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Crise entre os Poderes

Cassação de Zambelli por Moraes deflagra nova escalada da crise entre Congresso e STF

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Cassação de Carla Zambelli foi barrada pela Câmara em meio a crise do Congresso com o STF. (Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados)

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A derrubada pela Câmara do pedido de cassação de Carla Zambelli (PL-SP) na madrugada de quinta-feira (11) deflagrou nova escalada de tensões entre o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Apesar da decisão da maioria do plenário pela manutenção do mandato da deputada, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, considerou a votação "nula" e reafirmou no mesmo a perda imediata do mandato dela. A decisão de Moraes foi confirmada pela Primeira Turma do Supremo nesta sexta-feira (12).

Com a decisão, Moraes ainda determinou que o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), efetive a posse do suplente Coronel Tadeu (PL-SP) no prazo máximo de 48 horas, conforme o artigo 241 do Regimento Interno da Casa. Segundo o ministro, a deliberação dos deputados, que havia rejeitado a perda do mandato de Carla Zambelli, "ocorreu em clara violação" à Constituição.

A medida de Moraes se soma a uma série de decisões controversas do ministro envolvendo deputados e senadores, que têm alimentado debates acirrados sobre a ingerência do Judiciário nos demais Poderes. A tensão institucional segue pressionada pela liminar do ministro Gilmar Mendes, do STF, editada na semana passada e da qual recuou só parcialmente, para suspender trechos da lei de impeachment e proteger juízes da Corte.

O deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS) ressaltou que a decisão de Moraes, que anulou a votação da Câmara e cassou o mandato de Zambelli, afronta a Constituição e o equilíbrio entre os Poderes. “O artigo 55, parágrafo segundo, determina que, diante de condenação criminal, quem decide é o Parlamento, jamais pela canetada de um único ministro”, sublinha. Ele entende que a Câmara cumpriu a regra legal e a sua decisão não pode ser substituída por ordem judicial. “É um delírio de Moraes, sem base jurídica alguma”.

Na mesma linha, o advogado Enio Viterbo, doutor em História pela Universidade de Lisboa, também avalia que Alexandre de Moraes atropelou a Constituição ao anular a decisão da Câmara que preservou o mandato de Carla Zambelli. Ele lembra que, em caso semelhante, o então ministro Luís Roberto Barroso suspendeu a sessão que manteve o mandato do então deputado Natan Donadon, mas deixou claro que não havia perda automática, cuja declaração caberia à Mesa da Câmara.

Para Viterbo, Moraes foi além: anulou a decisão da Mesa e decretou a perda imediata do mandato, em afronta direta ao artigo 55 da Constituição, que atribui essa competência exclusivamente à Câmara. “Ainda que pudesse suspender a sessão, jamais poderia determinar a perda do mandato”, afirmou nas redes sociais. Segundo o advogado, se a ordem for cumprida pelo presidente da Câmara, Hugo Motta, abre-se uma “Caixa de Pandora”, permitindo ao STF cassar mandatos parlamentares à revelia do texto constitucional.

Para o cientista político e consultor eleitoral Paulo Kramer, o STF deveria se limitar a interpretar o que a Constituição efetivamente diz, e não o que as “excelências não eleitas gostariam que ela dissesse”. Segundo ele, o país já fez uma guinada à direita, mas o establishment alojado no Estado insiste em não reconhecer essa mudança, contribuindo para aprofundar a crise institucional. “E olha que a Constituição já tem inúmeras falhas — o STF não precisava agravá-las ainda mais”, diz.

A expectativa agora é de que a disputa entre os Poderes se intensifique na próxima semana, quando os deputados devem analisar os processos de Alexandre Ramagem (PL-RJ) e Eduardo Bolsonaro (PL-SP). "O Brasil viu um ato de usurpação institucional: um homem (Moraes) passando por cima do Parlamento e da vontade do povo. Isso fere a democracia no seu coração", disse Sóstenes Cavalcante (RJ), líder do PL na Câmara.

A base governista até tentou se articular para que o mandato da deputada fosse cassado na quarta-feira (10), mas conseguiu reunir só 227 votos a favor e 110 contrários — número insuficiente para os 257 votos necessários. Até então, a decisão dos deputados impedia a execução de parte da sentença do STF que determinava a perda automática do mandato de Zambelli.

