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A aproximação da posse de Donald Trump reacende um debate sobre a preocupação do presidente com o tráfico de drogas aos Estados Unidos, como a cocaína, que sai da América do Sul, e a epidemia no uso de opioides, como o fentanil - que causa a morte, todos os anos, de 70 mil pessoas nos EUA, segundo o governo local.
Em novembro de 2024, logo após vencer as eleições, Trump prometeu novas sanções à China por suspostamente ser a responsável pela epidemia da superdroga nos EUA. O país asiático é o principal fornecedor de insumos, conhecidos também como precursores, para a produção do fentanil. O alerta não vem apenas de Trump, mas da Drug Enforcement Administration (DEA)- Administração de Repressão às Drogas -, ao afirmar que a China é "a principal fonte de todas as substâncias relacionadas ao fentanil traficadas para os Estados Unidos", apesar de o país negar.
No Brasil, os números relacionados ao uso indevido ainda não indicam uma epidemia, mas um estado de atenção vem sendo reforçado pelas autoridades em saúde e segurança nos últimos anos. Especialistas acreditam ser uma questão de tempo para se alastrar. Isso porque o fentanil é mais barato que outras drogas, como a cocaína, tem alto poder de dependência e no Brasil vem sendo utilizada prioritariamente para "batizar" e potencializar o efeito de outros entorpecentes, inclusive os que são utilizados para golpes como o conhecido “boa noite cinderela”.
Além de ser encontrado em forma líquida injetável, a droga assume a forma de adesivos transdérmicos, em pó, em comprimidos, sprays nasais e colírios. Especialistas alertam que no Brasil as forças de segurança precisam ser constantemente capacitadas para identificar todas essas formas e presença da droga. O Ministério da Justiça e Segurança Pública disse que vai intensificar essas capacitações a partir deste ano.
Fentanil é usado para "batizar" outras drogas com poder devastador
Um estudo da Fiocruz, divulgado em 2023, alertou para o uso crescente da substância no país, chamando atenção para os riscos de uma possível crise de saúde pública. Os estudos destacam a necessidade de monitoramento e controle rigorosos para evitar o desvio e uso indevido da substância, principalmente em ambientes ambulatoriais.
Nos últimos anos, não tem sido incomum o Centro de Assistência Toxicológica da Unicamp registrar casos de intoxicação por fentanil, inclusive em pessoas que relatam que consumiram a droga sem saber. As suspeitas eram que ela estava misturada a outras substâncias.
“Pela experiência da Polícia Federal, com a colaboração dos laboratórios de Química Forense e investigações realizadas, é possível concluir, como principal hipótese, que o fentanil também tem sido usado para "batizar" a cocaína, com o fim de potencializar o efeito anestésico da droga”, explicou o delegado da Polícia Federal Décio Pereira de Moura durante um evento do Ministério da Justiça e Segurança Pública para tratar do assunto. O delegado é ligado ao Setor de Repressão aos Desvios de Produtos Químicos (CGPRE/DICOR/PF).
Nos EUA, o que se busca é quebrar cadeias de fornecimento de precursores com ações diretas que devem impactar a China logo no início do governo de Donald Trump. O país também busca o rastreamento e fechamento de laboratórios clandestinos, identificação de rotas, mira organizações responsáveis pela disseminação ao mercado ilegal e se tenta vencer a dependência de milhares de pessoas.
No Brasil, a preocupação se volta para o fornecimento da droga ao e pelo crime organizado – e como isso se dá –, aliado ao avanço da participação de cartéis mexicanos nessas parcerias locais. Seriam esses cartéis, segundo o DEA, que se utilizariam de insumos chineses para a produção do fentanil numa tentativa de a China driblar as regras americanas para a entrada do produto nos EUA. Por aqui, a preocupação também é com o desvio da substância do mercado legal.
O produto é usado como medicamento na rede hospitalar, mas é altamente controlado, utilizado sob prescrição médica para analgesia de curta duração em período anestésico ou quando necessário no período pós-operatório imediato. “É um tema que preocupa muito no Brasil. É uma droga que, no mercado ilegal, tem entrado pelas mãos de máfias internacionais ou no desvio de unidades hospitalares que adquirem de forma lícita. Tem alto poder de dependência e devastação. O fentanil leva dezenas de milhares de pessoas pelo mundo à morte todos os anos, precisamos estar atentos no Brasil”, afirma a advogada Clarice Andrade, especialista em saúde pública.
O fentanil é 100 vezes mais potente que a morfina e 50 vezes mais forte que a heroína. “Seu uso não médico pode acarretar consequências severas à saúde dos usuários e à saúde pública, como evidenciado pelo aumento no número de mortes por overdose na América do Norte atribuídas ao uso de opioides nos últimos anos”, alerta o Ministério da Justiça.
