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Diversas decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos últimos anos facilitarão o trabalho dos advogados do ex-presidente Jair Bolsonaro e dos outros 33 denunciados por tentativa de golpe em 2022. O desmonte da Lava Jato e de outras operações anticorrupção, na própria Corte, abriu caminhos para pessoas acusadas de diversos crimes, a partir de uma delação premiada, questionassem a forma como a colaboração foi firmada.
No caso da denúncia do golpe, a divulgação da delação do coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, levou advogados de vários acusados a anunciar que entrariam com pedidos para anular a colaboração e, com isso, as provas colhidas a partir dela. Em tese, isso poderia não apenas esvaziar ou derrubar a denúncia, como também levar à absolvição ou mesmo anulação de eventual ação penal que venha a ser aberta contra eles.
Entre os principais problemas apontados pelos advogados está o fato de o relator, Alexandre de Moraes, figurar no caso como vítima – segundo as investigações, havia um plano para executá-lo ou prendê-lo, como forma de eliminar um obstáculo para a revisão das eleição presidencial de 2022. Nos vídeos da colaboração, fica mais clara sua atuação, ao mesmo tempo, como juiz e investigador, o que comprometeria o dever de imparcialidade na condução do caso.
Pela lei, o juiz que atua numa colaboração apenas homologa um acordo firmado entre o Ministério Público ou a Polícia Federal e o delator. Cabe a ele analisar a legalidade dos termos pactuados (como os benefícios concedidos ao delator em troca das provas que entregou), bem como a voluntariedade (se decidiu colaborar de livre e espontânea vontade, sem ser forçado).
No caso de Cid, a delação foi fechada com a PF – a Procuradoria-Geral da República, que representa o Ministério Público no caso, se recusou a fechar o acordo por insuficiência de provas. Em vários depoimentos, no entanto, é Moraes quem interroga o coronel.
“Quando o ex-presidente Bolsonaro pediu o meu monitoramento, vocês fizeram como?”, perguntou Moraes a Cid num interrogatório colhido em novembro do ano passado. Após as respostas, o próprio Moraes ditava um resumo para que sua chefe de gabinete oficializasse os relatos. Parte da denúncia utilizou esses resumos para compor as acusações.
Como mostrou a Gazeta do Povo, a denúncia omitiu algumas declarações que poderiam inocentar Bolsonaro. É o caso, por exemplo, da acusação de que o ex-presidente teria aprovado o plano para matar Moraes. No depoimento bruto, Cid indicou que o ex-presidente não sabia desse plano e teria discutido outro assunto – a assinatura de um decreto de estado de defesa ou sítio – com o general Mario Fernandes, suspeito de planejar a emboscada contra Moraes. Ele também disse que Bolsonaro pediu para monitorar Moraes após o dia em que seria feita a operação, com o objetivo de saber se ele estaria se encontrando com o vice Hamilton Mourão.
Também chamou a atenção dos advogados um interrogatório, no dia 21 de novembro, em que Moraes ameaça investigar a família de Cid caso ele não revelasse “as informações verdadeiras”. Dois dias antes, a PF prendeu o general Walter Braga Netto após descobrir, em mensagens de celular que haviam sido deletadas, que ele teria participado do plano para matar Moraes.
O ministro chamou Cid para esclarecer “omissões e contradições”, ou seja, por não ter revelado o fato nos depoimentos anteriores. “Das obrigações, a maior delas é falar a verdade. É não se omitir, não se contradizer. Não há na colaboração premiada esta ideia de que ‘só respondo o que me perguntam’”, disse Moraes a Cid. “Eventual rescisão [do acordo de colaboração] englobará, inclusive, a continuidade das investigações e a responsabilização do pai do investigado, de sua esposa e de sua filha maior”, avisou Moraes.
Outro vídeo que alarmou advogados foi o que o juiz auxiliar de Moraes, Airton Vieira, comunicou a Cid que o ministro havia mandado prendê-lo depois que vazaram áudios, no início do ano passado, em que o coronel desabafava sobre como eram os depoimentos. “Eles queriam que eu falasse coisa que eu não sei, que não aconteceu”, falou num dos áudios. No momento em que recebe a ordem de prisão, Cid se encolhe abatido. Na saída, desmaiou.
