A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes que determinou o bloqueio da rede social X no Brasil tem diversas falhas e irregularidades, segundo juristas ouvidos pela Gazeta do Povo. Isso porque ela pode punir com multas de R$ 50 mil mais de 20 milhões de usuários da rede que não são partes no processo, extrapola limites legais e cria uma nova espécie de ato jurídico que pode ser comparado a instrumentos usados na censura durante o regime militar.
O advogado Adriano Soares da Costa afirmou que, por meio de uma decisão monocrática, Moraes estabeleceu um instrumento jurídico similar a uma Medida Provisória, “que veicula norma geral e abstrata para todos os brasileiros, em substituição ao Congresso Nacional e ao Colegiado do STF, sem processo e sem rito. Um ato de poder absoluto e supremo de um ministro do STF”, avaliou.
Segundo o jurista, a decisão, que tem efeitos gerais e abstratos, como se fosse lei, atinge quem não é investigado, aqueles que nunca serão por ela intimados, ou seja, “é uma aberração jurídica sem precedentes”. Além de avaliar que se trata de “uma usurpação da competência do Congresso Nacional”, a decisão configura uma “inovação inimaginável no sistema jurídico, sem amparo na Constituição”.
O jurista equipara o ato de Moraes a um ato institucional do regime militar por ser baseado unicamente na vontade do ministro e na força de seu cargo.
Alexander Coelho, sócio do Godke Advogados e especialista em Direito Digital e Proteção de Dados, avalia que, do ponto de vista técnico e jurídico, a decisão de Moraes levanta questões significativas. Segundo o jurista, o Marco Civil da Internet exige que o bloqueio de contas de redes sociais ocorra com base em ordem judicial específica e após o devido processo legal, garantindo os direitos de defesa.
Nesse sentido, Adriano Soares da Costa observa que a suspensão de perfis nas redes sociais é “medida extrema que necessita da observância da Constituição e do Marco Civil da Internet”. Ele destaca que o Marco Civil estabelece a necessidade de que sejam aplicados o devido processo legal, a indicação inicial dos links com postagens ilícitas, o direito ao contraditório e à ampla defesa daqueles cujas contas e publicações sejam alvo de suspensão ou bloqueio. Seria virtualmente impossível fazer isso para todos os brasileiros usuários do X com a tecnologia atual.
Bloqueios foram determinados sem direito à ampla defesa ou contraditório
No caso do X, as ordens estavam sendo expedidas pelo magistrado no âmbito do inquérito das fake news por meio de despachos sigilosos, "sem processo, sem ampla defesa, sem contraditório", conforme afirma Adriano Soares.
Em abril deste ano, o jornalista americano Michael Shellenberger e a Gazeta do Povo expuseram o Twitter Files Brasil, que consistiu na divulgação de uma série de ordens judiciais, advindas de Moraes e de seu gabinete, para bloquear perfis e publicações na rede durante as eleições presidenciais de 2022. Na maior parte dos casos tratava-se de apoiadores de Bolsonaro ou de influenciadores da direita – embora alguns perfis de esquerda também tenham sofrido sanções.
Os documentos foram disponibilizados pelo próprio X. Após comprar a rede social em 2022, Elon Musk colocou à disposição de jornalistas uma série de documentos internos do então Twitter, incluindo ordens judiciais e mensagens de governos solicitando a censura de temas, perfis e publicações.
Nos Estados Unidos, país onde as revelações tiveram início e foram primeiramente denominadas de Twitter Files, a rede revelou que temas sensíveis foram censurados ou tiveram sua distribuição limitada na rede social. Alguns desses temas diziam respeito a publicações sobre a Covid-19, que posteriormente se mostraram verdadeiras.
