As ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ganharam espaço no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e propiciaram um recorde de invasões logo nos primeiros 100 dias de 2023. De janeiro a abril, o número de invasões a imóveis rurais no Brasil alcançou uma marca maior do que a registrada em cada um dos 5 últimos anos: 33 invasões. O movimento invadiu também 12 sedes estaduais do Incra. São, portanto, 45 invasões no total. Mesmo com a pressão do MST sob a gestão petista, os parlamentares da base de Lula não conseguiram barrar a leitura de um requerimento que é o primeiro passo para a realização de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Ela deve ser composta por 54 deputados federais (entre titulares e suplentes) e pode investigar quem financia as invasões e como são organizados os movimentos que as coordenam.
Diante do cenário de constantes invasões, o governo Lula tem sido pressionado por lideranças do agronegócio, políticos e diretamente por proprietários de terras em todo o Brasil, pois eles temem que as áreas deles ou do setor que representam sejam invadidas.
Em reação à crise gerada pelas invasões, os ministros da Agricultura e Pecuária e das Relações Institucionais do governo Lula, Carlos Fávaro e Alexandre Padilha, respectivamente, chegaram a condenar as ações do MST e classificá-las como inaceitáveis. Mas, a crítica ficou só no discurso e não resultou em ações práticas.
Já o ministro do Desenvolvimento Agrário (MDA), Paulo Teixeira, tem assumido um papel conciliador. Ele disse que o governo responderá nos próximos meses com um novo programa de reforma agrária, cedendo assim à pressão do MST sem criticar as invasões ilegais de terras.
Ele também criou e liderou grupos de negociação para a desocupação das áreas invadidas, como ocorreu no caso das invasões em áreas da Suzano, na Bahia e no Espírito Santo, e da unidade de pesquisas da Embrapa, em Pernambuco.
Em outra tentativa de blindar o movimento, Teixeira chegou a dizer que o MST reivindicava a área da Embrapa por não haver pesquisas lá. “Muitos cientistas me ligaram e disseram que realmente não há pesquisa naquela unidade. Mas eu disse a eles [MST] o seguinte: 'Vamos sair de lá e reivindicar o retorno da pesquisa naquela unidade'”, complementou o ministro, ignorando a nota oficial da Embrapa que afirma que a invasão “atingiu ainda áreas de preservação da Caatinga, comprometendo a vida de animais ameaçados de extinção, além de pesquisas para conservação ambiental e de uso sustentável do Bioma”.
As declarações foram dadas durante audiência pública realizada pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, da Câmara dos Deputados, na quarta-feira (26). Consultada, a Embrapa não quis comentar a fala do ministro.
Governo Lula distribuiu cargos ao MST ao invés de combater invasões de terras
Além disso, desde o início de seu terceiro mandato, Lula tem dado cargos a membros do MST. Na tentativa de aproximá-los de seu governo, o petista nomeou integrantes da cúpula do movimento para cargos importantes como a presidência da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). O presidente também fez sinalização positiva ao movimento quando incluiu seu principal líder, João Pedro Stédile, na comitiva oficial que viajou para a China.
A disposição do governo para negociação fez com que o MST exigisse também a troca de comando das superintendências estaduais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O movimento sugeriu pessoas aliadas às suas pautas para ocupar esses cargos e foi atendido pelo governo. O Incra já nomeou 23 novos superintendentes, em um total de 29 unidades.
O poder de mobilização do MST dentro do governo Lula rendeu também uma série de reuniões com representantes do Incra, da Conab, da Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater), do Ministério da Educação (MEC), do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), da Secretaria Geral da Presidência, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e do Ministério da Cidadania (MDS). Segundo fontes do movimento, todos esses órgãos criaram grupos de trabalho para tratar das demandas apresentadas e demonstraram disposição em colaborar.
Representantes do MST estiveram também com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. A busca por mais recursos para a aquisição de terras para a reforma agrária estava na pauta. De acordo com integrantes do movimento, a estimativa é que sejam necessários pelo menos R$ 1 bilhão para atender a demanda. Hoje, o orçamento já prevê R$ 2,4 milhões para adquirir terras com este fim.
Falta de ações dos governos
A falta de ações efetivas por parte dos governos federal e da Bahia para coibir as invasões fez com que agricultores se organizassem para agir por conta própria. Segundo o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária da Bahia (Faeb), Humberto Miranda, cerca de 20 grupos estão monitorando a situação para evitar possíveis violações da lei. Além da troca de informações com outros proprietários, a entidade cobra que as autoridades cumpram, por exemplo, decisões para a reintegração de posse.
A preocupação dos donos das terras ocorre também em razão do posicionamento de representantes do Estado. No começo do mês, o secretário de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, Felipe Freitas, afirmou que o estado não iria tolerar o uso de "milícias privadas" para as invasões no campo. A declaração ocorreu em referência a uma suposta reação armada dos proprietários de terra - o que não ocorreu.
“A luta pela terra é um direito legítimo dos trabalhadores, como é direito dos proprietários defenderem suas propriedades; mas isso tem que se estabelecer por meio do Estado. São as polícias que têm que garantir o cumprimento da lei. Qualquer formação de milícia privada, grupo privado para defesa interesses não faz parte do jogo democrático e não será tolerado pelo governo [da Bahia]”, disse Felipe Freitas.
Além da Bahia, entidades de outros estados também têm emitido orientações em caso de invasão de propriedades por movimentos de sem-terra. A Federação da Agricultura do Estado do Paraná (Faep) divulgou em seu site a recomendação de que os produtores rurais tenham uma “reação moderada, proporcional à investida sofrida”.
