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Lula e Janja
Apuração aponta que ministros precisam falar com Janja primeiro quando casal está no Palácio da Alvorada.| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A primeira-dama Rosângela Lula da Silva, a Janja, intensificou nas últimas semanas a sua atuação política ancorada no governo, embora não tenha mandato por voto popular e nem ocupe qualquer cargo ou função na esfera administrativa, algo vedado por lei. Mas com o aval do marido, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ela segue cumprindo uma agenda própria de viagens, participação em eventos públicos, encontros com autoridades nacionais e estrangeiras, reuniões de trabalho com entidades civis, ministros de Estado e instituições federais, além de encaminhar tratativas específicas com representantes diplomáticos.

Na terça-feira (2), Janja foi à sede do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no Rio para se reunir com seu presidente Aloizio Mercadante e a diretora socioambiental da instituição, Tereza Campello. A pauta da reunião foi avaliar dois projetos contemplados por recursos do Fundo Amazônia. Em março, a primeira-dama representou o Brasil na 68ª Sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher da Organização das Nações Unidas (ONU). A imprensa destacou a participação dela com um par de sapatos da grife Hermès, avaliados em cerca de R$ 8,5 mil.

Mas uma das primeiras e mais contundentes evidências de seu ativismo político ocorreu no fim de setembro de 2023, quando ela liderou uma comitiva do governo ao Rio Grande do Sul para uma série de reuniões no Vale do Taquari, a região mais afetada por um ciclone. Lula não participou da visita devido a uma cirurgia no quadril e a situação chamou atenção pelo presidente ter sido representado pela esposa e não pelo seu vice Geraldo Alckmin (PSB).

As atitudes de Janja lembram a ação da argentina Eva Perón (1919-1952), com quem a primeira-dama já disse em entrevistas se identificar. Evita, como ficou conhecida, foi primeira-dama no regime populista de Juan Perón. Mesmo sem cargo oficial, ela atuou como ministra de fato da Saúde e do Trabalho da Argentina durante o primeiro mandato de seu marido, entre 1946 e 1952.

Por trás dessa movimentação de Janja está o interesse dela e do presidente, explicitado por ambos em declarações públicas, de ampliar sua influência sobre várias frentes de atuação governamental, partindo apenas do fato de ela ser a esposa do chefe do Executivo. A variedade de temas com que a primeira-dama vem lidando vai desde pautas feministas até assuntos de Justiça e indicações de assessores ministeriais, sem qualquer recuo apesar das muitas críticas que vem recebendo desde o ano passado de formadores de opinião e políticos de oposição.

Postura inusitada de Janja revela desejo de poder, diz especialista

Essa desenvoltura toda de Janja sem o respaldo institucional gera polêmicas e constrangimentos para o governo, mas também especulações para o meio político. Especialistas consultados pela Gazeta do Povo concordam que a postura inusitada para uma primeira-dama está alinhada ao seu desejo de redefinir o papel lhe reservado pela tradição, para interferir nos rumos do governo e atuar como agente de poder. O simbolismo da sua posição ganha, neste caso, dimensão prática e pode gerar consequências aa serem apuradas nos índices de popularidade de Lula e em eleições.

“À semelhança de figuras proeminentes como Hillary Clinton nos Estados Unidos e Cristina Kirchner na Argentina, Janja revela o desejo de obter e exercer poder, seja ao lado do marido presidente ou em outros contextos”, resumiu o cientista político Ricardo Caladas, professor na Universidade de Brasília (UnB). Ele vê o avanço de Janja na arena política condicionando o tradicional discurso social das primeiras-damas e orientando ações dela em terrenos novos e conhecidos, como sua crítica à privatização da Eletrobras com incorporação de Furnas, onde havia trabalhado.

Nessa trilha, Caldas lembra que a socióloga de 57 anos mostrou também rivalidade com a memória de dona Marisa Letícia, evidenciada pela exclusão do nome da falecida esposa de Lula em texto do presidente alusivo ao aniversário do PT para redes sociais.

Sobre qual seria o saldo político e eleitoral do comportamento exorbitante de Janja, o professor não identifica ainda perspectivas em favor de torná-la um ativo para as urnas ou de ajuda efetiva para melhorar os índices de aprovação de Lula e do governo. “A visão popular é de que ela estaria até atrapalhando, à medida que parece interferir em demasia sobre áreas alheias, além da impressão de ter viajado demais à custa de recursos públicos”, comentou.

Lula sinaliza Janja como solução doméstica para a sua própria sucessão

Outros analistas recordam que as duas indicações de Lula para candidaturas presidenciais do PT foram baseadas na sua confiança pessoal, com objetivo de manter controle rígido sobre a atuação dos indicados caso fossem eleitos, embora, no caso de Dilma Rousseff, essa expectativa não tenha se confirmando integralmente na prática. Assim, talvez a solução doméstica para a sua sucessão, convocando a própria esposa como candidata, seja a garantia mais segura para ter ascendência sobre um eventual governo dela.

O cientista político Luiz Filipe Freitas percebe na postura engajada da primeira-dama o objetivo primordial do seu lançamento como alternativa política a uma futura sucessão presidencial ou, ao menos, à construção de uma liderança feminina da esquerda, servindo de certa forma como um contraponto à ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, que já figura em alguns cenários como opção de candidatura da direita ao Planalto. Apesar de ela agradar o eleitorado progressista mais fiel, Freitas diz que podem surgir resistências do público amplo e até dificuldade em comunicar-se com cidadãos que conhecem bem Lula, mas não a primeira-dama.

