No início da sessão de julgamentos de 14 de março de 2019, o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, anunciou no plenário uma medida inusitada: a abertura, de ofício, de uma investigação sigilosa, delegada por ele mesmo ao ministro Alexandre de Moraes, para apurar “notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”.
Estava instaurado, oficialmente, o “inquérito das fake news”, que desde então já alvejou agentes públicos, formadores de opinião, jornalistas, parlamentares, empresários e cidadãos comuns que ousaram criticar, questionar e insultar os ministros da Corte. Expressões populares de repúdio ao STF, nas ruas e nas redes, passaram a ser categorizadas como “ataques” à instituição, que supostamente ameaçariam a integridade física e a independência dos magistrados para julgar processos. Como a indignação contra o STF se estende no tempo e se multiplica na sociedade e no meio político, o inquérito não tem data para acabar.
Nesses cinco anos, a condução do inquérito por Moraes fez crescer o poder do STF, e atos heterodoxos, que sempre foram repudiados na jurisprudência da própria Corte por violar o devido processo legal ou afrontar o direito de defesa, tornaram-se comuns. Casos distintos e sem uma ligação clara passaram a ser investigados pelo ministro, quase sempre de forma sigilosa e por delegados da Polícia Federal que se reportam diretamente a ele, escanteando muitas vezes a Procuradoria-Geral da República (PGR), destinatária final das investigações, enquanto órgão apto a analisar fatos, provas e suspeitas para formular denúncias criminais perante a Corte.
O inquérito das fake news se ramificou em várias investigações, autuadas no STF sob a forma de novos inquéritos – como o dos “atos antidemocráticos”, o das “milícias digitais” e mais recentemente os relacionados ao 8 de janeiro de 2023 – ou de diversas e incontáveis “petições”, pedidos de investigação autônomos que chegam ao gabinete de Moraes, em geral, por parte de parlamentares ou da PF, para apurar casos mais específicos e que acabam sendo conduzidos pelo ministro sob a justificativa de também representarem “ameaças” ao tribunal.
Já foram investigados por Moraes procuradores da Lava Jato que apontaram o desmonte da operação no STF; auditores fiscais que levantaram o patrimônio de ministros e parentes; jornalistas, comentaristas políticos e veículos de comunicação que publicaram reportagens embaraçosas ou críticas aos ministros; parlamentares e assessores que contestaram, debocharam ou se revoltaram contra suas decisões; um partido de esquerda radical que também apontou excessos na investigação; e até empresários aborrecidos com a atuação da Corte, que desabafavam num grupo privado de WhatsApp, acusados de incitar um “golpe”.
Desde 2021, quando o então presidente Jair Bolsonaro (PL) passou a ser investigado e deu diversas declarações sobre a perseguição à direita, a principal justificativa para a continuidade do inquérito tem sido a “defesa da democracia”, especialmente após os atos contra a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que resultaram na invasão e depredação do Congresso, do Palácio do Planalto e do STF em 8 de janeiro de 2023 – os manifestantes foram acusados de tentar derrubar o petista da Presidência da República, de agir com a intenção de abolir o Estado Democrático de Direito, e também foram responsabilizados pelos danos ao patrimônio público.
Na breve cronologia abaixo, relembre os principais fatos, alvos e casos do inquérito ano a ano.
2019: Lava Jato na mira, revista censurada e auditores afastados
Em 13 de março de 2019, véspera do dia em que Toffoli abriu o inquérito das fake news, o advogado Ricardo Pieri Nunes, defensor do prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, então investigado na Lava Jato, subiu à tribuna do STF e apontou um “ataque” que a força-tarefa de Curitiba estaria promovendo contra o Judiciário. Ele criticava a publicação de um artigo, do procurador Diogo Castor de Matos, no site O Antagonista, no qual ele escreveu que os ministros ensaiavam um “golpe” contra a operação. O texto criticava a possibilidade de o STF retirar da Justiça Federal e passar para a Justiça Eleitoral dezenas de casos de corrupção ligados a doações ilegais de campanha.
