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Lei anticrime tem brechas que podem facilitar a vida de criminosos
Lei anticrime entrou em vigor com dispositivos que podem beneficiar criminosos, como no caso André do Rap que gerou polêmica no STF.| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello que colocou em liberdade o traficante André do Rap, um dos líderes do PCC, é baseada em um trecho do Código de Processo Penal (CPP) incluído na legislação brasileira pelos parlamentares durante a tramitação do pacote anticrime, sancionado no final do ano passado pelo presidente Jair Bolsonaro. Mas essa não é a única "brecha" da lei anticrime que pode ser usada por criminosos e corruptos para se livrar de punição.

O pacote anticrime foi formulado pelo ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro, mas sofreu diversas alterações quando chegou ao Congresso. As propostas de Moro foram unificadas com um pacote do hoje ministro do STF Alexandre de Moraes. Também houve sugestões de deputados que formaram um grupo de trabalho para analisar o pacote. Uma série de vetos foi recomendada a Jair Bolsonaro, mas apenas 24 trechos foram vetados pelo presidente.

A versão final da lei anticrime tem outras brechas que podem beneficiar criminosos. Veja algumas delas:

Progressão de regime

O advogado criminalista David Metzker diz que a lei anticrime torna mais benéfica a progressão de regime em casos de crimes hediondos. “Antes do pacote anticrime, quem praticasse crime hediondo ou equiparado e fosse reincidente, iria progredir de regime se cumprisse três quintos (60%) da pena, independente se era reincidente específico (quando o crime anterior é da mesma espécie ou natureza) ou genérico (basta que haja condenação com trânsito em julgado, independente da espécie ou natureza)”, explica o advogado.

“Com o pacote anticrime, a reincidência agora é específica, em casos de crimes hediondos ou equiparados, fazendo com que o pacote anticrime seja mais benéfico e retroagisse aos fatos praticados antes de sua vigência, fazendo com que aqueles que teriam que cumprir 60%, passem agora a ter que cumprir 40% ou 50% para progredir (a depender do caso concreto), sendo aplicado a ele como se primário fosse, em razão da ausência de previsão legal para reincidente genérico”, completa Metzker.

O advogado ressalta, porém, que não vê a situação como uma “brecha”. “Não vejo como brechas, mas alterações legislativas – algumas delas, que vieram a tornar o processo penal mais efetivo e de acordo com o sistema acusatório e garantista, ou seja, de acordo com os direitos e garantias constitucionais”, diz.

Prisão preventiva

A lei anticrime também alterou a previsão de decretação de prisões preventivas. “O juiz não pode mais decretar prisão preventiva de ofício, sem provocação do Ministério Público ou do delegado de polícia”, explica Camila Martins, advogada especialista em Direito Penal e Processual Penal.

Antes, segundo a advogada, em casos de prisão em flagrante, o juiz podia converter a prisão em preventiva de forma automática. Agora, é obrigatória a realização de uma audiência de custódia e a prisão só pode ser convertida se houver pedido do MP ou da polícia.

Nulidades pela ação de juízes

Quando o pacote anticrime foi aprovado, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e a 2.ª e 5.ª Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF) sugeriram uma série de vetos ao presidente, que não foram atendidos.

Entre eles, há previsões na lei anticrime que podem causar nulidades devido à atuação de magistrados. Uma delas é o impedimento para que o juiz, tendo atuado na investigação, possa prosseguir no processo. Segundo a ANPR, esse dispositivo “pode trazer interferência prejudicial às ações em curso”.

A previsão de que o juiz, tendo conhecido o conteúdo de prova declarada inadmissível, não possa proferir sentença ou acórdão, também foi uma sugestão de veto que não foi atendida por Bolsonaro. Segundo as Câmaras do MPF, o dispositivo “pode vir a inviabilizar o exercício da jurisdição quando, por exemplo, uma determinada prova seja amplamente divulgada pela imprensa ou redes sociais e, posteriormente, venha a ser anulada”.

