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CPI da Covid
Omar Aziz e Renan Calheiros, presidente e relator, respectivamente, durante sessão da CPI da Covid: advogados e testemunhas apontam supostos excessos.| Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Em dois meses e meio de funcionamento, a CPI da Covid aprovou a quebra de sigilos de 39 pessoas e 22 empresas. Tomou depoimentos de 27 testemunhas ou investigados. No mesmo período, os alvos da investigação apresentaram ao Supremo Tribunal Federal (STF) 59 ações contra medidas consideradas abusivas pela Comissão Parlamentar de Inquérito.

Dos pedidos apresentados ao STF, 26 (44%) foram atendidos total ou parcialmente, 18 foram rejeitados (30,5%) e 15 (25,5%) ainda não foram analisados pelos ministros. O levantamento, realizado pela Gazeta do Povo com base em números oficiais, mostra em que medida a Corte tem sido acionada para conter supostos excessos nos atos dos senadores.

A reportagem analisou essas decisões e ouviu advogados que acompanham de perto os trabalhos. Eles dizem que, quando o resultado da investigação for levado à Justiça — ao final, toda CPI encaminha seu relatório ao Ministério Público, único órgão que pode processar as pessoas indiciadas —, os possíveis abusos poderão levar à invalidação das provas obtidas.

Isso pode ocorrer, principalmente, em quebras de sigilo aprovadas sem a devida justificativa, e também em interrogatórios feitos sob pressão, sobretudo com ameaças de prisão.

Mesmo dentro da comissão, há senadores que alertam para o prejuízo que medidas drásticas podem causar à própria investigação. É o caso de Eduardo Braga (MDB-AM), tido inicialmente como integrante do que ficou conhecido como G7, grupo que forma maioria no colegiado e que desde o início dos trabalhos bate de frente com o governo.

Na última sessão da CPI, ele afirmou que era uma “temeridade” chancelar um requerimento do relator, Renan Calheiros (MDB-AL), para ampliar o período da quebra de sigilos fiscal, bancário, telefônico e telemático de todas as pessoas e empresas investigadas pela comissão. Originalmente, seriam captadas informações de março de 2020 até hoje, período da pandemia, mas, numa votação relâmpago, os senadores estenderam a coleta de dados até 2018.

“Nós queremos estender o efeito do requerimento [de quebra de sigilos] e não tem nenhuma fundamentação! Nós estamos na CPI da Covid-19. Em 2018, tinha Covid? Essa forma, tal qual as outras que a gente não tomou cuidado com a fundamentação, será atacada! Quando você estende o ano fiscal, precisa fundamentar”, advertiu Braga.

Na sessão, Calheiros respondeu que estava sendo feita só uma “retificação” para adaptar os requerimentos iniciais, sem esclarecer o objetivo da medida. Na justificativa oficial, afirmou apenas que o alargamento da quebra seria “essencial para o desenrolar da fase instrutória” e “fundamental ao bom prosseguimento dos trabalhos”.

Provas ilícitas

Professor titular de Direto Processual Penal da Faculdade de Direito da USP, com mestrado, doutorado e livre-docência na área, o advogado Gustavo Badaró diz que é perfeitamente possível questionar a validade desses dados como prova quando eles forem levados para um processo na Justiça. “Se houve ilicitude por excesso, ao determinar a produção dessa prova, e se depois ela for emprestada a um processo judicial, pode-se alegar a ilicitude porque a determinação do afastamento do sigilo foi abusiva”, disse à Gazeta do Povo.

Antes da extensão do prazo da quebra de sigilos, a defesa do ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo já havia alertado o STF sobre o problema. O requerimento original de quebra de sigilos, no caso dele, iria do início de 2019, quando assumiu a pasta, a março de 2021, quando deixou o cargo. Pegaria, portanto, um período em que a pandemia nem existia. A defesa tentou invalidar a medida no STF, mas teve o pedido negado pelo ministro Alexandre de Moraes.

O advogado de Araújo, Rafael Martins, informou que vai recorrer e disse estar convicto de que, quando a decisão for submetida à Primeira Turma da Corte, a quebra será anulada. “A jurisprudência do Supremo é absolutamente tranquila de que a CPI tem que investigar um objeto determinado. O que estão fazendo é devassar a vida das pessoas”, critica o advogado. Ele argumenta que, no caso de Ernesto, os dados coletados podem incluir comunicações sobre assuntos sensíveis envolvendo relações externas do Brasil.

“O ministro Ernesto mantinha comunicações oficiais com o presidente da República, outros ministros de Estado, embaixadores. Você acredita que entregues, esses dados serão mantidos em sigilo? É obvio que vai ter vazamento, é um circo político. Isso compromete a soberania nacional”, disse à reportagem.