O Ministério Público Federal se opunha à transferência por entender que, na jurisdição eleitoral, os juízes não teriam capacidade, estrutura e expertise para supervisionar grandes investigações envolvendo lavagem de dinheiro e delitos complexos, e que se concentravam há vários anos em varas especializadas da Justiça Federal, como era o caso da 13ª Vara de Curitiba, onde o ex-juiz Sergio Moro conduzia centenas de processos do petrolão.
“Um procurador da República, e não uma criança inocente de tenra idade, às vésperas de um julgamento no plenário do STF, vai à imprensa para se pronunciar sobre o julgamento e dizer que ministros da Corte estariam articulando um golpe! E Sua Excelência diz isso sem pudor, sem constrangimento, como se fosse a ordem natural das coisas, na expectativa de que Vossas Excelências se sujeitarão a esse tipo de ofensa e atenderão ao desejo da Operação Lava Jato, alçada ao status de instituição nacional, com vida própria e ai de quem ouse discordar”, disse Nunes.
Os ministros ouviam compenetrados o advogado Ricardo Pieri Nunes que, naquele mesmo dia, convenceu a maioria deles a transferir os casos para a Justiça Eleitoral – nos anos seguintes, várias investigações morreriam nesse ramo do Judiciário. Na época, Sergio Moro, então ministro da Justiça, já havia proposto em seu pacote anticrime que os processos permanecessem na Justiça Federal para sobreviverem. Toffoli, na sessão, disse que todos os ministros do STF integram o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
“Atacar a cada um de nós já é um ataque a todos. Atacar o Poder Judiciário Eleitoral é atacar a essa Suprema Corte também”, afirmou, anunciando que pediria ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para apurar os “ataques” do procurador Diogo Castor. “Não é admissível esse tipo de ilação. Críticas no debate jurídico é necessário e faz parte. Agora, a calúnia, a difamação, a injúria não serão admitidos”, afirmou o então presidente do STF.
No dia seguinte, ele instauraria o Inquérito 4781, com base em dispositivos do regimento interno que dão ao presidente do STF a atribuição de “zelar pela intangibilidade das prerrogativas da Corte e de seus membros” e o poder de abrir investigação “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal” e “se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição”, podendo delegar a condução a outro ministro. “Designo para a condução do feito o ministro Alexandre de Moraes, que poderá requerer à presidência da Corte a estrutura material e de pessoal que entender necessária”, disse Toffoli. “Presidente, aceito a designação e iniciarei imediatamente os trabalhos”, respondeu Moraes. “Vossa Excelência terá toda a liberdade na condução desse inquérito e todo apoio dessa presidência”, disse Toffoli.
Antes, ao anunciar o inquérito, o presidente do STF afirmou que não existe democracia “sem Judiciário independente e imprensa livre”. Um mês depois, em abril, Moraes mandaria a revista Crusoé e o site O Antagonista retirar do ar, sob pena de multa diária de R$ 100 mil, uma reportagem que revelava que o empresário Marcelo Odebrecht, em sua delação premiada, se referia a Toffoli como “o amigo do amigo do meu pai”. Marcelo narrava tratativas sobre obras de hidrelétricas no Rio Madeira no segundo mandato de Lula, quando Toffoli era advogado-geral da União. Não havia qualquer afirmação de atos ilícitos por parte do ministro.
Após a publicação da reportagem, Toffoli mandou mensagem a Moraes pedindo providências em razão de “mentiras recém divulgadas por pessoas e sites ignóbeis que querem atingir as instituições brasileiras”, referindo-se à informação do site O Antagonista de que o caso já teria chegado à PGR, o que o órgão negou em nota. Moraes entendeu que era o caso de “intervenção do Poder Judiciário”. “A plena proteção constitucional da exteriorização da opinião (aspecto positivo) não constitui cláusula de isenção de eventual responsabilidade por publicações injuriosas e difamatórias”, escreveu na ordem de retirada da reportagem do ar.
