O governo de Santa Catarina ainda comemorava o título de estado e capital mais seguros do país, de acordo com o Ranking anuário Cidades Mais Seguras do Brasil de 2024, da consultoria MySide, divulgado em setembro deste ano, quando a Grande Florianópolis passou a viver momentos de terror. Facções criminosas se envolveram em conflitos armados intensos na disputa por territórios em uma escalada de violência desde a semana passada.
O Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Primeiro Grupo Catarinense (PGC) travam uma disputa por território e o que se viu na última semana foram cenas que o estado não convivia há pelo menos seis anos.
O governador Jorginho Mello (PL) tentou dar uma resposta rápida e confirmou durante uma entrevista coletiva à imprensa se tratar de uma disputa por territórios. Ele disse que as forças de segurança estão dando uma resposta forte à onda de violência.
No último fim de semana, após uma série de ataques que resultaram em carros e ônibus incendiados em diversos pontos da capital e da região metropolitana, um gabinete de crise foi acionado pela Polícia Civil.
As principais ações criminosas foram registradas na região central e na zona norte de Florianópolis, na cidade conhecida no meio turístico como a "Ilha da Magia". A região norte de Floripa tem áreas de tráfico de drogas dominadas pelo PCC, mas que o PGC quer controlar.
Moradores e turistas usaram as redes sociais para relatar os momentos de terror, principalmente entre a noite de quinta e madrugada de sexta-feira (dias 17 e 18 de outubro) com histórias que se repetiam. Elas alertavam que veículos de passeio, alguns deles roubados, ônibus e outros objetos eram colocados no meio de ruas e incendiados, tudo para dificultar a chegada da polícia nos pontos de conflito entre as facções ou na busca por criminosos em fuga. Tiroteios também foram presenciados nessas regiões da cidade.
Na manhã do último domingo (20) a polícia disse que 12 pessoas haviam sido presas e um suspeito morreu em um confronto. Em meio à escalada dos conflitos, o governador usou as redes sociais para tranquilizar a população de Santa Catarina.
“A nossa força de segurança é uma das melhores do país. Nós não damos moleza para bandido e nem para criminoso. A gente sempre combateu facções criminosas e vamos continuar combatendo. Colocaram fogo para intimidar. Enfim, aqui em Santa Catarina, bandido não tem moleza. Nós não vamos permitir nenhum tipo de excesso. Aqui tem disciplina. Santa Catarina merece respeito e tem o nosso respeito", declarou.
Em nota, a Secretaria de Estado da Segurança Pública de SC disse que as forças de segurança seguem mobilizadas para atuar nas ocorrências registradas na Grande Florianópolis. Interlocutores do governo do estado afirmam que Jorginho Mello não cogita acionar forças nacionais de segurança e que tudo será resolvido pela segurança pública do estado.
“O policiamento foi reforçado nas áreas de maior risco, com equipes das Polícias Militar e Civil, além do apoio do Corpo de Bombeiros Militar, atuando de forma integrada nos incêndios registrados em alguns pontos da Grande Florianópolis [...] Desde o início dos incidentes, diversas operações foram desencadeadas para conter os atos criminosos, resultando em prisões. O governo do estado reitera o compromisso com a ordem pública e a segurança dos cidadãos, e seguirá empregando todos os recursos necessários para restabelecer a tranquilidade na região”, completa a Secretaria de Segurança.
A pasta afirma ainda que segue monitorando a situação e fornecerá atualizações à medida que novas informações surgirem. Porém, o avanço das facções no estado considerado o mais seguro do Brasil tem causado preocupação diante das cenas até então mais comuns em São Paulo, pelo domínio do PCC, e no Rio de Janeiro, por causa do Comando vermelho (CV). De modo geral, essas duas facções têm relação direta e indireta nos enfrentamentos e conflitos registrados em Santa Catarina desde a última semana.
Como a morte de um ex-soldado americano desencadeou a guerra pelo tráfico na Grande Florianópolis
A escalada nos enfrentamentos entre o PGC e o PCC vinha se potencializando desde setembro na disputa por territórios, principalmente após uma operação da Polícia Civil que mirou traficantes em regiões dominadas por essas organizações. O estopim, no entanto, teria sido com a morte de David Beckhauser Herold, no dia 2 de outubro. O produtor musical de 34 anos tinha o apelido de "Americano" porque viveu nos Estados Unidos de 2008 a 2013 e foi solado do país nesse período.
Ele é filho de uma brasileira com um norte-americano. Ao voltar ao Brasil, ele foi preso por tráfico de drogas em 2015 e entrou para o PGC, onde era apontado, segundo as investigações policiais, como líder da facção. A Gazeta do Povo não conseguiu contato com sua defesa. "Americano" respondia a vários processos, chegou a ser condenado em 2016 por um homicídio e uma tentativa em 2014, mas cumpria pena em regime aberto.
