Os episódios das últimas semanas envolvendo sérios conflitos entre os poderes da República impulsionaram a percepção de desordem institucional. No imbróglio mais recente, na terça-feira (25), o Supremo Tribunal Federal (STF) avançou sobre a legislação nacional de combate às drogas ao decidir liberar o consumo pessoal de maconha, definindo até a quantidade máxima para diferenciar usuário de traficante. A descriminalização ignorou regras em vigor e a tramitação no Congresso de proposta de emenda à Constituição (PEC) na direção inversa, de proibição do entorpecente. O mais novo capítulo do conhecido ativismo judicial provocou a pronta reação do Legislativo para voltar a decidir sobre o tema e desconforto até mesmo entre os membros do STF.
Ao votar com a maioria do plenário para decidir que não é crime o porte de maconha para consumo próprio, o ministro Luiz Fux, do STF, verbalizou uma crítica corriqueira na sociedade acerca do envolvimento da Corte em assuntos que, em princípio, “deveriam ser resolvidos na arena política”, ou seja, no Congresso. O magistrado sublinhou não ser mais possível ignorar as críticas ao Judiciário por avançar sobre atribuições dos outros poderes.
Ele se referiu a "críticas em vozes mais ou menos nítidas e intensas de que o poder Judiciário estaria se ocupando de atribuições próprias dos canais de legítima expressão da vontade popular, reservadas apenas aos poderes integrados por mandatários eleitos", e afirmou: "Nós não somos juízes eleitos, o Brasil não tem governo de juízes”.
Rebatendo a tese do ministro Dias Toffoli, segundo a qual, cada membro do STF teria a legitimidade de 100 milhões de eleitores, transferida pelo presidente da República, Fux também lembrou que “num estado democrático, a instância hegemônica é o Parlamento”. Assim, entendeu o juiz, não caberia à Corte dar satisfação ao eleitor. Mas a extrapolação de competência acabaria gerando desgaste e corroendo a credibilidade dos tribunais .
Ainda na terça-feira, o presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), reafirmou sua discordância sobre o julgamento que o STF estava levando adiante sobre a legislação das drogas. “A descriminalização só pode se dar através do processo legislativo e não por uma decisão judicial”, disse. A situação levou o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a dar continuidade à tramitação da PEC das Drogas, com a criação de um colegiado especial para a sua discussão, com expectativa de ser votada ainda este ano.
Na quarta-feira (26), o ministro Gilmar Mendes, do STF, contestou que a Corte estaria invadindo a competência do Congresso ao decidir descriminalizar o porte de maconha para consumo pessoal. “O que estamos examinando é apenas a constitucionalidade da lei. Não permitir que pessoas tenham antecedentes criminais por serem viciadas”, disse ele em Lisboa, onde participa do fórum jurídico organizado pela sua faculdade IDP. Para o ministro, o caso discute problema de saúde e “não uma liberação geral para recreio”.
Choque entre Legislativo e Judiciário é potencializado por atos do Executivo
Esse impasse em torno da PEC das Drogas se soma a outros que dão uma marca de instabilidade política e jurídica para o atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Desde a sua posse, o presidente se queixa da perda de poder para o Legislativo, que passou a controlar mais parcelas do Orçamento da União e da pauta de votações. Em resposta, Lula tem apelado ao Judiciário para intervir a seu favor. Assim, o Judiciário tem revogado decisões do Legislativo, criando uma série de contendas que, novamente, colocam em xeque a harmonia entre os poderes. Segundo especialistas e políticos, tal cenário gera uma confusão entre o presidencialismo em vigor com uma espécie de parlamentarismo informal.
Para completar a confusão mais recente, Lula tentou não parecer favorável à decisão do STF sobre a liberação do consumo de entorpecente, embora essa seja uma bandeira dos partidos de esquerda. Em entrevista ao UOL na quarta-feira (26), ele disse que o STF não é a instância adequada para decidir sobre a descriminalização do porte de maconha e de outras drogas. Para ele, a questão caberia ao Congresso, tendo como base a opinião de médicos e especialistas.
