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O teor do primeiro depoimento da delação do coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, tem chamado a atenção de advogados que atuam em defesa de investigados no inquérito do suposto golpe de Estado e de observadores externos que acompanham o caso. Algumas informações, só agora reveladas a partir do vazamento do depoimento para a imprensa, têm potencial de fragilizar as conclusões da Polícia Federal no relatório final da investigação.
O relatório da PF aponta para a existência de uma suposta organização criminosa que queria, entre diversos objetivos, concretizar um golpe de Estado para manter Bolsonaro no poder em 2022.
Além de impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a alegada organização criminosa também teria como planos cometer atos tão díspares quanto espalhar “desinformação” sobre vacinas contra a Covid e desviar presentes para Bolsonaro.
Para consumar uma “abolição do Estado Democrático de Direito”, segundo a PF, haveria “uma estrutura de atuação previamente ordenada” constituída de seis “núcleos”, um voltado para atacar o sistema eleitoral, outro para incitar militares, um jurídico, um operacional de apoio, outro de “inteligência paralela” e um último para cumprimento de medidas coercitivas.
Esses núcleos não existiam formalmente e com esses nomes, mas são assim chamados pelos investigadores do caso para narrar o que, na visão deles, teria ocorrido no final de 2022.
O primeiro depoimento de Mauro Cid indica, no entanto, que não havia um grupo estruturado e tão organizado em torno ou sob o comando de Bolsonaro, como o relatório final da PF faz parecer, para dar um golpe. Ele contou que diversos grupos de pessoas pressionavam o ex-presidente para tomar atitudes distintas após sua derrota para Lula, nos meses finais de mandato.
A íntegra do depoimento foi publicada no domingo (26) pela Folha de S.Paulo.
O primeiro grupo, segundo Cid, era “bem conservador, de linha bem política”, e seus integrantes “aconselhavam o Presidente a mandar o povo para casa, e colocar-se como um grande líder da oposição” e “diziam que o povo só queria um direcionamento”. Compunham esse grupo, segundo Cid, os senadores Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e Ciro Nogueira (PP-PI), o advogado-geral da União Bruno Bianco e o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, comandante da Aeronáutica.
O segundo grupo, ainda de acordo com Cid, “era formado por pessoas moderadas; que apesar de não concordar com o caminho que o Brasil estava indo, com abusos jurídicos, prisões e não concordar com a condução das relações institucionais que ocorriam no país, entendiam que nada poderia ser feito diante do resultado das eleições”. Conforme o depoimento, esse grupo entendia que “qualquer coisa em outro sentido seria um golpe armado; que representaria um regime militar por mais 20, 30 anos; que esse grupo era totalmente contra isso”.
Havia, dentro desse segundo grupo, dois subgrupos. Um formado por generais da ativa, “que tinham mais contato” com Bolsonaro: Marco Antônio Freire Gomes, então comandante do Exército; Júlio César de Arruda, chefe do Departamento de Engenharia e Construção; Estevam Theophilo, comandante do Coter (Comando de Operações Terrestres); e Paulo Sérgio Nogueira, então ministro da Defesa. Esses generais, disse Cid, “estavam preocupados com o grupo radical que estava tentando convencer o então Presidente a fazer ‘alguma coisa’, um golpe".
O segundo subgrupo de “moderados”, contou Cid, “entendia que o ex-Presidente deveria sair do país”. Era formado pelo empresário do agronegócio Paulo Junqueira, “que financiou a viagem do presidente para os EUA”; pelo ruralista Nabhan Garcia, ex-secretário de Assuntos Fundiários do Brasil; e pelo senador Magno Malta (PL-ES).
Por fim, havia um terceiro grupo, de “radicais”, esse também formado por dois subgrupos: um primeiro, dos “menos radicais”, “que queriam achar uma fraude nas urnas” e era o que Bolsonaro “mais pressionava”. Esse subgrupo “não identificou nenhuma fraude nas urnas; que a única coisa substancial que encontraram foi a questão das urnas antigas que ensejou a ação do PL”, disse, em referência ao pedido do partido no TSE para uma auditoria após o pleito.
