Nem mesmo a expressiva reação de parlamentares e da sociedade contra a “Medida Provisória do Fim do Mundo” (MP 1227/2024) — destinada a compensar a desoneração previdenciária da folha de salários de 17 setores e milhares de prefeituras, e devolvida pelo Congresso — foi capaz de fazer o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) mudar de ideia sobre aumentar a arrecadação de impostos a qualquer custo.
Os movimentos que fez após esse desgaste político de tentar aumentar a carga tributária acabando com compensações de PIS e Cofins por meio de uma canetada, o maior de seu atual mandato, indicam a continuidade da indisposição em reduzir despesas e a insistência em buscar receitas extras nas maiores empresas para tapar rombos fiscais.
A prova mais clara disso foi a apresentação, pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), de uma grande cifra levantada pelo Fisco na reunião com Lula para tratar de ajustes no Orçamento. O total de R$ 546 bilhões anuais em isenções fiscais “surpreendeu o presidente” e elas se tornaram uma potencial tábua de salvação das contas públicas. Ocorre, contudo, que o governo passou a apostar na revisão de benefícios ao setor produtivo, resgatando a tensão que lhe impôs derrota da Medida Provisória do Fim do Mundo no Congresso.
A devolução parcial da MP pelo presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), no último da 12, impediu a alteração de regras que previam a limitação do uso de créditos do PIS e da Cofins para abater outros tributos, além da vedação ao ressarcimento do crédito presumido – dispositivos que causaram grave desconforto no setor produtivo. Segundo o governo, o texto traria arrecadação de R$ 29,2 bilhões.
Ao centrar fogo na redução dos benefícios fiscais e exigir contrapartidas para eventual manutenção, o governo enfrentará a resistência das mesmas entidades e grupos econômicos que ajudaram a derrubar a MP 1.227, entre os quais o agronegócio, citado nominalmente por Lula na cobrança por “mais contribuição dos ricos” ao Orçamento. Ele disse ainda precisar de estudos sobre a medida, mas adiantou que “nada está descartado”. Sobre cortar gastos, alegou o recorrente receio de “afetar os mais pobres”.
Em entrevista ao UOL nesta quarta-feira (26), Lula voltou a estressar o câmbio ao reforçar dúvidas sobre o plano de ajuste fiscal do governo, dizendo ser preciso saber se é mesmo necessário cortar gastos.
“O problema não é que tem que cortar. É preciso saber se precisa efetivamente cortar ou se a gente precisa aumentar a arrecadação. Como é que a gente pode falar em gastos se a gente está abrindo a mão de receber uma quantidade enorme de recursos”, disse ele, fazendo crítica à desoneração da folha de salários. O presidente admitiu haver estudos sobre onde há gastos exagerados para fazer cortes “sem nervosismo do mercado”.
O professor da Fundação Dom Cabral (FDC) Bruno Carazza, autor do livro "O País dos Privilégios" (2024), expressou à Gazeta do Povo o seu ceticismo também quanto à promessa do governo de revisar as isenções para grandes empresas. “A resistência das empresas é muito grande e a base do governo no Congresso é fraca. De toda forma, qualquer distorção tributária que puder ser corrigida é sempre bem-vinda”, disse.
Crítica de Lula a isenções fiscais contraria sua prática e histórico de gestões petistas
Em entrevista à CBN na semana passada, Lula repetiu o relato de Haddad e da ministra do Planejamento, Simone Tebet, de que estava “perplexo” com os mais de meio trilhão em isenções de setores econômicos, ignorando que boa parte desse valor é resultante das gestões petistas, inclusive a atual, em favor de grandes grupos econômicos.
Além de ter emplacado a manutenção de benefícios fiscais para polos automotivos no Nordeste dentro da reforma tributária aprovada em 2023, o governo Lula 3 também conseguiu aprovar um pacote de incentivos de R$ 20 bilhões à produção de veículos elétricos.