Líderes do Centrão ouvidos pela Gazeta do Povo admitem que a medida foi uma forma de mandar um recado ao STF diante do avanço do Judiciário sobre o Legislativo. Apesar disso, a deputada da oposição, que está presa na Itália, não deve escapar de perder o mandato. O PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, trabalhou para contornar a cassação, para esperar que Carla Zambelli perca o mandato por faltas.

Pela regra atual, ela mantém a elegibilidade nessa condição. Caso tivesse o mandato cassado, ficaria o tempo de cumprimento da pena mais oito anos fora das urnas. Ela só poderia participar de uma eleição novamente depois de 2043.

Carla Zambelli foi condenada pela Corte a 10 anos de prisão por invadir sistemas de mandados judiciais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com a ajuda do hacker Walter Delgatti Neto. O acórdão também determinava a cassação imediata do mandato, seguindo a jurisprudência consolidada desde o caso Daniel Silveira.

A deputada, porém, afirmou ser vítima de “perseguição política” e está presa desde 29 de julho, após entrar na lista de procurados da Interpol. O advogado de Zambelli, Fábio Pagnozzi, criticou a "fragilidade" das provas que incriminam a deputada e ressaltou que a condenação se baseou no depoimento questionável do hacker Walter Delgatti, por ter alterado seis vezes o próprio testemunho, conforme perícia contratada pela defesa.

Ainda segundo Pagnozzi, Zambelli comentou que renunciaria caso tivesse seu mandato mantido, para não incomodar os demais deputados. "A Carla Zambelli só quer dignidade. "Tudo o que a deputada mais quer é que não seja cassada, para ela ter dignidade onde está presa. Pois só mostrando à Justiça italiana que seus pares não a cassaram, ela vai ter uma chance de ficar livre", disse.

Decisão sobre Zambelli ocorre em meio à crise entre Legislativo e Judiciário

A votação para salvar o mandato de Zambelli ocorreu no ápice da tensão institucional entre o Congresso e o STF. Nos últimos dias, a crise se agravou após o ministro Gilmar Mendes restringir exclusivamente à Procuradoria-Geral da República (PGR) a possibilidade de apresentação de pedidos de impeachment contra ministros do Supremo.

A decisão gerou forte reação do Legislativo, que acusou interferência em suas prerrogativas. Pressionado, Gilmar recuou parcialmente nesta quarta-feira (10) e retirou o tema do plenário virtual, empurrando a análise para uma sessão presencial — provavelmente apenas em 2026.

Para críticos, a manobra pode blindar ainda mais os magistrados e aprofundar a crise institucional. “O ministro Gilmar Mendes ultrapassa todos os limites, concentrando o poder e rasgando a Constituição. Se essa decisão não é uma ruptura do Estado de direito, não sei mais o que é uma ruptura”, disse Luciano Zucco (PL-RS), líder da oposição na Câmara.

Para parlamentares de diversos partidos, o recuo de Gilmar somado à decisão da Câmara sobre Zambelli forma um conjunto de movimentos que evidencia que o embate entre os Poderes chegou a um novo patamar. Ao praticamente inviabilizar a tramitação de pedidos de impeachment de ministros do STF, Gilmar evidenciou articulações no Senado para mudar regras.

O recuo só ocorreu em meio a debates sobre projeto de lei no Senado para alterar a Lei do Impeachment. O foco dessa articulação é o projeto de nova Lei do Impeachment (PL 1.388/2023), apresentado pelo ex-presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e elaborado por juristas sob a coordenação do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, que é ex-integrante da Corte.

A proposta busca substituir a Lei 1.079/1950, mas inclui pontos controversos — como a previsão de que ministros do STF não possam ser responsabilizados por suas interpretações da Constituição, o que reproduz posição da liminar de Gilmar. O projeto estagnou por meses na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), mas agora tende a ganhar impulso, com apoio de setores do Judiciário e do Legislativo.