Esse subgrupo dos menos radicais seria composto pelo general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde; pelo presidente do PL, Valdemar da Costa Neto; pelo major Angelo Denicoli; e pelo senador Luis Carlos Heinze (PP-RS).
No segundo subgrupo de “radicais”, segundo Cid, havia pessoas que “gostariam de alguma forma incentivar um golpe de Estado”. Esse subgrupo “queria que ele assinasse o decreto”, seus integrantes “acreditavam que quando o Presidente desse a ordem, ele teria apoio do povo e dos CACS, e “‘romantizavam’ o art. 142 da Constituição Federal como o fundamento para o Golpe de Estado”. Cid disse que esse subgrupo, “mais radical”, “não era um grupo organizado, eram pessoas que se encontravam com presidente, esporadicamente, com a intenção de exigir uma atuação mais contundente do então Presidente”.
O subgrupo dos “mais radicais” englobaria, segundo Cid, o ex-assessor internacional Filipe Martins, os ex-ministros Onyx Lorenzoni (Casa Civil) e Gilson Machado (Turismo); os senadores Magno Malta (PL-ES) e Jorge Seif (PL-SC); o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP); a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e o general Mario Fernandes.
A descrição de Mauro Cid do entorno de Bolsonaro, além de diferir da “organização criminosa” apontada pela PF, diz claramente que o grupo mais radical não era organizado e que seus integrantes se encontravam com Bolsonaro “esporadicamente”.
Essa característica enfraquece a tese da PF de que havia uma “divisão de tarefas estabelecida”, em que diferentes núcleos agiam de forma orquestrada, em várias frentes, todos com o mesmo objetivo, supostamente capitaneado por Bolsonaro, de dar um golpe de Estado.
A maioria dos integrantes do grupo descrito por Cid como o “mais radical” sequer foi indiciada. Isso indica que, em quase um ano e meio de investigação, a PF não encontrou provas contra eles. Desse subgrupo, apenas Mario Fernandes e Filipe Martins foram indiciados – o primeiro pela suspeita de incitar militares e o segundo por supostamente apresentar a Bolsonaro um decreto para revisar o resultado das eleições e prender os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.
Em entrevista ao programa Roda Viva, nesta segunda (28), o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, confirmou que não havia provas contra Eduardo e Michelle Bolsonaro, por exemplo. “Não houve a busca de outros elementos que pudessem confirmar que essas pessoas tenham participado [da tentativa de golpe]”, disse. “Investigamos, apuramos, não encontramos elementos suficientes para várias pessoas, não só essas duas [Eduardo e Michelle]”.
Chefe da PF desmonta tese de financiamento organizado para um golpe
Na mesma entrevista, Andrei Rodrigues desmontou uma tese, aventada durante boa parte da investigação, de que havia um financiamento organizado para as invasões às sedes dos Poderes em 8 de janeiro de 2023, que seria, segundo a PF, a tentativa final do suposto golpe.
“Muitas vezes, na expectativa de algumas pessoas, haveria um ou dois, ou um grupo de mega-financiadores com vários milhões para essa atuação orquestrada para o golpe de Estado (…) A investigação provou que não, pelo menos nós não conseguimos identificar que isso tenha acontecido”, disse o diretor-geral da PF. “O que havia, sim, era esse financiamento disperso onde uma pessoa fornecia determinado insumo, outra uma questão logística, outra recursos”, afirmou Andrei Rodrigues ao Roda Viva.
Em artigo publicado em novembro, o professor e especialista em Direito Penal César Dario Mariano da Silva, procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo, delineou o que configura uma organização criminosa, segundo a lei de 2013 que a tipificou na legislação brasileira.
Escreveu que “o mínimo de organização deve estar presente para diferenciá-la da associação criminosa”, que configura outro crime. “Enquanto na associação criminosa não se faz necessária a existência de chefia, hierarquia, divisão de tarefas e estrutura ordenada, esses requisitos são inerentes à definição de uma organização criminosa”.
