Ouça este conteúdo
Na denúncia em que acusa o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros 33 auxiliares e militares de tramar um golpe de Estado, no fim de 2022, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, adotou uma narrativa fechada, em ordem cronológica, com a premissa de que, ao menos desde 2021, havia no grupo o intento de impedir a futura posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) caso ele viesse a ser o vencedor do pleito em 2022, o que acabou se confirmando.
A peça, de 272 páginas, pressupõe que, no ano anterior à eleição, Bolsonaro já buscava descredibilizar as urnas eletrônicas perante a população como forma de justificar, com a acusação de fraude, uma derrota para Lula no ano seguinte.
A insistência do ex-presidente em encontrar alguma prova de desvio na captação e apuração dos votos – seja por pressão sobre os militares que fiscalizaram o sistema, seja por meio de uma auditoria do PL sobre os arquivos gerados pelas urnas – é tratada por Gonet na denúncia como se Bolsonaro sempre soubesse que não encontraria nenhuma fraude.
A presunção de que Bolsonaro agia de má-fé está nas primeiras páginas do documento. “Não obstante evidências constantes da segurança do modelo, havia a obstinação por engendrar pretexto para renegá-lo. Por vezes, as narrativas insistentes não resistiriam a um singelo escrutínio do bom senso”, diz Gonet na denúncia.
A tese - presente em toda a denúncia, sempre ancorada nas afirmações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) - é a de que as urnas eletrônicas são totalmente confiáveis e que os questionamentos e dúvidas suscitadas pelo ex-presidente tinham por objetivo desqualificar, de antemão, o resultado oficial que seria proclamado pela Corte em 2022, e com isso legitimar um golpe de Estado.
A denúncia apresenta como provas desse suposto intuito declarações de Bolsonaro durante a reunião com embaixadores em julho de 2022, quando citou a investigação da Polícia Federal sobre uma invasão hacker a sistemas do TSE em 2018 e questionou a imparcialidade dos ministros do tribunal para conduzir o processo eleitoral.
Gonet também reproduz declarações de Bolsonaro numa reunião fechada, ocorrida antes, com os ex-ministros Anderson Torres (Justiça), Paulo Sérgio Nogueira (Defesa), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), em que conclamava diversas pastas do governo a aderir a seus questionamentos sobre as urnas e a posição do TSE.
Desse ponto em diante, a participação de Bolsonaro em planos de ruptura é baseada em declarações de testemunhas, mensagens de celular de militares e registros de reuniões no Palácio do Planalto e no Palácio da Alvorada.
Não há, porém, na denúncia, a apresentação de mensagem, documento ou fala do próprio ex-presidente autorizando as medidas mais violentas a ele atribuídas: ordem para prender ou executar o ministro Alexandre de Moraes, então presidente do TSE, Lula ou o vice-presidente Geraldo Alckmin.
Gonet acusa Bolsonaro de ter ciência do plano porque o general Mario Fernandes, supostamente envolvido no plano chamado “Punhal Verde Amarelo”, imprimiu esse documento no Planalto e o levou ao Alvorada em 9 de novembro de 2022. O procurador-geral acusa Bolsonaro de concordar com o plano baseando-se numa mensagem de Mario Fernandes enviada quase um mês depois, em 8 de dezembro, a Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente.
“Durante a conversa que eu tive com o presidente, ele citou que o dia 12, pela diplomação do vagabundo, não seria uma restrição, que isso pode, que qualquer ação nossa pode acontecer até 31 de dezembro e tudo. Mas […] aí na hora eu disse, pô presidente, mas o quanto antes, a gente já perdeu tantas oportunidades”, diz a mensagem.
Depoimento de Cid coloca em xeque disposição do ex-presidente em autorizar medidas drásticas
Nos depoimentos prestados por Mauro Cid em sua delação premiada, a disposição de Bolsonaro em assinar um ato para rever as eleições e autorizar medidas drásticas, como a prisão de Moraes, é colocada em xeque.
Num dos interrogatórios, Cid diz que, apesar de ser instigado por vários grupos, Bolsonaro “tinha um pé atrás com a ideia do golpe”. “[Bolsonaro] Tinha certeza que encontraria uma fraude nas urnas eletrônicas e por isso precisava de um clamor popular para reverter a narrativa”, disse ainda o ex-ajudante de ordens.
Como se sabe, as Forças Armadas não apresentaram provas de fraude e a ação do PL para uma “verificação extraordinária” nos arquivos da votação – no caso, “logs” que registravam o histórico de funcionamento das urnas – foi rejeitada por Moraes, que ainda impôs multa de R$ 22 milhões ao partido, acusando-o de má-fé na apresentação do pedido ao TSE.