Diante desse e de outros fatores, o esforço de Janja para auxiliar o governo a acessar mais setores sociais não tem obtido êxitos e tem criado risco de ruídos. Casada com Lula desde maio de 2022, ela provoca incômodo entre aliados do presidente por atuar como sua influente conselheira, desde o início do governo. As cenas de sua presença em reuniões-chave, em comunicados de ministérios e da Presidência ou intervindo na fala de Lula lhe renderam a alcunha de “algoritmo” do presidente, dada por ministros.

Dos críticos ganhou outras, como “Esbanja” e “primeira-blogueira”, devido aos gastos com hospedagens, mobiliário, entre outras rubricas na Presidência, e também com gastos em cartões corporativos e em viagens, alguns protegidos por sigilo de 100 anos, além de manifestações em redes sociais. Um dos episódios que ilustrou o lado esbanjador de Janja surgiu da polêmica sobre o suposto sumiço de móveis do Alvorada, o que serviu para justificar a compra de móveis de luxo para a sala e o quarto dela e de Lula, mas que se revelou mera ilação contra o casal Jair e Michelle Bolsonaro.

Janja tem colecionado as maiores condecorações do Brasil e outros países

Com viagens internacionais dominando quase um terço do primeiro ano do terceiro mandato de Lula, a exposição da mulher do presidente foi notável, ao ponto de interferiu em protocolos de eventos com chefes de Estado. Em uma aparente estratégia para agregar valor à sua passagem pela condição de primeira-dama, ela tem colecionado honrarias, tendo recebido de Lula o mais alto grau da Ordem de Rio Branco, condecoração dada pelo governo para “distinguir serviços meritórios e virtudes cívicas”.

Em sua passagem por Brasília, no dia 28 de março, o presidente da França, Emmanuel Macron, condecorou ela com a Ordem Nacional da Legião de Honra, maior honraria concedida pelo governo francês para reconhecer méritos militares ou civis a quem se destaca no cenário mundial. Em abril de 2023, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, conferiu à primeira-dama a Grã-Cruz da Ordem Infante Dom Henrique, maior honraria do país, sob protestos da direita portuguesa.

Desenvoltura de Janja nas redes sociais constrange o governo

O bem-estar que Janja mostra diante dos holofotes é visto por Lucas Fernandes, analista político da BMJ Consultoria, como a característica que mais a distingue da maioria das primeiras-damas que a precederam. Em seguida vem o envolvimento com assuntos que vão muito além da agenda tradicional voltada ao assistencialismo e à promoção das mulheres. “Ela até se dedica ao tema do papel feminino na política e na sociedade, mas faz questão de exibir influência em outros papéis”, afirmou.

Fernandes destaca a importância de Janja como conselheira presidencial em um grau mais explícito que o visto em outras no passado. Ele menciona o exemplo conhecido de Ruth Cardoso, então esposa do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que desempenhou papel fundamental no estudo e formatação das políticas de transferência de renda, que resultaram mais adiante, a partir das gestões petistas, no Bolsa Família. O especialista observa que, como voz presente em variadas frentes do governo e figura destacada do grupo político mais íntimo de Lula, desde a campanha de 2022, Janja tem ditado direcionamentos e posicionamentos importantes para o presidente e seu ministério.

“Prova disso está no rumo tomado após os atos do 8 de Janeiro, sobre os quais ela opinou devido ao conhecimento que adquiriu como encarregada da cerimônia de posse, na transição de governos, acerca de eventuais medidas extraordinárias para garantir a segurança na Praça dos Três Poderes”, sublinhou. Janja convenceu Lula a rechaçar o conselho para que editasse um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

Quanto às recorrentes críticas direcionadas à primeira-dama sobre suas manifestações nas redes sociais, Fernandes percebe um jogo delicado, sobre o qual interferem alguma misoginia, mas também o avanço sobre questões nas quais não precisaria embarcar. Ele lembra que o controle das mídias sociais da Presidência da República é alvo da disputa entre Janja, o fotógrafo pessoal de Lula, Ricardo Stuckert, e o ministro Paulo Pimenta (Comunicações), com a tendência de este último seguir à frente. Por fim, ele aponta o papel de Janja como cabo eleitoral nas eleições municipais, com a missão especial de estimular filiações ao PT e candidaturas de esquerda, numa atuação paralela à que a sua antecessora Michelle Bolsonaro (PL) desempenha no campo da direita.

Ao extrapolar o papel de cônjuge e buscar influenciar diferentes espaços políticos e de poder, ela incorre em iniciativas que não tiveram desfecho positivo, alimentando fontes de dores de cabeça para o governo. Lucas Fernandes cita a recente e desnecessária intromissão dela no pedido de prisão do jogador Robinho no Brasil, telefonando para o desembargador responsável, o que acabou abrindo um flanco para opositores explorarem, questionando na Justiça acerca de possível abuso de poder. Enquanto isso, ela segue mostrando influência sobre ministras próximas, na organização de cerimônias, elaboração de falas do presidente e em algumas peças da comunicação institucional.

Pesquisa do PoderData realizada de 23 a 25 de março mostra que mais eleitores dizem conhecer a primeira-dama agora do que seis meses antes. Eram 74% em setembro, subindo para 81%. Mas as taxas dos que aprovam ou desaprovam sua atuação ficaram estáveis. Dos que dizem conhecê-la, 20% avaliam positivamente seu desempenho. Para 27% é ruim. Apesar da extensa agenda dela no governo, esse levantamento revela que a maior parte dos brasileiros vê com indiferença o trabalho de Janja

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