À GloboNews, o advogado de Bolsonaro, Celso Vilardi, afirmou que pedirá a anulação da delação. “O ministro marcou uma audiência para salvar a delação. Pode isso? O juiz da causa pode dizer para o colaborador que se ele não falar a verdade ele vai ser preso e perde a imunidade para a sua filha, para sua mulher e para o seu pai? O juiz pode fazer o papel de instrução no processo acusatório? Precisamos discutir isso”, afirmou o criminalista.
O advogado de Braga Netto, José Luiz de Oliveira Lima, escreveu que a delação de Cid é “suspeitíssima”, pelo fato de ele ter revelado detalhes sobre o general após ser preso.
“Após ser preso e assinar um acordo de delação, Cid foi solto, mas disse ter sido coagido pelos policiais, que o pressionaram com a ameaça de uma longa pena de prisão. Ele revelou que as autoridades não buscavam a verdade, mas sim a confirmação de uma narrativa preestabelecida. Após essas graves denúncias, Cid foi novamente preso e só libertado após novos depoimentos, momento em que então começou a acusar Braga Netto”, escreveu em artigo publicado na Folha de S.Paulo em dezembro.
Como o STF anulou delações e provas na Lava Jato e outras operações
Casos de delações forçadas ou manipuladas foram objeto de contundentes críticas no STF nos últimos anos. Algumas exageradas, como no caso da Lava Jato, mas sempre no sentido de condenar o abuso no uso da colaboração para as investigações criminais.
Gilmar Mendes chamou os procuradores de Curitiba de “pervertidos” e os acusou de “tortura”, enquanto Dias Toffoli disse que as tratativas com os colaboradores eram o “pau de arara do século 21” – ambos se referiam a acordos estabelecidos com réus presos.
Outros casos mereceram repúdio do tribunal e ilustram bem os limites da colaboração.
Em 2020, a Segunda Turma do STF anulou as provas da delação do auditor fiscal do Paraná Luiz Antonio de Souza, investigado por cobrar propina para reduzir tributos de empresas no estado, no âmbito da Operação Publicano. Em 2015, ele havia feito um primeiro acordo, para delatar os colegas corruptos, após ser preso em flagrante em crime sexual. Depois, acusou promotores de manipulação de suas declarações. Preso novamente em 2017, fez novo acordo, mas sob o compromisso de retirar as acusações contra os integrantes do MP que o haviam acusado.
Relator do caso, Gilmar Mendes condenou a atuação do MP do Paraná no caso. “As práticas realizadas na operação aqui analisada são claramente temerárias e questionáveis, ao passo que ocasionaram inúmeras impugnações, colocando em risco a efetividade da persecução penal. Devemos, então, perceber como a atuação abusiva dos órgãos de investigação e acusação pode destruir qualquer viabilidade de perseguir e punir crimes eventualmente praticados”. Na mesma decisão, permitiu que os auditores delatados por Souza contestassem as provas.
Em 2015, no âmbito da Operação Lava Jato, o STF decidiu que ao juiz que supervisiona uma investigação com delação premiada cabe a homologação do acordo, e que esta limita-se a aferir a regularidade, a voluntariedade e a legalidade do acordo, não havendo qualquer juízo de valor a respeito das declarações do colaborador”.
Em 2017, a Corte explicitou melhor esse papel, ao analisar a delação de executivos da J&F com a PGR. Decidiu-se que os benefícios só poderiam ser concedidos na sentença final dos processos, quando a Justiça analisa a utilidade das provas entregues na colaboração. No momento inicial, de pactuação do acordo, foi mantido o entendimento de que o papel do juiz “se limita ao juízo de regularidade, legalidade e voluntariedade da avença”.
“As tratativas e a celebração da avença são mantidas exclusivamente (como o foram no caso concreto) entre Ministério Público e o pretenso colaborador, permanecendo completamente distante o Poder Judiciário, que é chamado, ao final dos atos negociais, apenas e tão somente para aferir os requisitos legais de existência e validade, com a indispensável homologação”, esclareceu Edson Fachin, relator da questão, à época.