Outras navegavam por um território mais cinzento, como o caso do laptop de Hunter Biden, filho do presidente Joe Biden. Hunter deixou o aparelho em uma loja de reparos em 2020 e seus dados foram vazados para o jornal New York Post. O jornal alegou que e-mails vazados apontariam para um esquema de corrupção envolvendo Joe Biden. Provas conclusivas em relação a Joe não foram encontradas, mas alguns analistas alegaram que a investigação não foi levada até o fim.
No Brasil, quando da revelação dos Twitter Files Brasil, parlamentares e influenciadores que haviam tido seus perfis bloqueados durante ou depois das eleições de 2022, disseram ter tido acesso às decisões de Moraes pela primeira vez, mesmo após reiterados pedidos de suas defesas para saber do que estavam sendo acusados.
À época da divulgação do caso no Brasil, o Comitê Judiciário do Partido Republicano dos Estados Unidos divulgou um relatório parcial da Câmara dos Estados Unidos que acusou Moraes, que ainda presidia o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de censurar a direita brasileira no X.
Desde Twitter Files Brasil, Musk e Moraes se enfrentam em troca pública de acusações
Quando os abusos de Moraes foram revelados pelo Twitter Files, Elon Musk usou seu perfil no X para chamar Moraes de ditador do Brasil, entre outras qualificações, comparando-o, inclusive, a vilões de Holywood, como Voldemort, da série de filmes Harry Potter. Nessa semana, o bilionário voltou a criticar abertamente o ministro do STF. Moraes acusou Musk de crimes e o incluiu no inquérito das milícias digitais.
Moraes impunha prazos curtos para a suspensão de perfis e publicações em suas decisões, muitas vezes duas horas, sob sanções como multas. Mesmo depois das polêmicas geradas em abril pelos Twitter Files, o magistrado manteve sua linha de ação no início de agosto deste ano.
No dia 13 de agosto, o X voltou a publicar ordens sigilosas de Moraes solicitando a derrubada de perfis, incluindo o do senador Marcos do Val (Podemos-ES). Por meio de sua conta oficial de relações governamentais, o X afirmou que "o ofício exige a censura de contas populares no Brasil, incluindo um pastor, um atual parlamentar e a esposa de um ex-parlamentar". A mensagem também diz: "Acreditamos que o povo brasileiro merece saber o que está sendo solicitado a nós".
Diante da ameaça de prisão de seus funcionários caso não cumprisse as ordens de bloqueio emitidas por Moraes, quatro dias depois, a rede fechou seu escritório no Brasil e demitiu todos os seus empregados. Na quarta-feira (28), Moraes intimou a rede a indicar um representante legal no Brasil, sob o risco de bloqueio dos serviços no Brasil, por meio do perfil do STF no X.
Além disso, o ministro congelou os ativos da Starlink no país, a empresa de internet via satélite na qual Musk é o acionista minoritário. No entanto, a rede não é vinculada ao X, mas à SpaceX, outra empresa de Musk nos Estados Unidos para o lançamento de foguetes e satélites, além da realização de viagens espaciais.
Em resposta, transcorrido o prazo de 24h dado pelo ministro à rede para cumprir com sua decisão, na noite da quinta-feira (29) o X anunciou que não acataria as ordens de Moraes por violarem as próprias leis brasileiras e que esperava o bloqueio de suas atividades no país em breve. A Starlink também afirmou que estava recorrendo das decisões de Moraes a respeito da empresa no Brasil, mas os recursos foram negados.
Decisão de Moraes afirma que o X era utilizado em ameaças e coações
Em sua decisão de bloqueio da rede, nesta sexta-feira, Moraes afirmou que os recentes pedidos de suspensão de perfis e contas foram feitos no âmbito de uma investigação que “demonstrou a participação criminosa e organizada de inúmeras pessoas para ameaçar e coagir delegados federais que atuam ou atuaram nos procedimentos investigatórios contra milícias digitais e a tentativa de golpe de Estado”.