A denúncia diz que Bolsonaro, em ao menos duas ocasiões, submeteu aos comandantes das Forças Armadas minutas dos decretos para rever o resultado das eleições. A hipótese é de que ele não assinou o ato porque o general Freire Gomes (Exército) e o brigadeiro Baptista Júnior (Aeronáutica) se recusaram a apoiar a medida. Neste ponto, a PGR se ampara nos depoimentos dos dois, para acusar Bolsonaro de tentar uma medida de força.
“O Tenente-Brigadeiro ainda descreveu a dinâmica da apresentação do decreto pelo General Paulo Sergio Nogueira de Oliveira. Relatou ter perguntado ao Ministro da Defesa se o Decreto previa '[…] a não assunção do cargo pelo novo presidente eleito', momento em que este permaneceu em silêncio, evidenciando que havia uma ordem impedindo a posse do novo governo. O depoente disse ter afirmado ao Ministro da Defesa que não receberia o documento e que a Aeronáutica não admitiria um golpe de Estado, retirando-se da sala. Baptista Junior acrescentou que o General Freire Gomes também se recusou a analisar o conteúdo da minuta”, narra a PGR, sem, no entanto, detalhar qual teria sido a reação e a atitude de Bolsonaro.
Na denúncia, Gonet ainda acusa Bolsonaro de atuar para manter o acampamento de apoiadores no Quartel General do Exército, em Brasília, que, em 8 de janeiro de 2023, resultaria na invasão e depredação da sede do STF, Congresso e Palácio do Planalto. Não há, novamente, prova direta de qualquer direção do ex-presidente para o ato.
O que Bolsonaro, a defesa do ex-presidente e o PL dizem sobre a denúncia
Em sua defesa, Bolsonaro sempre disse que as invasões nunca poderiam levar a um golpe, pois eram pessoas desarmadas, que agiam por indignação e sem qualquer ordem sua, uma vez que já se encontrava em Orlando, nos Estados Unidos.
Nesta quarta-feira (19), dia seguinte à apresentação da denúncia, o PL emitiu um parecer rebatendo as acusações da PGR. Alegou que nunca houve qualquer ato de execução dos crimes de golpe de Estado e abolição violenta dos poderes constitucionais.
“Os atos executórios que poderiam comprovar quaisquer dos crimes são inexistentes na narrativa da denúncia, que se vale de presunções sobre "intrigas palacianas" politicamente aproveitáveis para imputar ação ou omissão a Bolsonaro, logo, se não há um ato de comando, nem ordem de qualquer tipo, emanada de Bolsonaro para qualquer de seus subordinados ou apoiadores, não há execução”, diz o documento divulgado pelo partido à imprensa.
Lembrou, ainda, que a própria lei de defesa do Estado Democrático de Direito prevê que “manifestação crítica aos poderes constitucionais” e “reivindicação de direitos e garantias constitucionais” não podem ser confundidas com tentativas de romper a ordem democrática. “A narrativa de ‘questionar a integridade das urnas’ não é crime segundo os critérios estabelecidos pelo art. 359-T do Código Penal”, afirma o documento do PL.
De forma semelhante, um dos advogados de Bolsonaro, Paulo Cunha Bueno, divulgou nota para rebater as acusações, apontando falta de prova direta contra o ex-presidente e contradições nos depoimentos de Mauro Cid que teriam sido ignoradas na denúncia.
“Não há qualquer mensagem do Presidente da República que embase a acusação, apesar de uma verdadeira devassa que foi feita em seus telefones pessoais. A inepta denúncia chega ao cúmulo de lhe atribuir participação em planos contraditórios entre si e baseada numa única delação premiada, diversas vezes alteradas, por um delator que questiona a sua própria voluntariedade. Não por acaso ele mudou sua versão por inúmeras vezes para construir uma narrativa fantasiosa”, afirmou.
Advogados de todos os denunciados terão 15 dias para apresentar uma defesa prévia contra a denúncia. Essas alegações, em tese, deverão ser levadas em conta pelos ministros da Primeira Turma – Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Luiz Fux, Flávio Dino e Cristiano Zanin – no julgamento em que irão decidir se aceitam ou não a denúncia, avaliando se há indícios suficientes de autoria e materialidade nas acusações.
Se entenderem que sim, será aberta uma ação penal e, ao longo do processo, as defesas terão mais oportunidades de contestar as teses e conclusões da PGR, para tentar absolver os réus.