No início de outubro deste ano, "Americano" foi morto a tiros em São Paulo durante a gravação de um clipe de um artista de trap do qual era produtor musical. A Polícia Civil de São Paulo informou que dois homens se aproximaram do local da gravação e dispararam pelo menos 60 vezes contra "Americano", que morreu no local. O PGC passou a desconfiar que a morte teria sido ordenada pelo PCC, embora as investigações policiais ainda estejam em curso.
PGC e PCC: as semelhanças entre facções rivais que disputam domínio em Santa Catarina
A exemplo do PCC, que nasceu dentro do sistema prisional de São Paulo em 1993, o PGC nasceu nas prisões catarinenses em 2003 para confrontar o avanço e domínio do PCC no estado. Tudo isso porque o Primeiro Comando da Capital tem planos ousados para Santa Catarina. Além da lavagem de dinheiro do tráfico de drogas e armas com a compra de imóveis de luxo nas badaladas cidades do litoral catarinense, a facção está de olho nos portos do estado, como o de Navegantes, de São Francisco do Sul, de Itapoá, de Imbituba e de Itajaí.
É pelos portos que a maior facção criminosa brasileira despacha cocaína camuflada em meio a cargas lícitas para os cinco continentes, reforça o promotor de Justiça que investiga a facção paulista há mais de duas décadas, Lincoln Gakiya.
Na tentativa de exercer domínio e não permitir o avanço do PCC no estado, o PGC avança sobre o Sul do Brasil devido a parcerias com o Comando Vermelho (CV) e ao enfraquecido grupo Família do Norte (FDN), que chegou a ser uma das maiores facções criminosas do Norte do Brasil, mas que vem definhando segundo investigações policiais. Ambas são rivais do PCC.
Apurações da Polícia Civil e do Ministério Público em Santa Catarina avaliam que o PCC se consolidou em todo o estado, mesmo com a resistência do PGC, o qual também quer manter o domínio sobre o sistema penitenciário estadual.
Rígido e sanguinário, o Primeiro Grupo Catarinense também exerce domínio por técnicas cruéis de ataques contra seus rivais, aponta o Ministério Público (MPSC). A organização catarinense expande suas ações para o controle dos presídios na tentativa de inibir o avanço do PCC sobre detentos e, mesmo presos, líderes do PGC determinam o que faccionados fora da prisão devem fazer, o que inclui missões como sequestros, extorsões e assassinatos com meios cruéis. As investigações também querem saber se os ataques da semana passada foram ordenados por faccionados presos.
Outro ponto investigado é a corrupção no sistema penitenciário, que se apresenta como uma marca registrada do bando, facilitando acesso de telefones nas prisões, comunicação direta entre presos e não presos, e o domínio interno das cadeias.
O deputado federal Delegado Palumbro (MDB-SP) tem chamado a atenção para a escalada de violência protagonizada pelo PCC e outras facções. Ele lembra que o Brasil tem mais de 70 organizações criminosas que avançaram pela omissão de governos estaduais, mas sobretudo diante da inércia do governo federal.
“O Brasil não produz drogas, elas entram pelas fronteiras. Onde está o governo federal para combater isso? Boa parte das armas também entra pelas fronteiras, onde está a União? O governo não faz sua lição de casa, principalmente nas fronteiras e nos portos utilizados por esses grupos para o tráfico de drogas”, alerta.
Santa Catarina recebe quase 3 milhões de turistas por ano; setor pode ser afetado
Além da segurança pública, outro ponto de atenção com a violência é o econômico e diz respeito ao turismo - o setor movimentou R$ 2,1 bilhões na economia estadual em 2023. Os dados são da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur) e revelam que o estado é o quarto que mais recebe turistas no Brasil.
“As pessoas, as famílias tendem a visitar menos locais onde o crime organizado se faz presente e isso traz um alerta à economia e ao turismo. A resposta no combate à criminalidade precisa ser rápida”, reforça o advogado especialista em Direito Econômico, Márcio Nunes.
Na Grande Floripa e cidades praianas próximas, cerca de 70% dos imóveis existentes são para locação, principalmente na temporada de verão que se aproxima. Anualmente Santa Catarina recebe aproximadamente três milhões de turistas. Isso representa um incremento de quase 40% de toda a população residente no estado, que é de 8,1 milhões de habitantes.
“Santa Catarina sempre foi um local muito seguro e os turistas desejam que siga assim. É um destino de brasileiros, de paraguaios, de argentinos. Espera-se que esses conflitos sejam logo vencidos pela segurança pública e para levar tranquilidade a quem vai aproveitar a temporada em algumas das praias mais bonitas do Brasil”, completa o especialista.
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