“Se um ministro da Suprema Corte pedisse um conselho para mim, eu diria: recuse essa proposta. A Suprema Corte não tem que se meter em tudo. Não pode pegar qualquer coisa e ficar discutindo porque começa a criar uma rivalidade que não é boa entre quem manda: o Congresso ou a Suprema Corte”, afirmou.
Além desse caso, o Executivo tem se envolvido em vários embates com o próprio Legislativo, com destaque para o impasse em torno das desonerações previdenciárias da folha de salários de 17 setores e milhares de prefeituras. O assunto foi judicializado. Duas medidas provisórias editadas pelo Palácio do Planalto acerca da questão foram rejeitadas total ou parcialmente pelo Congresso, numa situação inédita para um mesmo ano. No momento, o impasse perdura, desta vez envolvendo a busca de novos recursos para compensar a desoneração. O Senado apontou fontes de receita que o governo considera insuficientes.
Tarefa do governo de fazer corte de gastos pode parar nas mãos do Congresso
Nesse mesmo quadro de ruídos institucionais e de grave dificuldade do governo em promover um ajuste fiscal, Lula deu novo impulso aos seus ataques à figura do presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto. As disputas com a autoridade monetária se relacionam indiretamente à recusa de Lula em realizar cortes de gastos necessários ao equilíbrio das contas públicas, o que também estressa o mercado.
Para o cientista político Leonardo Barreto, da consultoria I3P, o resultado prático dessa recusa do Executivo em garantir previsibilidade da evolução dos seus gastos e do patamar da dívida federal é a tendência dessa responsabilidade própria do Executivo ser transferida para o Congresso. “Surge, então, a pergunta crucial: será que o Congresso empoderado poderá assumir o papel do governo e propor cortes nos gastos da máquina pública?”, pergunta ele.
Para Arthur Wittenberg, professor de Relações Governamentais e Políticas Públicas do Ibmec-DF, os embates entre os poderes flertam com a desordem institucional. A estratégia do presidente Lula de tentar ampliar os gastos e deixar o Congresso com o ônus de dizer "não" para suas investidas enfrenta a resistência da maioria dos parlamentares, que são de centro-direita e têm uma reação ideológica contra o crescimento do Estado através do aumento de impostos para custear despesas. “Ficou claro nos episódios recentes que o presidente não pode brigar com o Congresso nem com o Judiciário sobre questões mais polêmicas, restando apenas confrontar o presidente do Banco Central”.
Esse cenário se torna ainda mais complexo com a polarização e as redes sociais como pano de fundo, além do crescente protagonismo do Congresso. “A cada crise gerada no Executivo, o Legislativo criou regras para alterar a balança dos poderes, e isso tem se mantido. De toda forma, Lula ainda não enfrentou uma crise, neste mandato, que alterasse significativa e estruturalmente essa relação”, observou Wittenberg.
Em meio à crescente insegurança jurídica e política no país, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), avaliou os riscos de o país caminhar para uma completa desordem institucional, na qual “ninguém sabe quem manda em quê”. Para ele, esse cenário complexo e tumultuado coloca em evidência desafios de governança e a necessidade de clareza nas funções e responsabilidades dos três poderes, a fim de garantir a estabilidade e a eficácia do sistema político brasileiro.
“O que não pode é viver uma situação híbrida como essa. A desordem institucional é o que provoca a dificuldade para o país ir para frente. Precisamos saber o que somos. Somos presidencialistas? Então, que sejam as regras do presidencialismo impostas no país. Somos parlamentaristas? Então, vamos mudar o regime”, declarou Caiado à CNN, durante sua participação do 12º Fórum de Lisboa.
Caiado atuou no Congresso por 24 anos, entre as décadas de 1990 e 2010, e disse só ver paralelos da atual crise institucional com os períodos das cassações dos presidentes Fernando Collor e da Dilma Rousseff. “Falta diálogo, liturgia do cargo e responsabilidade de poder chamar as pessoas para poder construir um ponto de pacificação. Nenhum país cresce com esse nível de desordem institucional”, acrescentou.
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