As quebras de sigilo promovidas pela CPI abrangem uma enorme quantidade de dados de cada alvo. Além de todas as movimentações financeiras e variações patrimoniais do investigado, obtidas junto aos bancos e na Receita, elas colhem praticamente toda a comunicação privada dos indivíduos.

Se a quebra de sigilo telefônico registra apenas as ligações originadas e recebidas de uma linha telefônica, a chamada quebra de sigilo telemático inclui, por exemplo, o teor de e-mails, arquivos guardados em serviços online de armazenamento, mensagens contidas em aplicativos de conversa, histórico de pesquisas em buscadores de internet, pagamentos realizados virtualmente e até a identificação de todos os locais onde a pessoa esteve em determinado período, registrados no GPS e no programa de mapas do aparelho celular.

Atenta a isso, a Advocacia-Geral da União (AGU) também tentou derrubar no STF a quebra de sigilos de Filipe Martins, assessor internacional do presidente Jair Bolsonaro. Argumentou que a medida foi aprovada exclusivamente em razão do cargo que ele ocupa e sem que ele pudesse se defender antes, depondo à comissão.

Para a AGU, a quebra significa, na prática, um procedimento ilegal conhecido como “fishing expedition”: “investigações genéricas para buscar elementos incriminatórios aleatoriamente, sem qualquer embasamento prévio”, na definição do ministro Gilmar Mendes.

“A CPI, ao invés de pautar sua investigação de forma gradual e proporcional, de modo a adotar uma medida extrema somente quando necessária, quando fosse possível a dirimir uma dúvida consistente a respeito dos fatos, na verdade se utiliza de visão invertida de investigação: primeiro se adotam as medidas extremas para somente então se verificar a existência dos fatos”, afirmou a AGU na ação. O pedido, no entanto, foi rejeitado pela ministra Rosa Weber.

Prisão e ameaças

Outro fato marcante da CPI nessa primeira fase foi a prisão, no início de julho, do ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde Roberto Ferreira Dias. O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), mandou prendê-lo em flagrante acusando-o de mentir aos senadores, por declarar que não negociava vacinas na pasta. A declaração não condizia com mensagens de celular que indicavam que ele tratava do assunto com representantes da Davati, empresa que tentava intermediar a venda de imunizantes ao governo.

Para Gustavo Badaró, houve “ilegalidade clara” na prisão, independentemente do teor das declarações. Para ele, embora formalmente Roberto Dias prestasse depoimento na condição de testemunha, que tem o compromisso legal de dizer a verdade, ele, na prática, é uma pessoa investigada, sobre quem não recai essa obrigação.

“Claramente tinha direito ao silêncio. Quem não é testemunha, não pode cometer o crime de falso testemunho”, diz Badaró. Ele acrescenta que ameaças de levar um depoente para a cadeia, como ocorreu diversas vezes na CPI, também comprometem a investigação.

“Essas ilegalidades podem tirar muito a força probatória dos atos que são produzidos na CPI. Toda testemunha tem que fazer suas declarações de forma clara, sem ameaças. Tem que ter manifestação de vontade livre dela na declaração. Essa coisa de ameaçar toda hora pode levar a Justiça, no futuro, a considerar que as informações prestadas não foram suficientemente sólidas, porque prestadas num ambiente de pressão”, afirmou.

Das 59 ações apresentadas ao STF contra decisões da CPI, 21 foram habeas corpus para impedir que a pessoa convocada a depor fosse presa, para que tivesse o direito ao silêncio ou para que não fosse obrigada a comparecer. Em todas as decisões, os ministros do Supremo garantiram o direito ao silêncio, seguindo a jurisprudência histórica da Corte de respeito ao princípio da não autoincriminação, segundo o qual ninguém pode ser obrigado a produzir provas contra si mesmo.

Mas observadores notaram que, ao decidirem sobre a CPI da Covid neste ano, alguns ministros relativizaram essa proteção constitucional com duas inovações.

A primeira surgiu em maio, antes do depoimento do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. O ministro Ricardo Lewandowski deixou que ele se calasse apenas sobre fatos que o envolvessem diretamente, mas não sobre suspeitas ligadas a outras pessoas.

“No que concerne a indagações que não estejam diretamente relacionadas à sua pessoa, mas que envolvam fatos e condutas relativas a terceiros, não abrangidos pela proteção ora assentada, permanece a sua obrigação revelar, quanto a eles, tudo o que souber ou tiver ciência, podendo, no concernente a estes, ser instado a assumir o compromisso de dizer a verdade”, decidiu o ministro.

A segunda inovação, relacionada à forma dos depoimentos, apareceu em julho, quando o presidente do STF, Luiz Fux, de plantão durante o recesso do Judiciário, decidiu que a CPI poderia adotar “providências legais cabíveis” em caso de “abuso” do direito ao silêncio. Na prática, a decisão deu à comissão o poder de avaliar que tipo de pergunta a pessoa, mesmo investigada, deveria ser obrigada a responder.