“O próprio tribunal que, em habeas corpus, decidir pela anulação das provas ficaria impedido de julgar o recurso contra a sentença. Se a anulação houver sido decidida pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), nenhum ministro poderá julgar o recurso extraordinário”, acrescenta ainda um ofício das Câmaras do MPF recomendando veto ao dispositivo.

Improbidade administrativa

A lei anticrime também traz uma limitação de multa em acordos de atos de improbidade administrativa de até 20%. O valor é considerado baixo pela ANPR, que teme que ele “servirá de parâmetro, inclusive, para os fatos que envolvam práticas de corrupção”.

Delação premiada

A lei anticrime também trouxe mudanças nas delações premiadas. Uma delas é a restrição para que os acordos tratem apenas de fatos ilícitos que tenham relação direta com os fatos investigados. Para a ANPR, isso reduz “a abrangência e a aplicação do referido instituto, que se revela essencial ao desbaratamento de organizações criminosas”.

Para as Câmaras do MPF, “uma das principais razões dos expressivos resultados de grandes operações foi a possibilidade de realizar acordos de colaboração premiada que levaram à descoberta de vários crimes sem relação com os fatos inicialmente investigados, os quais foram, posteriormente, desmembrados e encaminhados aos juízos competentes”.

O presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, o procurador Roberto Livianu, também apontou outras mudanças introduzidas nas regras para colaboração premiada. “Estabeleceram a obrigatoriedade de gravações das negociações, sob argumento do risco de exposição desproporcional de ambas as partes”, diz ele. “Sem sombra de dúvida, quando você estabelece essa obrigatoriedade, o nítido propósito contido ali é desestimular as delações premiadas”, afirma o procurador.

Outro ponto que abre brechas para evitar as delações é a proibição de negociação de regimes prisionais durante os acordos. “Eles estabeleceram vedação à negociação de regimes prisionais em delações premiadas. Isso vem na contramão em usar a negociação para esclarecer a criminalidade de poderosos”, diz Livianu.

Juiz de garantias

A criação do juiz de garantias também é apontada como uma brecha para anular processos. O dispositivo está suspenso por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF), que ainda não deliberou sobre o tema.

Pela lei, o juiz responsável por autorizar a produção de provas durante investigações não poderá ser o mesmo que julga os réus. “Você cria o juiz de garantias, aí tem um processo em que não tinha juiz de garantias, há nulidade. Isso se chama de plantio de nulidade”, avalia Livianu.

A ANPR também se posicionou contra a criação do juiz de garantias. Segundo a associação, “há diversos dispositivos no projeto que não se adequam ao sistema acusatório, albergado pela Constituição Federal de 1988 como conquista civilizatória que separa as funções de investigar, acusar e julgar”.

Lei anticrime também tem coisas boas, dizem juristas

Mesmo contendo brechas que podem acabar beneficiando criminosos, juristas ouvidos pela Gazeta do Povo destacam pontos positivos na lei anticrime.

Para Camila Martins, a lei tem dois pontos a serem levados em consideração. “Foi uma legislação que tornou mais graves algumas previsões penais. Do ponto de vista processual, é uma legislação que veio para trazer maiores garantias”, explica.

Segundo a advogada, a lei não foi desenhada para beneficiar criminosos. “Ela não elege um tipo de crime para beneficiar. É uma garantia que é dada a todo e qualquer investigado”, ressalta.

O advogado João Rafael Oliveira, professor de Direito Processual Penal no curso de pós-graduação da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), também elogia a legislação. “Enxergo um avanço em todos os pontos do CPP [Código de Processo Penal] trazidos pelo pacote anticrime”, diz. Ele cita como exemplos o avanço na reformulação das prisões preventivas, que abriram brechas para a decisão de Marco Aurélio no caso André do Rap. Para ele, o dispositivo é compatível com a Constituição.

“A Corte Interamericana de Direitos Humanos já orientava os países a fazer isso. A prisão provisória não pode ter contornos de antecipação de pena. Sendo prisão processual, precisa ser revisada periodicamente para não ganhar contornos de antecipação de pena”, diz Oliveira.

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