Para melhor ilustrar a sua contradição em relação à crítica aos benefícios fiscais, o governo editou, na semana passada, uma medida provisória para ajudar a empresa do setor elétrico dos irmãos Joesley e Wesley Batista, donos do Grupo JBS. Três dias após a Âmbar, distribuidora do Amazonas, comprar 13 termelétricas da Eletrobras por R$ 4,7 bilhões, o governo colocou o custo do negócio na conta de luz dos brasileiros por até 15 anos.
Relatório oficial do Ministério do Planejamento sobre as contas públicas com dados fechados até 2022 mostra que os subsídios mais que dobraram em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) entre 2003 e 2015 – de 2,96% para 6,66%, justamente no período dos dois primeiros mandatos de Lula e dos dois de Dilma Roussef (PT), quando se buscou favorecer os chamados “campeões nacionais”.
Os subsídios saltaram de R$ 50,9 bilhões (2003) para R$ 399,2 bilhões (2015). Em 2022, chegaram a R$ 581,5 bilhões. Foram para R$ 646 bilhões em 2023 e são projetados acima de R$ 780 bilhões para este ano. Eles tiveram queda em relação ao PIB durante o governo Michel Temer (MDB), mantiveram estabilidade nos dois primeiros anos de Jair Bolsonaro (PL), e voltaram a subir em 2021.
Mercado prefere apresentação de pacote robusto de cortes de gastos do governo
O mercado anda estressado devido a dúvidas sobre a sustentabilidade do marco fiscal e o temor de que a dívida da União siga em alta. Os investidores torcem por um pacote de corte de gastos, mas o governo propõe revisar benefícios fiscais, o que é visto como aumento de impostos. Essa iniciativa esbarra na mobilização empresarial contra ela no Congresso e o receio de parlamentares em apoiar pautas impopulares.
Estratégias como combater fraudes em benefícios sociais podem até gerar ganhos, mas menores que o esperado. Enquanto isso, a revisão dos mínimos constitucionais para saúde e educação e a desvinculação do ganho real do salário-mínimo para aposentadorias são bem-vistas pelo mercado, mas enfrentam resistência do PT e de Lula, que teme por mais impopularidade.
Para o analista financeiro Vandyck Silveira, o maior problema no ajuste fiscal é a visão do governo de que todos os gastos são investimentos, quando são despesas.
“Educação e saúde, por exemplo, são gastos necessários, mas não requerem aumentos contínuos e lineares”, disse.
Silveira critica a impossibilidade de desvincular esses gastos para permitir investimentos em outras áreas. “Todos gastos devem ser revistos e racionalizados para produzir eficiência na alocação do dinheiro público”, resumiu.
Continua o impasse em torno de saídas para compensar desoneração da folha
Nas suas últimas entrevistas, o presidente Lula avisou que cabe ao Senado e aos empresários buscarem uma saída para compensar a desoneração da folha de pagamento de salários. Caso contrário, o benefício cai, o que em tese beneficiaria o caixa do governo. Ocorre que os parlamentares têm evitado em seguir a mesma trilha proposta por Haddad, a de aumento da carga tributária.
O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, afirmou na segunda-feira (24) que as propostas do Senado para compensar a desoneração da folha podem ser apenas uma parte do conjunto de alternativas, pois não garantem arrecadação permanente.
Ele sublinhou que a Constituição e a Lei de Responsabilidade Fiscal exigem fonte contínua de receita para compensar a queda da receita previdenciária. “A equipe econômica está analisando as propostas dos senadores e espera dar retorno esta semana”, prometeu.
Para o cientista político Leonardo Barreto, diretor da consultoria I3P, a discussão de gastos pelo governo é improvável antes das eleições e restará a Haddad insistir no debate sobre a desoneração da folha.
“Mesmo sem medidas de controle de despesas, o PT já se posicionou contra, pressionando Lula a não fazer anúncios nesse sentido. Sem agenda de controle de despesas, a alternativa foi o presidente discursar contra Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central (BC)”, avaliou.
Ele alerta, contudo, que se a desoneração da folha cair, Lula será o único culpado por uma crise nos 17 setores que hoje são beneficiados.
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