Três dias depois, após uma repercussão negativa em toda a imprensa, no meio jurídico e de uma nota crítica do então decano do STF, Celso de Mello, Moraes recuou e revogou a censura. “Comprovou-se que o documento sigiloso citado na matéria realmente existe, apesar de não corresponder à verdade o fato que teria sido enviado anteriormente à PGR para investigação”, justificou Moraes. Ao jornal Valor Econômico, Toffoli disse que “se você publica uma matéria chamando alguém de criminoso, acusando alguém de ter participado de um esquema, e isso é uma inverdade, tem que ser tirado do ar. Ponto. Simples assim”. A reportagem não apontava pagamentos ilegais ou conduta ilícita do ministro.
Alguns meses depois, em agosto, dentro do inquérito das fake news, Moraes suspendeu uma fiscalização que a Receita fazia sobre 133 contribuintes, entre os quais Gilmar Mendes e a advogada Roberta Rangel, mulher de Toffoli. “São claros os indícios de desvio de finalidade na apuração da Receita Federal, que, sem critérios objetivos de seleção, pretendeu, de forma oblíqua e ilegal investigar diversos agentes públicos, inclusive autoridades do Poder Judiciário, incluídos Ministros do Supremo Tribunal Federal, sem que houvesse, repita-se, qualquer indicio de irregularidade por parte desses contribuintes”, escreveu Moraes na decisão.
Na ocasião, ele afastou do cargo dois auditores suspeitos de vazarem os dados, mas a PGR recorreu. Em novembro daquele ano, Moraes autorizou que eles retornassem às suas funções. A fiscalização, que levantava suspeitas em relação a movimentações financeiras, seguiu paralisada. Ao STF, o órgão disse que a fiscalização era técnica e que não havia “ação dirigida contra qualquer cidadão específico”. “Imperativo que as autoridades tributárias tenham condições de desempenhar seu trabalho com autonomia, e o façam com responsabilidade. Assim se atua na Receita Federal”, afirmou em ofício à Corte a auditora Ilka Pugsley.
O inquérito das fake news também mexeu com o Congresso, que instalou uma CPMI sobre o assunto. Dominada pela oposição e ex-aliados que romperam com Bolsonaro, tornou-se mais um palco de ofensas, ilações e factóides entre os próprios parlamentares. Ainda assim, parte das investigações chegaram a Moraes, sobretudo a história de que haveria um “gabinete do ódio”, composto por assessores de Bolsonaro no Palácio do Planalto, que espalhavam memes e mentiras contra seus desafetos nas redes sociais.
2020: sob pressão, PGR resolve investigar “atos antidemocráticos”
Desde a abertura do inquérito das fake news, em março de 2019, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, contestou sua validade. Não só por aspectos formais – abertura de ofício, sem sorteio de relator, por fatos ocorridos fora do STF, sem participação do MP –, mas também pelo risco de punir procuradores da Lava Jato e assim intimidar toda a classe. Seu pedido para arquivar o caso foi ignorado. Em setembro de 2019, Dodge encerrou seu mandato e Augusto Aras, que sempre criticou os métodos da Lava Jato, assumiu a PGR.
Em 2020, porém, o foco do inquérito começaria a mudar. Bolsonaro e seus apoiadores passariam a criticar duramente o STF por permitir que governadores e prefeitos restringissem a circulação de pessoas para tentar conter a disseminação da Covid. Para o ex-presidente, isso arruinaria a economia e, por isso, ele passou a convocar manifestações contra as restrições. Em abril, ele foi a um ato no QG do Exército em Brasília em que havia manifestantes que protestavam contra o STF, contra o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, vistos pelos simpatizantes de Bolsonaro como sabotadores do governo.
Sob pressão, Aras então pediu ao STF a abertura de um novo inquérito, para investigar eventual participação de parlamentares em “atos antidemocráticos”. Sua expectativa era garantir a participação do Ministério Público na apuração de “ataques” ao STF, abarcando também ofensas dirigidas aos caciques do Congresso. Mas a PGR continuou de lado.
