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Sessão da Câmara dos Deputados que aprovou mudanças na Lei de Improbidade Administrativa.| Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

A aprovação do projeto que muda a Lei de Improbidade Administrativa pela Câmara dos Deputados, no último dia 16, tem causado preocupação em juristas e membros do Ministério Público (MP), que enxergam no substitutivo aceito pelos deputados um caminho livre para a prática impune da corrupção no Brasil.

O projeto ainda passará pelo Senado, onde a tendência, por enquanto, é de alinhamento com a decisão da Câmara. Entre os deputados, o projeto foi aprovado por ampla maioria: foram 408 votos a favor – o que inclui toda a bancada governista – e apenas 67 contra a proposta.

Uma das alterações mais polêmicas prevê que, para punir um agente público, é preciso provar que ele teve dolo, ou seja, a intenção de praticar um ato que caracterize improbidade administrativa. Na lei atual, a punição pode ser aplicada mesmo se a investigação não conseguir caracterizar que houve má-fé do gestor.

O projeto de lei também livra agentes públicos de serem processados se a atitude deles não causar perda patrimonial ao Estado e dificulta a punição de empresas que se envolveram em atos de improbidade.

A Gazeta do Povo consultou juristas e membros do MP para comentar as alterações aprovadas pela Câmara. Veja quais aspectos do projeto podem ser considerados ameaças ao combate à corrupção no Brasil, e também os pontos da proposta que poderiam trazer algo de positivo ao país.

As ameaças contidas na nova Lei de Improbidade Administrativa

Roberto Livianu, procurador de Justiça em São Paulo e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, enxerga a aprovação do projeto pela Câmara como parte de um conjunto de retrocessos legislativos que têm ocorrido no Brasil.

“Esse acontecimento em relação ao projeto Projeto de Lei 10.887 de 2018 [que muda a Lei de Improbidade] não é um fato isolado. Temos observado que, ao longo dos últimos anos, várias iniciativas legislativas vêm caminhando nessa direção, no sentido de enfraquecer substancialmente o combate à corrupção e garantir, dentro do ordenamento jurídico, verdadeiros casulos de impunidade”, afirma.

Ele também critica o fato de que o projeto “não foi debatido em audiência pública alguma”, e diz que a proposta atual é um “instrumento de desfiguração” do projeto apresentado originalmente em 2018 pelo deputado Roberto de Lucena. O próprio Lucena foi um dos 67 parlamentares que votaram contra o texto aprovado pela Câmara, um substitutivo de autoria do deputado Carlos Zarattini (PT-SP).

Para Vera Chemim, advogada constitucionalista e mestre em Direito Público Administrativo pela FGV, a nova proposta aumenta a possibilidade de impunidade de agentes públicos. “O Brasil, infelizmente, está caminhando nessa direção sob vários aspectos”, diz ela.

Entre os pontos negativos da proposta de alteração da Lei de Improbidade Administrativa, as principais críticas de especialistas são em relação à necessidade de comprovar dolo e a introdução de um prazo de prescrição para as investigações. Conheça em detalhes essas e outras críticas ao projeto de lei:

Projeto deixa de punir improbidade culposa

O artigo 11, que enumera diversos atos específicos de improbidade administrativa, exige agora que a improbidade por ação ou omissão seja dolosa (intencional). Antes, uma ação ou omissão culposa (sem caracterizar a intenção do delito) bastaria para a condenação.

Para o promotor de Justiça Affonso Ghizzo Neto, essa mudança é prejudicial para o combate à corrupção. “Não basta ser um administrador público, um político ou um servidor público com boas intenções. Tem que estar preparado para exercer o cargo. Alguém pode causar danos ao erário, danos drásticos, na saúde, na educação, em tantas outras áreas, pelo simples fato de agir de forma imprudente, negligente e de não estar preparado para aquilo”, afirma

Ele ressalta que o sentido da Lei de Improbidade Administrativa não é meramente evitar crimes, mas garantir uma conduta íntegra na gestão pública. “As pessoas esquecem que a Lei de Improbidade não é uma lei penal. A gente não está falando de crime. No crime, a intenção é importante. Na lei de improbidade, não. A gente está falando da gestão da coisa pública. Por isso a modalidade culposa. É uma questão extrapenal, cível”, explica.

Vera Chemim diz que essa mudança “abre mais uma margem” para dificultar a condenação por improbidade. “Traz um ônus para a administração pública, porque ela vai ter que comprovar de fato e de direito que a lesão foi dolosa. É mais uma dificuldade”, afirma.

Prazo de prescrição para investigações pode livrar corruptos

O projeto institui um prazo de prescrição dos processos de improbidade administrativa, que devem ser concluídos em até 180 dias (6 meses). Para Levianu, a medida dificulta o trabalho do MP, que, em alguns casos, precisa de anos para concluir uma investigação.

