O texto da reforma tributária aprovado pelo Senado esticou até 2032 incentivos fiscais usufruídos por quatro fábricas de automóveis instaladas no Centro-Oeste e no Nordeste. O favorecimento dado à produção de veículos com motores a combustão irritou montadoras concorrentes no país e expôs a contradição do governo, que diz priorizar a política de transição energética, voltada à descarbonização. Esse ponto, um dos mais controversos da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019, está novamente em debate na Câmara.
Para políticos e analistas ouvido pela Gazeta do Povo, além de engordar a longa lista de exceções à regra estabelecida pela reforma, a medida apoiada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para estimular carros a gasolina e diesel evidencia o empenho do governo em favorecer interesses de aliados locais, sobretudo parlamentares de Pernambuco e o grupo liderado pelo PT que governa a Bahia desde 2006.
A reforma aprovada pelos deputados em julho previa estender por mais uma década os benefícios tributários para Stellantis (Fiat), em Goiana (PE); HPE (Mitsubishi e Suzuki), em Catalão (GO); Caoa (Chery e Hyundai), em Anápolis (GO); e BYD, em Camaçari (BA), mas só para produção de veículos elétricos. Na véspera da votação no plenário do Senado, o texto foi mudado para incluir veículos a combustão, motores flex ou biodiesel. Assim, deve continuar o desconto de 32% no imposto para Caoa e HPE.
A polêmica alteração proposta pelos senadores Fabiano Contarato (PT-ES) e Carlos Viana (Podemos-MG) provocou indignação da maioria das empresas do setor automotivo e a sua concessão de incentivos à produção de carros a combustão foi considerada um retrocesso tecnológico e ambiental, além de representar uma renúncia fiscal significativa para os cofres da União.
Contradição é reforçada pela taxação de automóvel elétrico
Para reforçar os sinais contraditórios emitidos pelo Planalto, as montadoras de carros elétricos foram impactadas pelo anúncio de impostos, trazendo a perspectiva de forte aumento de seus preços em 2024. A partir de janeiro, carros elétricos, híbridos e híbridos plug-in comprados no exterior voltarão a ser tributados com o imposto de importação (IPI).
A Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE) condenou a prorrogação de incentivos regionais para veículos a combustão. Segundo o presidente da entidade, Ricardo Bastos, o ideal seria a reforma incorporar estímulos fiscais voltados para o desenvolvimento de novas tecnologias de descarbonização no país, como os veículos híbridos e elétricos, abrangendo todo território nacional.
“Do ponto de vista da descarbonização da mobilidade, as mudanças fiscais deveriam ser orientadas – e interpretadas – à luz de um programa nacional que trouxesse diretrizes, metas claras e lógica interna para todos os agentes envolvidos”, pondera André Fortes Chaves, consultor da Carvalho & Furtado Advogados e um dos coordenadores do Laboratório de Eletromobilidade (Lemob), rede de especialistas de diferentes áreas voltada ao fomento dos veículos elétricos no país. Chaves lamentou que o Rota 2030, programa instituído em 2018, durante o governo Michel Temer (MDB), para estimular a inovação tecnológica no setor automotivo, ainda não foi atualizado.
A montadora chinesa GWM também foi às redes sociais para criticar a concessão na reforma tributária de incentivo fiscais à produção de veículos movidos a combustíveis fósseis. Além dela, a General Motors, a Toyota e a Volkswagen também reagiram por meio de manifesto conjunto, queixando-se da pouca transparência na decisão de senadores de prorrogar as isenções para quatro fábricas até 2032, sem qualquer contrapartida exigida dos beneficiados.
Isenções fiscais a quatro fábricas somam R$ 5 bilhões anuais
Os benefícios do regime automotivo - criados em 1997 pelo governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e prorrogados em 2010 e 2020, deveriam acabar em 2025, com o fim da isenção do IPI para Stellantis e Baterias Moura, ambas em Pernambuco. Além de mantido, esse tratamento diferenciado pode também alcançar agora a futura fábrica da BYD na Bahia.
Essa política destina R$ 5 bilhões anuais em incentivos à produção de veículos no Nordeste e no Centro-Oeste, sendo 90% aproveitada pela fábrica da Stellantis, em Pernambuco. Avaliação realizada por técnicos do Tribunal de Contas da União (TCU) revelou não haver governança da União sobre o programa de incentivos, destacando a ausência de metas, avaliação e fiscalização de contrapartidas em inovação.
Diante desses fatos, especialistas destacam que a política industrial voltada à regionalização da produção automotiva pode não ter compensado o investimento público, e citam como exemplo o fechamento das fábricas da Ford na Bahia em 2021, resultando em 5 mil desempregados.
O Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp) criticou a extensão dos estímulos tributários ao Nordeste e ao Centro-Oeste como “privilégios indevidos usufruídos por fábricas já instaladas no país”. A entidade defende o incentivo apenas para fabricantes de veículos elétricos ou híbridos, o que, na prática, favoreceria só a chinesa BYD.
Reforma beneficia o AM com a isenção para importar petróleo
Outro ponto polêmico da reforma aprovada no Senado envolvendo o setor industrial é o trecho inserido pelo relator Eduardo Braga (MDB-AM), que isenta a importação de petróleo e derivados pela Zona Franca de Manaus, favorecendo seu próprio estado. A alteração repete entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que, em decisão liminar, considerou inconstitucional a exclusão das operações de petróleo e derivados do rol de atividades beneficiadas e autorizou a aplicação dos incentivos. O tema ainda será analisado em definitivo pelo plenário da Corte.
Em entrevista ao Poder 360, o líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (PL-RN), criticou a isenção dada pelo texto da reforma tributária à importação de petróleo e gás pelo Amazonas. Se a medida for confirmada pela Câmara e sancionada por Lula, ele acredita que haverá migração de empresas para o estado do Norte, redundando em competição desleal e na perda de arrecadação de impostos pela União.
Para Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), as aparentes contradições do governo em favor de investimentos voltados ao consumo de combustíveis fósseis refletem revisões que o próprio setor energético mundial tem feito, apesar do debate em torno da transição energética e o destaque para se ter uma matriz mais limpa. O especialista entende que os ditames da sustentabilidade ambiental precisam evoluir, mas em sintonia com a necessidade de segurança energética e o fornecimento de energia para as classes sociais menos favorecidas.
Desde a pandemia, com a desorganização das cadeias produtivas no mundo e outros desafios na sequência, como as guerras entre Rússia e Ucrânia e entre Hamas e Israel, ficou evidente a necessidade de garantir a oferta de energia até mesmo para se viabilizar a transição energética para fontes predominantemente limpas. Caso contrário, o resultado da pressão da agenda ambiental sem medir os efeitos colaterais é a interrupção de investimentos no setor de petróleo e gás e a elevação dos seus preços.
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