De acordo com a decisão, “as redes sociais – em especial a “X” - passaram a ser instrumentalizadas com a exposição de dados pessoais, fotografias, ameaças e coações dos policiais e de seus familiares”. Dentre os investigados estão o jornalista brasileiro Allan dos Santos, que pediu asilo político aos EUA, Mariana Volf Pedro Eustáquio, filha do jornalista Oswaldo Eustáquio – que a decisão afirmou estar atuando ilegalmente por meio dos perfis da filha – e Sandra Mara Wolf Pedro Eustáquio, Ednardo D’Ávila Mello Raposo, um pastor, e o senador Marcos do Val.
Alexander avalia que ao impor prazos curtos e ameaçar com multas e prisão as redes sociais, há uma percepção de que Moraes pode ter ultrapassado limites, levantando preocupações sobre a possível violação de garantias constitucionais e a segurança jurídica. “Contudo, a aplicação da lei no Brasil exige que plataformas como o X respeitem as decisões judiciais, mas isso deve ser feito sem comprometer as liberdades fundamentais”, complementa.
Decisão de Moraes viola devido processo legal
A esse respeito, Adriano Soares da Costa avalia que o X passou a recorrer das decisões de Moraes e a solicitar o respeito ao Marco Civil da Internet que garante o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, o que não havia nesses casos.
O jurista ainda explica que o X teve seus recursos negados e nunca julgados, sendo que a resposta do magistrado sempre foi emitir novas multas. Além disso, ele avalia que a ordem de prisão dada por Moraes aos representantes da rede no Brasil, caso o bloqueio dos perfis não fosse realizado, nem sequer procede, por ausência de previsão legal – ou seja, não está previsto em lei.
“Agora, sem o devido processo legal, sem direito de defesa, sem contraditório, sem iniciativa do Ministério Público, o ministro Moraes, monocraticamente, determinou a suspensão do “X” no Brasil inteiro, impedindo a plataforma de funcionar”, afirmou.
Outro ponto destacado pelo jurista é que o magistrado não somente bloqueou o X, mas também a “oferta de empresas ou aplicativos de VPN, que são regulares e atuam licitamente no mercado, e mesmo sem ser parte em processo ou investigação, foram banidas do Brasil”.
Ainda na noite da sexta-feira (30), Moraes expediu nova ordem, sustando a suspensão da oferta de VPN por lojas de aplicativos móveis, como a AppleStore e a GooglePlay, até que o X se manifesta a respeito do bloqueio de suas atividades no país, com prazo de cinco dias.
Ato de Moraes seria comparável a instrumento de censura do regime militar
A suspensão temporária da ordem de Moraes, no entanto, não susta outro ponto mais que controverso de sua decisão: aplicação de multa de R$ 50 mil para quem utilizar VPN para acessar o X. Adriano afirma que, deste modo, qualquer brasileiro que usar VPN “passar a estar sob ameaça de multa diária, sem que exista lei, sem que exista processo e sem que haja qualquer ilicitude na conduta”.
O jurista e especialista em liberdade de expressão, André Marsiglia, também afirma que a ordem é ilegal, pois uma punição jamais pode alcançar terceiros que não sejam parte de um processo. "Não se pune ninguém sem que tenha sobre si um processo. É um princípio básico de legalidade", afirma.
Outro ponto é a aplicação prática da decisão, que seria inviável. "O STF vai abrir um setor para vigiar se 22 milhões de usuários cumprem a decisão? Seria um absurdo que transformaria a Corte em polícia de internet", questionou. Diante da inviabilidade de "policiar" todos os usuários da rede, Marsiglia afirma que o STF teria que escolher perfis específicos para vigiar, configurando "uma conduta política, não jurídica e, por isso mesmo, também ilegal".
Adriano Soares afirma que nunca na história da República brasileira, “uma decisão judicial, em procedimento sem processo, em procedimento investigatório sigiloso, teve tamanha profundidade, extensão e desprezo aos mais mínimos postulados do Estado Democrático de Direito”.
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