“Eu sou do Ministério Público há 29 anos, e eu digo: uma investigação dessa complexidade, que pode envolver necessidade de coleta de documentos em dezenas de países, oitivas de testemunhas que podem residir em dezenas de países, quebra de sigilo telefônico, bancário e fiscal de dezenas de pessoas investigadas, que podem reduzir em dezenas de países… Investigações como essas duram facilmente quatro, cinco, sete, oito anos. Facilmente”, diz.

Licitação só poderá ser considerada ilícita se houver perda patrimonial efetiva

A proposta aprovada pela Câmara impõe uma nova condição para que uma licitação irregular seja considerada um ato de improbidade administrativa: será necessário provar que houve uma “perda patrimonial efetiva”.

Vera Chemim critica essa exigência. “Eu posso frustrar a licitude de um processo licitatório de várias maneiras que não necessariamente vão acarretar a perda de um patrimônio público, como beneficiar uma empresa A ou B. Aí eu ganho uma vantagem com isso e, como não acarretou uma perda para a administração pública, eu ganho uma vantagem econômica, mas não é um ato de improbidade administrativa. É muito traiçoeiro”, afirma.

Perda do cargo não ocorrerá se o acusado tiver mudado de posto

O parágrafo 1.º do artigo 12 do projeto aprovado pelos deputados diz que “a sanção de perda da função pública (…) atinge apenas o vínculo de mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração”. Ou seja, o agente público não perderá o cargo se não estiver mais ocupando o mesmo posto em que cometeu o ato de improbidade.

“Hoje, o cargo que o cidadão perde é o que ele esteja exercendo no momento da condenação. Se alguém é delegado de polícia e passa em um concurso para juiz federal, mas nesse meio tempo é condenado por improbidade, a pessoa perde o cargo que esteja ocupando, não aquele em que fez o ato de improbidade”, explica Affonso Ghizzo Neto, promotor de Justiça.

Para ele, a nova proposta contraria o sentido da norma. “O objetivo da lei é justamente afastar da administração pública, de qualquer função pública, pessoas que tenham cometido atos de improbidade.”

Se o MP perder, precisará pagar honorários dos advogados do gestor público

No Direito, há a figura dos “honorários de sucumbência”, que obriga a parte perdedora a pagar honorários dos advogados da parte vencedora. O projeto de lei exige o pagamento das despesas de pessoas processadas pelo Ministério Público nos termos da Lei de Improbidade.

Livianu considera isso uma tentativa de desestimular o trabalho do MP. Ele explica que os honorários de sucumbência são uma “ferramenta processual criada para evitar a proposição de ações temerárias e descabíveis”. “Vamos imaginar que alguém, para perseguir um inimigo, entra com um processo sem pé nem cabeça contra ele, sem provas. Para inibir esse tipo de expediente absurdo, na lei processual existe a figura dos honorários de sucumbência. Quem propuser ações descabíveis e absurdas tem que arcar com os custos do processo e pagar os honorários da parte contrária. Isso é cabível para ações propostas por particulares. Não é cabível para ações propostas por instituições públicas, como Defensoria Pública e Ministério Público”, afirma Livianu. “Se você cria esse ônus, você está inviabilizando o trabalho da própria instituição. E quem vai pagar o ônus, no final das contas, é o próprio povo [pois o MP é financiado com dinheiro público].”

O procurador ironiza a observação que alguns dos defensores do projeto fazem sobre o abuso de poder do Ministério Público contra os políticos. “Os defensores do projeto diriam: ‘É necessário termos isso porque certos promotores malvados abusam do poder e perseguem injustamente políticos’. Eu responderia: ‘Claro. Mas para combater esses promotores indignos e malvados, já há uma lei: a famosa Lei de Abuso de Autoridade, aprovada pelos próprios deputados dois anos atrás, com penas pesadíssimas para esses promotores que perseguem políticos’.”

Livianu ainda complementa: “Instituir honorários de sucumbência para o Ministério Público significa simplesmente querer que a insitituição não trabalhe.”

Prescrição retroativa em matéria de improbidade

O projeto estabelece que, para a contagem do prazo da sanção de suspensão dos direitos políticos, deve-se computar de forma retroativa o intervalo de tempo entre uma decisão colegiada e o momento da primeira sentença. É a chamada “prescrição retroativa”, que já existe no Código Penal brasileiro.

“Não basta o monumento à impunidade na área penal. O sr. Zarattini [Carlos Zarattini, deputado do PT que relatou o projeto] colocou no seu projeto substitutivo a criação da prescrição retroativa em matéria de improbidade”, diz Livianu.

“Colocaram instrumentos, recursos e alternativas para a morosidade. O reflexo: a gente vai ter mais prescrição”, critica Ghizzo Neto.

Os pontos positivos do projeto de lei

Para Acacio Miranda, especialista em Direito Constitucional, as mudanças previstas no projeto aprovado pela Câmara são, em geral, positivas. "Acho saudáveis as mudanças. Elas fazem prevalecer a justiça da lei, e não a pessoalidade ou a interpretação de determinados membros do Ministério Público que usavam a lei ao arrepio do texto da própria lei. Estabelece mais limites e parâmetros para a atuação legal”, diz ele.

