Em mais uma demonstração de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) precisa de apoio para emplacar pautas importantes na Câmara dos Deputados, o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), finalmente concluiu a votação do arcabouço fiscal, com uma boa margem de votos, e sinalizou ao governo que "dá as cartas" no jogo de poder entre a Câmara e a Presidência da República. Até por isso, Lira segue criticando a falta de uma base sólida e de articulação política por parte da gestão petista.
Apesar da conclusão do arcabouço - a tempo de não complicar as contas do governo e o envio da Proposta de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2024 -, Lira cumpriu o que prometeu quase no fim do prazo regulamentar, num claro recado de que está no comando da situação neste momento.
O deputado do PP nega que haja uma "crise" com o Planalto, mas não perde oportunidades de destacar que “a Câmara tem dado provas incontestes de que todas as matérias de interesse do país tem votado, sob todas as dificuldades ou facilidades do momento”.
Além disso, por diversas vezes, o presidente da Câmara fez questão de mostrar o "descontentamento" com a articulação política de Lula, a cargo do ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, criticado até por integrantes do próprio PT, por não ter uma aproximação direta com os parlamentares.
Anteriormente, em 2022, Lira já havia sido fundamental para que Lula conseguisse aprovar a chamada PEC da Transição, que permitiu ao novo governo aumentar em R$ 145 bilhões o teto de gastos no Orçamento de 2023 para bancar despesas como o Bolsa Família, o Auxílio Gás, a Farmácia Popular e outras políticas públicas. Outras pautas aprovadas pela Casa Legislativa foram o aumento do número de ministérios na Esplanada, a reforma tributária e o restabelecimento do voto de qualidade do CARF em favor do governo em casos de empates em processos fiscais.
Na reforma da Esplanada, Lira deixou para votar a Medida Provisória do Governo às vésperas do dia limite para que ela "caducasse", ou seja, perdesse o efeito, com possíveis prejuízos para Lula e a estrutura governamental.
Depois veio a reforma tributária. Foram dias intensos de acordos, conversas e convencimento para que os deputados concordassem em alterar o sistema tributário brasileiro, numa reforma que era discutida há décadas sem avançar no Parlamento, e que passou pelo crivo dos deputados com algumas condições.
Centrão aguarda mais espaço depois de apoio ao governo
O Centrão, como é conhecido o grupo de partidos do qual faz parte o PP, de Lira, cobrou a fatura pelos votos na reforma tributária, e pediu mais espaço no governo Lula em troca do apoio e dos votos. Na época da aprovação, em julho, o governo precisou abrir a carteira, liberando cerca de R$ 5,2 bilhões em emendas parlamentares.
O presidente da Câmara sabe, e deixa claro, que Lula precisa dele. O próprio Lula já admitiu publicamente, durante o lançamento do PAC, que “não é o Lira que precisa de mim”, mas ao mesmo tempo reluta em anunciar as mudanças nos ministérios e órgãos cobiçados pelo Centrão. Primeiro, a minirreforma seria anunciada durante o recesso parlamentar, mas ficou para a volta dos trabalhos, e até hoje não saiu do papel.
Havia uma expectativa de que os nomes fossem divulgados na última sexta-feira, antes da viagem de Lula à África do Sul, mas o anúncio ainda não veio. Alguns dos novos ministros já foram até confirmados por Padilha - André Fufuca (PP-MA) e Sílvio Costa Filho (Republicanos-PE) - mas ainda não foram definidos os mistérios que eles irão ocupar.
Fontes dizem que Lira e Lula tiveram um encontro na semana passada para conversar sobre as mudanças. “Torcemos para que o governo constitua sua base, mas isso é um problema do governo. O governo vai resolver essa situação paulatinamente, não temos essa urgência”, afirmou o presidente da Câmara.
Governo terá que ceder se quiser aprovar pautas econômicas, dizem analistas
Ao criticar as declarações do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de que a Câmara estaria com um poder muito grande, e não poderia "humilhar" o Senado e o Executivo, Lira foi às redes sociais para garantir mais uma vez o empenho da instituição em ajudar a gestão petista a governar.
“É equivocado pressupor que a formação de consensos em temáticas sensíveis revela a concentração de poder na figura de quem quer seja”, afirmou Lira, destacando ainda que “a formação de maioria política é feita com credibilidade e diálogo permanente com os líderes partidários e os integrantes da Casa”.
O mal-estar fez com que Haddad tentasse se retratar, mas a confusão gerou o cancelamento de uma reunião que estava marcada para definir a votação do arcabouço fiscal, adiada por uma semana, em mais uma sinalização de que era Lira quem estava no comando da situação.
“O governo sabe, e Lira também, que o governo tem uma pauta desafiadora e precisa do Congresso. Se não fizer essa reforma [ministerial], pode impactar tanto no timing quando no conteúdo pretendido”, destaca o vice-presidente da consultoria política Arko Advice, Cristiano Noronha.
Noronha afirma que o governo tem uma pauta econômica extensa para o segundo semestre, como isenções e despesas tributárias, tributação de fundos e a própria regulamentação da reforma tributária, e para isso precisa recompor a base, e fortalecer o diálogo com o Congresso.