No final de maio de 2020, Aras pediu ao STF a suspensão do inquérito das fake news no dia em que, por ordem de Moraes, a PF fez uma operação contra 17 apoiadores de Bolsonaro. Houve busca e apreensão na casa de Allan dos Santos, dono do site de direita Terça Livre, quebra de sigilos bancários e bloqueio das redes sociais dos empresários Luciano Hang e Edgard Gomes Corona, do ex-deputado Roberto Jefferson, de um militar e um humorista. Ativistas e influenciadores também foram alvos, entre eles Sara Winter, Bernardo Kuster e Winston Lima. O objetivo, segundo Moraes, era a “interrupção dos discursos com conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática”.
Aras disse que a PGR foi “surpreendida” pelas diligências, chamadas de “desnecessárias”, por trazerem “constrangimentos desproporcionais” aos investigados, em razão de críticas ao STF. “A leitura dessas manifestações demonstra, a despeito de seu conteúdo incisivo em alguns casos, serem inconfundíveis com a prática de calúnias, injúrias ou difamações contra os membros do STF. Em realidade, representam a divulgação de opiniões e visões de mundo, protegidas pela liberdade de expressão”, escreveu o então procurador-geral da República.
O pedido foi feito ao ministro Edson Fachin, relator de uma ação da Rede para derrubar o inquérito – o partido inicialmente se opôs à investigação em defesa da Lava Jato. O inquérito, no entanto, acabou referendado pela maioria do STF em junho, quando essa ação foi julgada. Na decisão, a Corte considerou que a investigação havia chegado a manifestações de “incitamento ao fechamento do STF, de ameaça de morte ou de prisão de seus membros, de apregoada desobediência a decisões judiciais” e daí a necessidade de sua continuidade.
A decisão determinava acompanhamento do MP, acesso aos autos pelos advogados de investigados e garantia da liberdade de imprensa e expressão, em matérias jornalísticas ou manifestações pessoais nas redes sociais, “desde que não integrem esquemas de financiamento e divulgação em massa”.
Em junho, a investigação contra apoiadores de Bolsonaro prosseguiu. No âmbito do inquérito dos atos antidemocráticos, Moraes quebrou sigilos bancários de 10 deputados federais e 1 senador, todos aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro, muitos dos quais ainda eram membros do PSL e hoje integram o PL: Daniel Silveira (PSL-RJ), Cabo Junio do Amaral (PSL-MG), Carla Zambelli (PSL-SP), Caroline de Toni (PSL-SC), Alê Silva (PSL-MG), Bia Kicis (PSL-DF), General Girão (PSL-RN), Guiga Peixoto (PSL-SP), Aline Sleutjes (PSL-PR), Otoni de Paula (PSC-RJ) e Arolde de Oliveira (PSD-RJ). Silveira sofreu busca e apreensão, assim como Allan dos Santos e Otávio Fakhoury, que já haviam passado pela medida em maio.
No dia seguinte, Bolsonaro reagiu. “Não teremos outro dia como ontem, chega”, disse ao vivo na TV ao deixar o Palácio da Alvorada. “Querem tirar a mídia que eu tenho a meu favor sob o argumento mentiroso de fake news”, afirmou, acrescentando ainda que “ordens absurdas não se cumprem” e que “temos que botar limites”.
Um grupo de militantes de Bolsonaro, conhecido como 300, ficou acampado por dias na Esplanada dos Ministérios, para protestar contra o STF. Depois que o governo do Distrito Federal retirou o grupo do local, alguns foram para a frente do STF e jogaram fogos de artifício contra o prédio, emulando um bombardeio.
“O STF jamais se curvará ante agressões covardes de verdadeiras organizações criminosas financiadas por grupos antidemocráticos que desrespeitam a Constituição Federal, a Democracia e o Estado de Direito. A lei será rigorosamente aplicada e a Justiça prevalecerá”, reagiu Moraes nas redes sociais. A principal ativista do movimento, Sara Winter, foi presa, solta dias depois, mas monitorada. O mesmo se deu com o jornalista Oswaldo Eustáquio, que incentivava a manifestação e chegou a ser preso outras vezes nos anos seguintes.