Também disse que deve haver permanência no grupo, de quatro ou mais pessoas, dedicado ao cometimento de crimes graves (com penas maiores que quatro anos de prisão ou que sejam transnacionais).
“A união do grupo deve ser para o cometimento de indeterminado número de infrações penais de forma estável (com os mesmos integrantes ou grande parte deles) e permanente, que não significa perpetuidade, mas período não combinado para sua existência.”
Em novo artigo, publicado nesta terça (28), com base na entrevista de Andrei Rodrigues, ele concluiu que os crimes de organização criminosa, abolição do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado podem não se configurar no caso.
"Se não ficar demonstrado que esse financiamento disperso foi coordenado, isto é, combinado entre os financiadores, mas feitos aleatoriamente, ficará muito difícil sustentar a ocorrência de organização ou mesmo associação criminosa, que exige estabilidade e permanência do grupo e que obviamente haja vínculo psicológico para o resultado em comum, que seria o golpe de Estado e/ou abolição violenta do estado democrático (sobre organização e associação criminosa)", escreveu.
"Sem essa comprovação de apoio entre eles, cada um terá agido isoladamente e ficará muito difícil sustentar a ocorrência desses delitos, sendo mais plausível que tenha havido financiamento para determinadas pessoas participarem de um ato de protesto e não crime contra o Estado Democrático", disse ainda no artigo, publicado na rede social X.
Em vídeo publicado nas redes, o ex-procurador Deltan Dallagnol, que fechou os acordos de colaboração mais importantes da Lava Jato em Curitiba, ressalvou que as declarações de Mauro Cid, além de não servirem, por si só, para condenar, devem ser corroboradas por “provas independentes” – isto é, colhidas de forma autônoma pela PF –, em razão da suspeita de que ele pode ter sido induzido pelos investigadores.
Ele lembrou de áudios, revelados no ano passado pela revista Veja, em que Cid dizia que os policiais “queriam que eu falasse coisas que eu não sei, que não aconteceu”. “Eles [Polícia Federal] estão com a narrativa pronta. Eles não querem saber a verdade, eles queriam que eu confirmasse a narrativa deles”, disse Cid em áudio revelado pela Veja.
Após a revelação do áudio, no fim de março de 2024, ele foi preso por ordem de Alexandre de Moraes. Só foi solto pouco mais de um mês depois, no início de maio, após reafirmar “a voluntariedade e legalidade do acordo de colaboração premiada celebrado com a Polícia Federal, ressaltando que os áudios divulgados se tratavam de mero ‘desabafo’”, conforme a decisão do ministro.
Moraes ainda não liberou acesso aos depoimentos de Mauro Cid
Desde o início do ano passado, os advogados de Bolsonaro e de diversos outros investigados no inquérito pedem acesso ao conteúdo completo dos dez depoimentos de Mauro Cid. Alexandre de Moraes até hoje não liberou os documentos. Paulo Cunha Bueno, um dos advogados de Bolsonaro no caso, criticou o vazamento do primeiro depoimento para a imprensa.
“Causa espécie e indignação, na medida em que repete-se o detestável e recorrente script dos ‘vazamentos seletivos’”, escreveu nas redes. Ele disse que impor o sigilo apenas às defesas prejudica o direito dos investigados à ampla defesa. “Investigações ‘semissecretas’ — em que às defesas é dado acesso seletivo de informações, impedindo o contexto total dos elementos de prova —, são incompatíveis com o Estado Democrático de Direito, que nosso ordenamento busca preservar”, escreveu.
A lei que disciplina a colaboração premiada diz que os depoimentos “serão mantidos em sigilo até o recebimento da denúncia ou da queixa-crime, sendo vedado ao magistrado decidir por sua publicidade em qualquer hipótese”.
A expectativa em Brasília é que o procurador-geral da República, Paulo Gonet, apresente uma denúncia no caso em fevereiro.