Vera Chemim, que é crítica do projeto, vê um aspecto geral positivo: “Houve um avanço do ponto de vista processual, de como deve andar o processo no âmbito de uma ação de improbidade administrativa. Eles aproximaram a Lei de Improbidade Administrativa das normas do Novo Código de Processo Civil”, afirma.

Veja alguns dos pontos que os especialistas destacam como positivos na nova Lei de Improbidade Administrativa.

Ministério Público é o único que pode propor ações de improbidade

Segundo o novo texto, as ações sobre atos de improbidade deverão ser propostas necessariamente pelo Ministério Público, o que pode diminuir o uso político da lei.

“O Ministério Público tem legitimidade exclusiva para apresentar uma denúncia e propor uma ação de improbidade administrativa. Antes era a pessoa jurídica interessada ou o Ministério Público. Tiraram a pessoa jurídica. Só quem pode propor a ação de improbidade administrativa é o Ministério Público, o que eu acho que está certo”, afirma Vera Chemim.

“Hoje há um rol de pessoas que podem promover a ação contra uma improbidade administrativa. A partir do momento em que isso for exclusividade do Ministério Público, em tese, deixa de haver utilização política”, avalia Miranda.

Possibilidade de acordos com os processados

Embora seja um grande crítico do projeto, Livianu reconhece um ponto positivo no novo texto: a possibilidade de se estabelecer acordos em matéria de improbidade administrativa. “O Ministério Público poderá, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar acordo de não persecução civil”, afirma o texto do projeto de lei.

“Quando a lei foi feita, em 1992, isso não era permitido. Mas nós estamos vivendo um momento de redirecionamento do ordenamento jurídico, e a questão dos acordos é um dado da realidade, como os acordos de leniência, a delação premiada, os acordos de não persecução… Sou favorável à ideia dos acordos – não de maneira indiscriminada, mas acho que são uma ferramenta importante”, diz Livianu.

Necessidade de comprovar dolo é justificável

Embora seja vista por juristas e membros do MP como um dos aspectos negativos do projeto, a necessidade de comprovar a intenção no ato de improbidade torna a lei mais justa, na opinião de Acacio Miranda.

“Às vezes, o gestor público age na melhor das intenções, mas aquele ato acaba reverberando em um prejuízo ao erário, e ele é condenado por improbidade administrativa independentemente da vontade e da intenção de causar um prejuízo ao erário”, diz.

“Um exemplo prático: em uma cidade do interior, houve uma chuva, e aquela chuva destruiu uma estrada que levava para uma cooperativa que sustentava boa parte dos munícipes daquela cidade. O prefeito, na melhor das intenções, disponibilizou as máquinas da prefeitura para que ela fizesse o conserto, mesmo que provisório, daquela estrada, e a cooperativa voltasse a funcionar. O que aconteceu? Ele foi condenado por prejuízo ao erário, uma vez que gastou com gasolina, com máquinas, para que a estrada fosse consertada. Há dolo nisso? Não, porque ele não tinha a intenção de causar prejuízo ao erário. Ele tinha a intenção de fazer com que essa empresa, importante para o município, retomasse o trabalho com maior celeridade. Mesmo assim, na situação atual, ele seria condenado por prejuízo ao erário, independentemente do dolo”, explica Miranda.

O jurista discorda dos argumentos de membros do Ministério Público contra esse item do projeto aprovado. “No Direito Penal, já funciona dessa forma. Você tem que comprovar a intenção do agente político que cometeu o crime. Na Lei de Improbidade, deveria funcionar da mesma forma. Hoje, há uma vulgarização do uso dessa lei. O Ministério Público usa a lei quando discorda de um ato, mas sabe que os requisitos necessários para condenar penalmente aquele político não estão preenchidos”, afirma.

Prazo prescricional para inquéritos é justificável

Juristas e membros do Ministério Público têm criticado o estabelecimento de um prazo prescricional para os inquéritos relacionados a atos de improbidade. Acacio Miranda vê esse prazo com bons olhos. “Se o Ministério Público entende que esse prazo deve ser maior, tudo bem. Que haja um prazo de 180 dias renovável por igual período. Mas nós temos inquéritos para apurar improbidade administrativa que duram anos, e o Ministério Público acaba concluindo esses atos sempre às vésperas do período eleitoral. Isso reverbera em prejuízo aos candidatos”, diz.

Miranda cita um exemplo: “Nós tem um caso aqui em um fórum em São Paulo de um promotor de Justiça que pretendia ser candidato. O último ato dele antes de se desligar do cargo para a candidatura foi atacar, através de um inquérito civil que tramitava há anos, o seu adversário político. Infelizmente, a inexistência de prazos leva a essas incongruências.”

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