2021: deputado é preso após xingar ministros; Bolsonaro vira alvo
No carnaval de 2021, um vídeo do deputado Daniel Silveira rapidamente viralizou nas redes. Na gravação caseira, formato selfie, ele despejava sua raiva contra os ministros, xingando alguns com palavrões, insinuando que outros praticavam corrupção, expressando o desejo de que fossem surrados ou jogados numa lixeira. Em um momento, desafiou os ministros a prenderem o general Villas Boas, defendeu o AI-5 e a cassação dos ministros.
Moraes determinou a prisão preventiva e a retirada do vídeo da internet. “[As manifestações] revelam-se gravíssimas, pois, não só atingem a honorabilidade e constituem ameaça ilegal à segurança dos ministros do Supremo Tribunal Federal como se revestem de claro intuito visando a impedir o exercício da judicatura, notadamente a independência do Poder Judiciário e a manutenção do Estado democrático de Direito”, escreveu na decisão.
A Câmara autorizou a manutenção da prisão preventiva. Novamente pressionada, a PGR o denunciou por coação no curso do processo, incitação de animosidade entre as Forças Armadas e as instituições civis, e incitação ao crime de tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício do Judiciário.
Durante os períodos de prisão e monitoramento, Silveira passou a pedir ajuda do Palácio do Planalto, sob o argumento de que estava sendo perseguido por defender governo Bolsonaro. Em dezembro, num discurso na presença do deputado, já solto, o ex-presidente disse que “doeu no coração ver um colega preso”. “Temos aqui um parlamentar que ficou sete meses preso. Se coloquem no lugar dele”, afirmou. “Mas o que fazer? Será que queriam que eu tomasse medidas extremadas? Como é que ficaria o Brasil perante o mundo?”
Em 2022, Silveira seria condenado a 8 anos e 9 meses de prisão pelo STF. No dia seguinte, Bolsonaro decretou um indulto para perdoar sua pena, mas o ato foi anulado pelo próprio STF em 2023 por “desvio de finalidade”.
No final de julho de 2021, a PGR pediu o arquivamento do inquérito dos atos antidemocráticos. Moraes atendeu, mas abriu outro no lugar, nominado inquérito das milícias digitais. O objeto seria a investigação de uma organização criminosa dividida em núcleos de produção, financiamento, divulgação de “notícias fraudulentas” contra as instituições democráticas. Era mais uma "ramificação" do inquérito das fake news, focado em militantes e influenciadores de direita.
A relação entre Bolsonaro, o STF e o TSE foi se agravando ao longo do ano. O ex-presidente passou a repetir mais vezes o discurso de que uma fraude teria impedido sua eleição no primeiro turno em 2018 e que as eleições de 2022 só seriam limpas com o voto impresso. A deputada Bia Kicis (PL-DF), uma de suas principais aliadas, apresentou uma PEC para que a urna imprimisse um comprovante, mas sob pressão do TSE e do STF, a proposta acabou rejeitada na comissão especial e no plenário da Câmara – os ministros temiam que eventual recontagem dos votos pelo papel abriria múltiplas possibilidades de fraude e confusão na votação.
Em julho, Bolsonaro convocou a imprensa no Palácio da Alvorada para mostrar “provas” de que as urnas eletrônicas seriam fraudáveis. O evento foi transmitido ao vivo na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que pertence à União, e nas redes sociais. Na ocasião, o ex-presidente apresentou vídeos que circulam na internet de pessoas apontando supostas falhas na digitação dos votos e explicações de como votos, em tese, poderiam ser desviados. Várias suspeitas já haviam sido rebatidas pelo TSE ao longo dos anos. A pedido da Corte, Alexandre de Moraes incluiu Bolsonaro no inquérito das fake news.
