentos mais protecionistas e conservadores. O doutor em direito internacional Luiz Augusto Módolo avalia que assinar um acordo com forte impacto simbólico sobre soberania alimentar e ambiental pode gerar custos políticos elevados, levando líderes a adotar uma postura defensiva ou protelatória. Somado a isso, existe a resistência intensa do governo francês, considerado aliado de primeira hora do governo brasileiro. “Nem a proximidade de Macron e Lula tem feito o acordo ser aceito entre os franceses, imagine entre países com governos mais conservadores e alinhados à direita”, alerta Paulo de Orso.

Uso político do acordo como moeda diplomática

Segundo Rui São Pedro, o tratado tem sido utilizado mais como instrumento de barganha geopolítica do que como prioridade real. “Para setores da União Europeia, ele serve como contraponto estratégico aos Estados Unidos e à China; para o governo brasileiro, como vitrine internacional e capitalização política já de olho em 2026”, destaca. “Essa assimetria de interesses dificulta compromissos concretos e, mesmo o acordo sendo assinado, o que se mostra cada vez mais distante, sua efetivação depende de um processo longo e burocrático que pode levar anos”, completa.

Mesmo entre países favoráveis ao acordo, há receio quanto à capacidade política dos governos do Mercosul, sobretudo do Brasil que é o maior produtor e exportador do bloco, de cumprir cláusulas ambientais, regulatórias e institucionais. Isso reforça a tendência europeia de empurrar decisões para etapas posteriores de ratificação parlamentar.

Mesmo com a eficiência do setor do agronegócio brasileiro, a diplomacia de Lula não tem sido capaz de dar garantias confiáveis de que os produtos alimentícios do Brasil passam por processos de certificação, qualidade e de preservação do meio ambiente. Os europeus ainda consideram que a falta de fiscalização e controle do governo podem dar uma vantagem competitiva desleal aos produtos brasileiros.

O professor de Direito Internacional da PUC-SP, Cláudio Finkelstein, demonstra ceticismo quanto a efeitos imediatos decorrentes da eventual assinatura do tratado. Segundo ele, há um ano, quando o acordo foi anunciado, o ambiente era de maior entusiasmo e convergência, mas os obstáculos identificados à época permanecem praticamente inalterados. Embora reconheça que hoje existam mais estímulos políticos, Finkelstein avalia que eles ainda não são suficientes para superar o conflito de interesses entre os países europeus.

Sensibilidade do momento político brasileiro

Internamente, o Brasil enfrenta polarização política e questionamentos sobre governança ambiental e institucional. “Um eventual fracasso na assinatura após forte expectativa diplomática pode ser interpretado como enfraquecimento da diplomacia brasileira, especialmente após a tentativa de protagonismo global associada à COP-30. O próprio governo brasileiro acompanha com cautela e sabe que as salvaguardas podem restringir, no futuro, os ganhos esperados com o tratado”, alerta o doutor em ciências políticas, Gustavo Alves.

Embora o Itamaraty mantenha uma visão positiva quanto à assinatura do acordo, há preocupação com as salvaguardas destinadas a proteger agricultores europeus. “Na avaliação interna, essas medidas ampliam a margem para a suspensão de benefícios tarifários concedidos ao Mercosul, introduzindo incertezas e sinalizando desconfiança entre os blocos”, completa.

Ainda que houvesse a assinatura, o acordo dependeria da aprovação dos parlamentos dos 27 países da UE e dos membros do Mercosul. “Esse processo é politicamente imprevisível, sujeito a vetos nacionais, judicializações e revisões, o que retira urgência e compromisso real da etapa inicial”, completa Rui São Pedro.

Histórico de adiamentos e promessas frustradas

O fator político mais simbólico é o próprio histórico do acordo: anunciado, renegociado e relançado repetidas vezes ao longo de 26 anos. Esse passado alimenta ceticismo, após fracassos de governos após governos – entre eles, 17 anos de gestões do PT. Diplomatas e analistas veem a assinatura, se ocorrer, mais como um gesto político do que um ponto de virada efetivo.

Para Alves, ainda que o acordo permaneça vivo como projeto estratégico, a tendência é que ele continue sendo administrado politicamente — com anúncios, recuos e reembalagens — sem produzir efeitos imediatos. Segundo ele, o adiamento atual do acordo representa não apenas um contratempo técnico, mas uma derrota diplomática relevante para o Brasil no pós-COP-30.

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