Em 2015, no início da Lava Jato, Dias Toffoli já havia afirmado algo semelhante. “O juiz, ao homologar o acordo de colaboração, não emite nenhum juízo de valor a respeito das declarações eventualmente já prestadas pelo colaborador à autoridade policial ou ao Ministério Público, tampouco confere o signo da idoneidade a seus depoimentos posteriores”.
Nessa época, o relator da Lava Jato no STF era o ministro Teori Zavascki. Em seus votos, ele também deixava claro o papel do juiz no momento da celebração da colaboração.
“Não cabe ao Judiciário, nesse momento, examinar aspectos relacionados à conveniência ou à oportunidade do acordo celebrado ou as condições nele estabelecidas, muito menos investigar ou atestar a veracidade ou não dos fatos contidos em depoimentos prestados pelo colaborador ou das informações trazidas a respeito de delitos por ele revelados. É evidente, assim, que a homologação judicial do acordo não pressupõe e não contém, em pode conter, juízo algum sobre a verdade dos fatos confessados ou delatados, ou mesmo sobre o grau de confiabilidade atribuível às declarações do colaborador”, escreveu o ministro.
No julgamento de 2017, envolvendo a J&F, ficou estabelecido que o juiz também não participa das negociações das cláusulas do acordo, porque isso significaria “interferência externa nas condições acordadas pelas partes”. “Essa postura equidistante do juiz em relação às partes no processo penal, informa o comando legal citado que prestigia o sistema acusatório; se as declarações do colaborador são verdadeiras ou respaldadas por provas de corroboração, apenas ‘no momento do julgamento do processo’ é que será feito tal juízo”, disse.
Como o STF vai contornar objeções de Bolsonaro contra Moraes
Nas discussões internas, os ministros do STF já ensaiam argumentos para rebater os questionamentos sobre a atuação de Moraes na delação de Mauro Cid. A maioria rejeita a hipótese de afastá-lo do caso, bem como a ideia de impedir Flávio Dino e Cristiano Zanin de julgar a denúncia – a defesa de Bolsonaro já apresentou ao STF um pedido de impedimento, em razão de processos que moveram contra o ex-presidente no passado.
Em conversa com jornalistas na última terça-feira (25), Gilmar Mendes explicou como serão superadas as objeções ao papel de Moraes. Argumentou que o ministro tornou-se alvo dos investigados exatamente porque já investigava, antes, Bolsonaro e seus aliados. Nesses casos, não caberia o impedimento, porque a animosidade com o juiz foi suscitada pelos investigados, e não por ele.
“O Alexandre foi alvo a todo tempo porque era o relator de inquéritos. Se essa tese vicejar, há estímulo para que ministros sejam mais xingados, como uma estratégia. Como outros foram. Ministro Barroso sofreu xingatório, ministro Zanin também, por parte do próprio presidente Bolsonaro, no período da pandemia. Não pode ser esse o argumento. Talvez tenha havido exorbitância, como se falou em matar o ministro Alexandre”, disse Gilmar Mendes.
Ele também rebateu o argumento de que haveria um paralelo entre as acusações feitas contra a Lava Jato – de “conluio” entre ex-juiz Sergio Moro e o ex-procurador Deltan Dallagnol –, com a situação de Moraes, que atua como juiz e investigador.
“O que nós víamos, e até que intuíamos, na Lava Jato e na Spoofing, eram ações combinadas de Moro e Dallagnol. Vocês podem pegar nos votos nos processos do presidente Lula que isso é claramente demonstrado. O Moro sugere retoque, reforma na peça. Indica testemunha. É como se fosse uma denúncia feita a quatro mãos. Combinações para efeito de pedir prisão. Nada tinha a ver com o que estamos assistindo aqui.”
Por fim, defendeu a atuação de Moraes quando ameaçou prender novamente Mauro Cid. “Sempre a defesa vai alegar algo. O que me parece ali, o que há, é uma advertência que a própria legislação faculta. Em caso em que o colaborador, ou delator, promete dizer a verdade. E passa a gozar de benefícios, às vezes chegando ao ponto de uma imunidade. Mas para isso precisa corresponder à verdade, que as informações trazidas sejam verdadeiras e até úteis.”