Outra investigação, a cargo de Moraes, foi aberta depois que o ex-presidente postou nas redes sociais o arquivo de um inquérito da PF sobre uma invasão hacker ao TSE em 2018. A imputação era de divulgação de informações sigilosas, mas a PGR pediu o arquivamento por considerar que não havia segredo de Justiça imposto sobre a investigação na época.
Em agosto e setembro, a tensão entre Bolsonaro e os ministros atingiu o ápice quando o ex-presidente convocou uma manifestação na Avenida Paulista, em São Paulo, no 7 de Setembro. Foi aberto um inquérito específico sobre o ato, sobretudo para apurar a participação de policiais e caminhoneiros, pelo temor de paralisações, motins e invasão do STF.
No Dia da Independência, na Avenida Paulista, Bolsonaro chamou Moraes de “canalha” e disse que não cumpriria suas ordens. “Dizer a esse indivíduo que ele tem tempo ainda para se redimir. Tem tempo ainda para arquivar seus inquéritos. Ou melhor, acabou o tempo dele. Sai, Alexandre de Moraes!”, bradou.
Nos dias seguintes, por intermédio do ex-presidente Michel Temer (MDB), Bolsonaro ligou para Moraes para se desculpar, disse que não quis ofender e deu as declarações no calor do momento. Divulgou uma carta dizendo que respeitava o ministro, que tinha divergências, mas que deveria prevalecer a harmonia entre os poderes.
2022: Partidos e empresários investigados
A tensão entre Bolsonaro e o TSE continuaria em 2022, sobretudo por meio da participação das Forças Armadas numa comissão do tribunal criada para fiscalizar as eleições. Em linha com o ex-presidente, o Ministério da Defesa passou a fazer vários questionamentos ao sistema de votação eletrônico e recomendou mudanças de procedimento no teste de votação, em que urnas são separadas no dia da eleição para conferir o funcionamento. O TSE realizou o teste conforme a recomendação dos militares e, ao final, eles comunicaram que não foram encontradas fraudes.
O PL, partido de Bolsonaro, também foi acionado para fiscalizar o sistema. Quando o partido divulgou um relatório apontando inconsistências na segurança, Moraes requisitou do partido dados e gastos da auditoria, dentro do inquérito das fake news. Após o segundo turno, o ministro multou o PL no TSE em R$ 22 milhões, por questionar o resultado com base na análise de dados das urnas – parte delas apresentava o mesmo número de identificação.
Em junho, outra agremiação entrou na mira de Moraes: o Partido da Causa Operária (PCO), da esquerda mais radical e libertária. Postagens nas redes sociais que o criticavam pela condução do inquérito das fake news chegaram ao conhecimento do ministro. “Em sanha por ditadura, skinhead de toga retalha o direito de expressão, e prepara um novo golpe nas eleições. A repressão aos direitos sempre se voltará contra os trabalhadores!”, postou o PCO.
Em outros tuítes, defendeu a “dissolução” do STF, em razão da promessa do ministro de cassar candidatos que divulgassem “fake news” nas eleições e apontou uma “ditadura do TSE”.
Em pouco mais de duas páginas, Moraes afirmou que as publicações do PCO tinham “gravidade”, atingiam “a honorabilidade e a segurança” do STF e de seus ministros, insinuava prática de atos ilícitos por eles e que, por isso, era necessário adotar providências para “cessar a prática criminosa” e investigar o caso.
Ainda destacou que o partido estaria usando recursos públicos para impulsionar e propagar “declarações criminosas”, com “disseminação em massa de ataques escancarados e reiterados às instituições democráticas e ao próprio Estado Democrático de Direito, em total desrespeito aos parâmetros constitucionais que protegem a liberdade de expressão” – ele não detalhou, especificamente, que crimes estariam sendo cometidos e em quais postagens.
O modo de Moraes atuar no STF foi transferido para o TSE no período eleitoral. Como presidente da Corte, ele aprovou, antes do segundo turno das eleições, uma resolução dando a si mesmo poder de polícia para remover postagens e perfis das redes sociais que contivesse “fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados”.