O professor de Ciências Políticas Elton Gomes, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), ressalta, contudo, que o recuo de Gilmar não representa paz definitiva, mas apenas uma trégua enquanto se observa a recomposição das forças e o desenrolar de fatores imponderáveis — entre eles, o escândalo do banco Master, cujo potencial explosivo, afirma, “vai chamuscar todo mundo”. "O sistema político busca nova estrutura de acomodação, mas o STF, dotado hoje de poderes excepcionalíssimos, dificilmente retornará ao seu quadrado original".

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Para especialistas, invasão de prerrogativas do Congresso pelo STF atingiu o ápice

Arcênio Rodrigues da Silva, mestre em Direito, com especialização em Direito Público e Tributário, destaca o caráter personalista das medidas polêmicas tomadas pelo Judiciário que interferem nas prerrogativas do Legislativo.

"Esse gesto do Gilmar, por exemplo, reforça a percepção de que o STF, em alguns momentos, não só interpreta a Constituição, mas interfere de maneira proativa no equilíbrio institucional, sobretudo quando decisões individuais assumem caráter estrutural, com impacto direto sobre a relação entre os Poderes. Para além da tecnicalidade jurídica, há uma dimensão simbólica: o STF fala, mais uma vez, por meio de um único ministro", explica.

O cientista político e consultor eleitoral Paulo Kramer avalia que o placar da votação para confirmar ou não a cassação da deputada Carla Zambelli na Câmara, levando o processo a ser arquivado, expôs ainda fissuras na direita e na centro-direita, que, segundo ele, ainda precisarão cicatrizar antes de qualquer recomposição sólida. Apesar da derrota da esquerda, a vitória temporária da deputada de oposição ocorreu por insuficiência de votos dos governistas.

Caso Ramagem vai a plenário, enquanto Eduardo pode perder o mandato por faltas

A próxima etapa da disputa institucional passará diretamente pelo plenário. Na segunda-feira (9), o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), notificou o deputado Alexandre Ramagem — que está nos Estados Unidos — a se manifestar no processo que trata da perda do seu mandato.

Ramagem foi condenado pelo STF por tentativa de golpe de Estado de 2022 e recebeu pena de 16 anos de prisão, além da determinação de perda automática do mandato. Pela regra interna, ele tem cinco sessões para apresentar defesa. O caso já está pautado no plenário para o dia 17 de dezembro.

No Centrão, lideranças admitem reservadamente que Ramagem pode reunir votos para sobreviver, repetindo a estratégia que salvou Zambelli e, recentemente, Glauber Braga (PSOL-RJ), que teve a cassação revertida para uma suspensão de seis meses.

O processo contra Eduardo Bolsonaro (PL-SP), no entanto, é considerado ainda mais delicado politicamente — não apenas porque envolve o filho do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas porque não será decidido pelo plenário, e sim pela Mesa Diretora da Câmara.

Eduardo faltou a 56 das 71 sessões de 2025, o equivalente a quase 79% do total. Pela Constituição e pelo Regimento Interno, a perda do mandato é automática quando um deputado deixa de comparecer a mais de um terço das sessões no ano.

Notificado nesta semana, Eduardo afirmou ser vítima de “perseguição” e chamou Hugo Motta de “bonequinha de Alexandre de Moraes” em vídeo publicado nas redes sociais. Disse ainda que o presidente da Câmara “escolheu a desonra e terá a guerra”.

Motta, porém, adiantou que a Mesa deve decidir o caso até a próxima semana. A perda do mandato será declarada se o pedido reunir quatro votos entre os sete membros que integram a Mesa. Dois deles — Altineu Côrtes (PL-RJ) e Elmar Nascimento (União-BA) — já sinalizaram voto favorável à manutenção do mandato de Eduardo.

Outro ponto que deve ser levantado pela oposição é que, em geral, a perda de mandato por faltas só é contabilizada em março do ano seguinte — momento em que a Secretaria-Geral da Mesa na Câmara faz o balanço de quantas sessões foram realizadas no ano fechado e quantas cada parlamentar faltou. Mesmo que tenha a perda do mandato declarada pela Mesa, Eduardo não ficará inelegível, já que a decisão seria administrativa, e não decorrente de condenação criminal.

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