China é um dos maiores fornecedores de precursores químicos do fentanil do mundo, segundo os EUA
De acordo com os EUA, a China é um dos principais produtores e fornecedores dos chamados precursores químicos usados na fabricação de fentanil no mundo, por isso a preocupação de Donald Trump na participação do país na epidemia do opioide. Esses precursores são substâncias utilizadas como matéria-prima para a fabricação de drogas ilícitas ou produtos controlados. Eles têm usos legítimos na indústria, mas podem ser desviados para atividades criminosas, como a produção de entorpecentes. Por essa razão, eles são regulados e monitorados por autoridades para evitar seu uso indevido. Isso é feito pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no Brasil.
A disponibilidade desses precursores é um fator que facilita a produção da droga em outros países e essa condição vem sendo alertada por organismos internacionais, como o DEA nos Estados Unidos, uma das principais referências sobre o tema no mundo. Diante desse processo, Trump afirmou que deve impor tarifas sobre importações chinesas em resposta ao suposto envolvimento de Pequim na devastação que o fentanil tem feito.
Washington há anos acusa a China de ser a principal origem das substâncias relacionadas à droga traficadas para o território americano ou para países vizinhos, como o México. A China diz ter endurecido os controles desde 2019, mas o tráfico se adaptou, com precursores químicos sendo enviados para rotas alternativas ao México, onde são processados em fentanil antes de seguirem para os EUA, e também em trajetórias que começam a se espalhar para outros países, como pode ser o caso do Brasil.
A China nega envolvimento direto e afirma ser um dos países mais rigorosos no controle de drogas. Pequim anunciou que reforçará a regulamentação de precursores químicos e que está aberta à cooperação com os EUA.
Em 2023, os EUA já haviam aplicado sanções contra empresas chinesas suspeitas de fornecer insumos para cartéis mexicanos e outras redes de tráfico. Apesar das tentativas de diálogo entre os dois países, especialistas alertam que o tráfico se adapta rapidamente às restrições, criando variantes sintéticas que desafiam as listas de substâncias controladas. Eles defendem uma postura mais rígida de Pequim contra empresas chinesas envolvidas no fornecimento de precursores.
A cooperação entre Washington e Pequim é vista como essencial para enfrentar as redes globais de tráfico e lavagem de dinheiro, que sustentam o comércio ilícito de fentanil. No entanto, tensões políticas entre os países dificultam avanços no combate à crise de saúde pública.
“Enquanto isso, no Brasil, organizações criminosas estão se aliando a máfias e cartéis pelo mundo e temos observado um avanço, tanto de ações da máfia chinesa quanto de cartéis mexicanos. Essa e outras drogas podem chegar e sair mais facilmente ao país a partir dessas cooperações criminosas. Gera um estado de atenção às autoridades”, alerta o advogado Márcio Nunes, especialista em segurança pública.
Apreensões revelam uso do fentanil por organizações criminosas no Brasil
No Brasil, as apreensões da droga não são uma novidade e há registros oficiais da PF desde 2009, mas a preocupação aumentou nos últimos dois anos com as apreensões nas ruas.
“Tudo o que for rentável ao crime, ele vai se debruçar sobre isso. Não podemos esquecer que temos vastas áreas de fronteira, como a do Brasil com o Paraguai, por onde entra parte significativa da maconha e cocaína. Não temos evidências da entrada do fentanil por essa rota, mas a atenção precisa ser mantida porque pode ser uma questão de tempo”, avalia o especialista em segurança pública Sérgio Gomes, que por décadas atuou como investigador nas forças federais de segurança pública.
Em 2019, a Polícia Federal chegou a deflagrar uma operação chamada de "Ampulla", em parceria com o DEA, na qual prendeu suspeitos de participarem do desvio de fentanil de hospitais para comercialização por traficantes.
Ao lançar um Informe do Subsistema de Alerta Rápido sobre Drogas (SAR), para tratar especificamente da questão do fentanil no país, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas disse que as apreensões não indicam uma epidemia, como nos Estados Unidos, mas que o “SAR foi criado justamente para acompanhar, monitorar e emitir alertas quando necessário”.
De 2015 a 2022, período analisado pelo informe, houve 30 episódios de apreensões, mas em 2023 e 2024 outros dados chamaram atenção com apreensões nas ruas, nas mãos de traficantes.
“Não podemos deixar acontecer com o fentanil o que aconteceu com as organizações criminosas no Brasil. No início houve uma certa negação das autoridades em segurança sobre a existência das facções e elas cresceram na proporção que têm hoje. Não se pode achar que com essa droga tão devastadora está tudo certo e que nada vai acontecer. Se descuidarmos, podemos viver uma epidemia sem precedentes”, alerta Gomes. Ele defende a necessidade de preparo constante dos profissionais da segurança pública para identificação do entorpecente.
Em agosto de 2024, a Polícia Militar do Espirito Santo fez uma das maiores apreensões de fentanil do ano no país: 197 frascos da droga. O estado já havia feito o registro de outras três apreensões em 2023 e, segundo a polícia capixaba, haviam sido as primeiras associadas à modalidade de tráfico em território nacional.
Na ocasião, a PM-ES disse que a principal suspeita era de que a droga estivesse sendo desviada ou roubada de hospitais da região. Mais tarde, essa hipótese se confirmou. O fentanil havia sido desviado durante o transporte para hospitais.