Um documentário da produtora Brasil Paralelo sobre a tentativa de matar Bolsonaro em 2018 sofreu censura prévia – o TSE proibiu sua veiculação na internet na semana anterior à votação, sem que os ministros conhecessem seu conteúdo. No final do ano, jornais brasileiros e estrangeiros notaram e passaram a criticar a proatividade do ministro na condução dos inquéritos.
Ainda em 2022, instalou-se no TSE e no STF o temor de uma tentativa de golpe ou ruptura institucional por parte de Bolsonaro, militares, aliados e apoiadores. Ministros sempre lembravam da invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, em que apoiadores do ex-presidente Donald Trump tentaram impedir a nomeação de Joe Biden nos Estados Unidos.
Os inquéritos de Moraes, então, passaram também a suspeitar de movimento semelhante no Brasil. Em agosto de 2022, o jornalista Guilherme Amado publicou conversas vazadas de um grupo de empresários no WhatsApp que apoiavam Bolsonaro. Um disse que preferia um golpe à volta do PT. “Golpe foi soltar o presidiário. Golpe é o Supremo agir fora da Constituição”, desabafou outro. “O golpe teria que ter acontecido nos primeiros dias de governo. Em 2019 teríamos ganhado outros 10 anos a mais”, escreveu um terceiro.
O ministro determinou busca e apreensão, recolheu celulares, quebrou sigilos bancário e telemático e bloqueou os perfis dos empresários nas redes. Um ano depois, arquivou a investigação contra a maioria deles, por entender que “não passaram dos limites de manifestação interna no referido grupo, sem a exteriorização capaz de causar influência em terceiros como formadores de opinião”.
2023: 8 de Janeiro consolida a investigação
A invasão e depredação dos edifícios do Congresso, do Palácio do Planalto e do STF em 8 de janeiro de 2023, uma semana após a posse de Lula na Presidência da República fortaleceu ainda mais Alexandre de Moraes. Ele mesmo assumiu o caso, por ligação com os inquéritos anteriores, sobretudo o de 7 de setembro de 2021, e na noite do mesmo dia, ele mandou a PF prender todos os manifestantes, inclusive os que estavam acampados em frente ao QG do Exército, e afastou o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha.
Mais de mil pessoas foram presas. Os invasores foram denunciados por tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito, associação criminosa, dano ao patrimônio tombado e depredação de bens públicos. Os acampados foram acusados de associação criminosa e incitação das Forças Armadas a animosidade contra as instituições.
Até o momento, mais de cem pessoas que estavam na invasão foram condenadas a penas que variam entre 14 e 17 anos. Aos acampados, acusados por crimes com penas menores, foi oferecido um acordo, mediante confissão, pagamento de multa e comparecimento a curso sobre a democracia.
No processo, as defesas apontaram problemas na denúncia e violações ao devido processo legal e à defesa. Muitos foram acusados sem prova individualizada da conduta, mostrando o que teriam quebrado e com que motivação foram ao ato. A maioria dos ministros e a PGR entenderam que os crimes foram cometidos por uma multidão e quem fazia parte dela sabia que o objetivo do ato era provocar uma ruptura no regime democrático. As condenações são padronizadas, com poucos detalhes diferenciando cada sentença, conforme a pessoa.
O foco de Moraes, agora, está na investigação sobre os financiadores e instigadores do ato. Nesse último rol está Bolsonaro, suspeito de ser o mentor intelectual da manifestação.
Durante o ano, a investigação ganhou força a partir da delação de Mauro Cid, seu ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Ele revelou detalhes de gastos do ex-presidente com cartão corporativo, falsificação de cartões de vacina contra a Covid de Bolsonaro e sua filha; apropriação de presentes dados por líderes estrangeiros, como joias e relógios; além das conversas mantidas por Bolsonaro com comandantes militares e ministros, antes e após as eleições, para questionar a votação feita pelo TSE e a vitória de Lula.
Mesmo sem denúncia, uma condenação de Bolsonaro no STF é vista como certa em Brasília.
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