Diz o texto: "Todo e qualquer ato de violência deve ser repudiado e deve-se prezar fundamentalmente pela segurança própria, mas a lei (art. 1210 do Código Civil[2] e 25 do Código Penal[3]) autoriza a defesa da propriedade com os meios necessários e suficientes para afastar perigo de invasão.
O Art. 1210, §1º do Código Civil autoriza o possuidor turbado ou esbulhado, manter-se ou restituir-se na posse do imóvel por sua própria força, contanto que faça logo. Os atos de defesa ou de esforço não podem ir além do indispensável à manutenção ou restituição da posse.
Ou seja, além de ser possuidor do imóvel e agir de forma imediata, a pessoa só pode reagir de forma moderada, proporcional à investida sofrida, utilizando-se apenas da força necessária para repelir o agressor, dentro dos limites possíveis, sem extrapolar para violências ou outras práticas que possam incriminá-lo".
Oposição aponta conivência do governo Lula em relação ao MST
Membro da oposição ao governo Lula na Câmara e autor do requerimento da CPI do MST, o deputado federal tenente-coronel Zucco (Republicanos-RS) avalia que as invasões do MST não estão sendo repreendidas - em especial pelo ministro Paulo Teixeira. “Na prática, em nenhum momento ele falou que não vai permitir, que não vai admitir os crimes que estão sendo feitos nas invasões das propriedades privadas”, pontuou o parlamentar. Ele mencionou também a "proteção" ao movimento por parte do governo Lula durante a audiência pública na Câmara com o ministro petista.
Já Teixeira chegou a afirmar que as "ocupações” feitas pelo MST não resultaram nas nomeações feitas até agora no governo Lula. A afirmação, no entanto, contraria matérias publicadas no site oficial do MST e cartas públicas que cobram a saída do que chamam chamada de "bancada ruralista e de bolsonaristas" do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), alegando que os mesmos seriam contra a reforma agrária. Além das exonerações, em nota, o MST aponta nomes para ocupar cargos.
No mesmo evento, o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado Pedro Lupion (PP-PR), enfatizou que os objetivos do MST são eminentemente políticos e que não se limitam à busca pela propriedade de terra.
“Quando a gente fala em invasões, é óbvio que a gente pensa: ‘Ah, é um movimento que está lutando efetivamente para ter direito à terra e poder ser produtor’. Não é o que nós estamos vendo. Infelizmente, o que a gente tem visto é um movimento político, buscando mandar recado para a política e buscar efetivamente atender seus anseios, como principalmente a questão de ter os cargos nas regionais do Incra, nas superintendências, nomear gente dentro do governo, dentro dos ministérios, dentro das empresas”, disse Lupion.
Instalação da CPI do MST
Apesar do protagonismo que assumiu e da proteção do governo Lula, MST será um dos alvos da CPI que deve investigar os movimentos sociais ligados às invasões de terras no Brasil. Interlocutores do movimento afirmam que a gestão petista nada fez diante dos pedidos para interferir na decisão do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, de instalar a CPI do MST.
A expectativa da oposição é de que a CPI seja dominada por membros contrários à atuação do MST. A bancada que forma a FPA deve influenciar as indicações para compor a comissão, além de indicar os nomes do presidente e do relator, que têm papel dar o direcionamento para o andamento dos trabalhos de investigação.
“Não é barato e não é fácil fazer uma mobilização tão forte quanto essas que fizeram no carnaval e agora no mês de abril, principalmente essas invasões organizadas como foi o caso da Embrapa e da Suzano. Precisamos saber efetivamente quem está pagando esta conta e se há participação do Estado brasileiro”", disse o presidente da FPA ao comentar os objetivos da CPI.
Deputado petista chama títulos de terra entregues por Bolsonaro de "fake news"
Ainda durante a audiência, o deputado federal Bohn Gass (PT-RS) chamou de fake news as titulações de propriedades entregues no governo Bolsonaro. Em sua fala, o deputado enfatizou que “se no governo passado disseram que fizeram a maior titulação: deram título e não deram um hectare de terra. Isso não é Reforma Agrária, isso é fake news”. Na sequência, o parlamentar gaúcho questionou se as titulações foram “frias” e concluiu dizendo que elas foram provisórias e, portanto, incompletas.
Dados do Incra, obtidos pela Gazeta do Povo, apontam que entre 2019 e 2022 foram expedidos 451.526 documentos titulatórios. Nos balanços, 367.748 documentos são apontados como provisórios e 83.778 são documentos definitivos.
Os provisórios, chamados de Contrato de Concessão de Uso (CCU), são documentos de titulação expedidos pelo Incra, que garantem a permanência e a exploração de lotes em assentamentos. O CCU assegura também o acesso aos créditos oferecidos pelo Incra e a outros programas do governo federal de apoio à agricultura familiar. O CCU é o documento de titulação que antecede o Título de Domínio, considerado definitivo.
Procurado para comentar as afirmações do deputado Bohn Gass, Geraldo Melo Filho, que foi presidente do Incra no governo Bolsonaro, afirmou que as acusações do petista são “um jeito para se justificar, pois na prática, eles não pretendem continuar reconhecendo o direito dessas famílias de serem donas dos seus pedaços de terra”.
Melo Filho destacou ainda que houve uma priorização dada nos últimos quatro anos para a titulação e a regularização fundiária. “Não houve inovação na legislação para a titulação de terras. Usamos a Lei 8.629, de 1993, que regulamenta os dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, e a Lei 11.952 de 2009, sobre a regularização fundiária. A mesma legislação usada nos governos anteriores, inclusive nos governos Lula”, afirmou.
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