Na época, o porta-voz da PM-ES, tenente Everton Moraes, reforçou as suspeitas do uso da substância misturada a outros produtos, para potencializar o efeito de entorpecentes. Ele disse que a corporação monitorava de forma minuciosa a entrada das novas variações de droga no estado.
O poder devastador do fentanil no organismo ocasiona outra preocupação: o manuseio durante as apreensões. "Tem que ter muito cuidado no manuseio e transporte, porque até em quantidades muito pequenas pode levar aos efeitos de insuficiência respiratória, de necrose das extremidades, coma e obviamente morte", disse o tenente.
Em novembro de 2023, a Polícia Militar do Rio de Janeiro apreendeu 50 ampolas do opioide com um homem que as transportava de carro pelo interior do estado. Ano passado, na denúncia feita pelo Ministério Público estadual, o MP afirmou que a droga abasteceria o Comando Vermelho, no estado de Minas Gerais.
À Gazeta do Povo, o Ministério da Justiça afirmou que o SAR será fortalecido neste ano, a fim de produzir dados qualificados sobre o consumo e o tráfico de novas drogas no país, a exemplo do fentanil, com alertas decorrentes dessas substâncias com difusão que se destaque das demais. “[Vai] propor formas de atuação no combate ao tráfico e políticas de prevenção, redução de danos e apoio aos usuários”, destaca.
O MJ também diz que vai intensificar capacitações para qualificar o trabalho de agentes públicos para identificação e monitoramento de novas drogas. “Além disso, o SAR brasileiro aderiu ao Sistema de Alerta Temprana para las Américas (SATA) da Organização dos Estados Americanos (OEA)” para comunicação de episódios envolvendo apreensão, uso indevido ou irregular dessas substâncias.
Anvisa diz que adota medidas rigorosas para controlar distribuição do produto
À Gazeta do Povo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) disse que adota medidas rigorosas para controlar a distribuição e o uso de substâncias entorpecentes como a fentanila (categoria química mais genérica enquanto o fentanil é a substância específica) e que ela está classificada na Lista A1 da Portaria SVS/MS 344/1998. “Essas substâncias possuem o nível mais alto de controle dentro das regras estabelecidas por essa Portaria e sua regulamentação associada”, descreve a Anvisa.
Os medicamentos registrados na Anvisa que contêm a substância só podem ser vendidos com Notificação de Receita “A” (amarela), um receituário numerado distribuído a profissionais habilitados e cadastrados junto às Vigilâncias Sanitárias locais. “Esta notificação deve ser retida pelo farmacêutico no momento da dispensação, evitando a reutilização da prescrição. Além disso, hospitais e farmácias devem manter livros de escrituração para registrar todas as movimentações relacionadas à substância, visando fiscalização e controle”, afirma a agência.
A importação de fentanila é restrita a empresas autorizadas pela Anvisa com cota prévia. Elas precisam pedir Autorização de Importação para cada embarque. Algumas medidas normativas reforçam o controle de segurança nos depósitos de substâncias controladas. Existe resolução que classifica as substâncias entorpecentes no Nível A, exigindo precauções máximas, como armazenamento isolado com acesso controlado, lacres numerados, e Procedimentos Operacionais Padrão (POP) detalhados.
“A liberação deve ser feita por sistemas informatizados confiáveis, com monitoramento contínuo por câmeras. O controle é executado principalmente por estados e municípios, devido à descentralização das atividades no Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. Em casos de desvios ou investigações, a Anvisa colabora com autoridades policiais, como a Polícia Federal, por meio do Grupo de Trabalho para Classificação de Substâncias Controladas, ativo desde 2015”.
Segundo a Anvisa, um exemplo é a inclusão recente de substâncias usadas na produção ilegal do fentanil nas listas de proscritos da Portaria 344/98. Quanto aos dados de consumo do opioide, a Anvisa informou números gerais de Balanços de Substâncias Psicoativas, enviados anualmente à ONU conforme a Convenção Única de Entorpecentes de 1961. A agência diz que o consumo de fentanila corresponde à quantidade total de medicamento que foi fabricada ou importada para uso no país, após subtrair os estoques já existentes.
Em outras palavras, é a quantidade de fentanila que está realmente disponível para ser utilizada por hospitais e farmácias. “O aumento no consumo de 2020 a 2022 está diretamente relacionado ao uso da fentanila como anestésico durante a pandemia de Covid-19. Para evitar o desabastecimento de medicamentos essenciais, especialmente anestésicos para intubação orotraqueal”.
Para isso, a Anvisa editou normas específicas, uma delas determinou que as exportações de certos medicamentos e insumos farmacêuticos passassem a exigir autorização prévia da agência reguladora para garantir o suprimento no mercado brasileiro durante a crise sanitária.
Consumo legal de Fentanila (g) nos hospitais do Brasil:
- 2015: 12.791,511
- 2016: 17.891,139
- 2017: 14.231,811
- 2018: 13.929,840
- 2019: 12.382,797
- 2020: 36.355,659
- 2021: 89.603,478
- 2022: 65.059,954
- 2023: 19.899,553
Os dados de 2024 ainda não forma compilados.