O criminalista Alberto Zacharias Toron disse à Gazeta do Povo que a decisão é “assustadora”. Segundo ele, o direito ao silêncio “não existe por partes” e cabe somente à defesa e ao interrogado avaliarem que perguntas devem ser ou não respondidas.

“A partir do momento em que sou investigado, não sou obrigado a falar nada, nem minha idade. Quando você me faz quatro perguntas que não respondo, e respondo a quinta, escancaro que aqui existe um problema. Você fica muito mais protegido quando faz o silêncio, porque não indica para seu interrogador onde está o problema”, afirmou.

Toron lamentou o fato de a decisão ter partido do STF, o que, segundo ele, torna mais difícil uma anulação desses depoimentos pelas demais instâncias da Justiça. Ele teme que esse entendimento passe a ser adotado por outras autoridades, como juízes, delegados e promotores.

Humilhações na CPI da Covid

Além de intimidações com ameaças de prisão, a CPI também se mostrou pródiga nas humilhações a alguns investigados e até mesmo advogados. Ao acompanhar o empresário Carlos Wizard, o próprio Toron chegou a ser ameaçado de ir para a prisão, ao reagir a uma provocação do senador Otto Alencar (PSD-BA).

Como Wizard recusava-se a responder a qualquer pergunta, Otto Alencar, querendo brincar, disparou: “Seu advogado está muito corado, parece que tomou banho de mar, está vermelho, e o senhor Carlos amarelou aqui na comissão”. Toron disse que o senador agia com "covardia" ao não deixar que ele respondesse à provocação. Alencar mandou que a Polícia Legislativa o levasse, mas depois desistiu da ordem.

O caso mais grave de hostilidade ocorreu com a médica Nise Yamaguchi, defensora do tratamento precoce contra Covid, durante seu depoimento em junho. Interrompendo a todo momento suas respostas, Otto Alencar, que tem formação em Medicina e rechaça o uso de medicamentos contra a doença, passou a testar o conhecimento dela sobre o coronavírus. “A senhora foi aleatória, simplória, não se aprofundou na matéria”, disse ao final dos questionamentos.

Em outro momento, Omar Aziz a acusou de mentir. “A sua voz calma, a sua forma de falar, convence as pessoas como se a senhora estivesse falando a verdade”, disse a ela.

Os ataques públicos a Yamaguchi levaram sua defesa a apresentar à Justiça uma ação por danos morais contra Alencar e Aziz, em que cobra indenização de R$ 320 mil. Eles também poderão responder no STF por crimes contra a honra dela. O advogado da médica, Raul Canal, disse à Gazeta do Povo que a postura dos senadores tira a credibilidade da investigação.

“Quando o investigador tem posição pré-definida, cai em descrédito. Quando o convidado diz aquilo que ele quer ouvir, ele trata a pão-de-ló. Mas quando não, o convidado passa a ser maltratado, como se fosse uma inquisição. Quando o Omar Aziz recebeu a Nise de manhã, a recebeu de tapete vermelho. Quando viu que não entrou na onda dele e não fez o que ele queria, chamou ela de mentirosa”, protestou.

“Está muito claro que a CPI tem um propósito de tentar incriminar o presidente da República. Quando alguém não fala isso, a CPI põe contra a parede. Não querem esclarecer as coisas, querem incriminar o presidente, e alguns querem palco para a reeleição. Enquanto a coisa for polêmica, a mídia dá espaço para eles todos os dias. Ninguém está atrás da verdade”, criticou o advogado.

Até mesmo o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, notório defensor de políticos de Brasília, critica a conduta dos senadores na CPI. Ele lembra que a recente lei contra o abuso de autoridade, aprovada em 2019, tipifica como crime insistir num interrogatório quando a pessoa investigada opta pelo silêncio.

“Hoje não se pode fazer mais isso. Mas os senadores estão com as sessões televisionadas, eles querem continuar usando os 15 minutos de fama deles. E o relator e o presidente, usando seus minutos incontáveis de fama. Então, as perguntas vão se repetindo. Os senadores sabem que não terão resposta, mas vão continuar porque querem ter mídia. Não é com a finalidade principal de fazer investigação”, afirmou à Gazeta do Povo.

Na mesma linha, Gustavo Badaró acrescenta que, quando as investigações chegarem à Justiça, o Ministério Público terá total autonomia para ignorar provas obtidas de forma abusiva.

“Se você perguntar se isso me causa alguma preocupação com o funcionamento da CPI, eu respondo: nenhuma. A CPI pode fazer um relatório indiciando 78 pessoas. Isso vincula o MP? Não. Ele pode acusar as 78 pessoas ou não. Do ponto de vista jurídico, CPI é oba-oba político”, disse.

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