Para o analista Adriano Cerqueira, do IBMEC, “Lira tem mostrado muita capacidade de ação própria, e imposto derrotas ao governo”. Cerqueira ressalta que a Câmara ganhou empoderamento a partir do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), e por isso “Lira está mais à vontade atuando como presidente da Câmara que Lula [no Planalto]. Ele tem mais vantagens políticas conquistadas”.
O cientista político Antônio Testa também acredita que, aparentemente, Lira está em vantagem neste jogo de poder. “É disputa entre raposas experientes. Lira deu o preço de seu apoio, mas Lula não entregou o que Centrão quer: ministérios que atuam fortemente com prefeituras e acesso à gestão do PAC”, afirma.
Segundo ele, apesar de ter o comando de uma bancada poderosa, e saber manobrar bem o seu poder como presidente da Câmara, Lira depende do apoio do governo federal para fazer seu sucessor na Câmara, e para isso, ele também depende de Lula.
Ainda sobre o jogo Lira X Lula, Testa avalia que “será disputado passo a passo. Lira, se mantiver o comando da Casa, terá uma "carta" infalível nas mãos: poderá encaminhar um pedido de impeachment que venha a ser apresentado. E, nesse cenário, o jogo poderá mudar radicalmente. "Tudo dependerá da economia e das pressões dos governadores". Para o especialista, existe a possibilidade de a crise entre Câmara e Planalto se aprofundar, o que poderá causar impactos à população, diante da não aprovação ou adiamento de projetos importantes para o país.
Já a cientista política Priscila Lapa diz que Lira age com respaldo dos deputados, os quais têm se mostrado pouco "alinhados" ao governo federal. Segundo ela, Lira usa esse poder como proteção de seu mandato individual, mas também para aumentar o poder de barganha junto à gestão petista.
Presidente da Câmara defende reforma administrativa; governo não quer votar o tema
Além de fundamental para garantir a aprovação de matérias na Câmara, Lira também se mostra à vontade para pautar temas que vão contra os interesses do governo petista, caso da reforma administrativa.
Em encontros recentes com empresários, Arthur Lira defendeu a retomada da discussão da matéria, na forma de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) - já aprovada por uma comissão especial da Câmara durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), e que está parada desde então.
Lira chegou a dizer que esse seria “o próximo movimento” da Câmara, mesmo sabendo que não há intenção do governo em levar o assunto para a frente, tendo em vista que Lula é oriundo de sindicato, e tem apoio dos servidores públicos. Ou seja, o presidente da República não é favorável ao enxugamento da máquina pública.
Mas, para alguns deputados ouvidos pela Gazeta do Povo, se Lira quiser, ele irá pautar o tema. Mas o presidente da Câmara costuma colocar em votação um tema apenas quando tem garantia de aprovação.
Um ex-parlamentar que circulava pelo Congresso, com vários mandatos na bagagem, disse que o atual presidente da Câmara ‘está com tudo’, e que, se quiser mesmo, aprova qualquer matéria. O analista Adriano Cerqueira compartilha da opinião. “A agenda da reforma administrativa é um assunto caro para a centro-direita no Brasil, e, provavelmente, isso faz parte da agenda do Lira, visando incluir essa pauta nas decisões a serem incluídas nas questões importantes para a política nacional”.
Na última declaração sobre o tema, Lira disse: “não quero botar pressão sobre ninguém, mas vamos ter de cortar despesas”. Apesar das declarações do presidente da Câmara, o assunto divide opiniões entre os líderes. José Guimarães (PT-CE), que comanda a bancada governista, já afirmou: “estamos preocupados com outras coisas. Nem tratamos disso ainda”.
O líder do bloco formado por União, PP, Federação PSDB Cidadania, PDT, PSB, Avante, Solidariedade e Patriota, André Figueiredo, também já afirmou à Gazeta do Povo que "esse texto que foi aprovado na comissão especial não tem a menor possibilidade de aprovarmos no plenário".
Para o professor de Ciência Política da Universidade Federal do Piauí, Elton Gomes, é pouco provável que Lira tenha mesmo a intenção de discutir o enxugamento da máquina pública.
Para ele, essa seria mais uma das demonstrações de poder que o presidente da Câmara tem dado para poder ‘precificar” o apoio político. “Soa como uma ameaça, uma jogada, para que possa efetivamente dizer: se você não me atender, eu posso votar isso”, destaca.
A Proposta de Emenda à Constituição 32/20, que trata da reforma administrativa, foi enviada pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ao Congresso Nacional e aprovada por uma comissão especial em setembro de 2021, e desde então está parada, aguardando a inclusão na pauta do Plenário. O texto, relatado pelo deputado Arthur Maia (União-BA), encontra resistências principalmente entre o funcionalismo público, apesar de não afetar os atuais servidores. Ele foi aprovado pouco antes das articulações para as eleições 2022, o que acabou “esfriando” a discussão.
A proposta prevê, entre outros pontos, a queda do mecanismo de progressão automática de carreira para o funcionalismo, permissão para reduzir salários, avaliação de desempenho, fim de período de férias superior a 30 dias por ano e prevê que aumentos ou indenizações recebidos não tenham efeito retroativo. Além disso, o texto permite a realização de acordos com empresas privadas para execução de serviços públicos por tempo determinado.
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