Aproveitando a crise gerada pelo apagão em São Paulo, que afetou milhões de clientes da Enel, o presidente Lula quer mudar as regras das agências reguladoras, como a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), para aumentar o poder de decisão do governo.
Ao criticar a Aneel pela falta de fiscalização sobre a concessionária responsável pela distribuição de energia na maior cidade do país, Lula questionou as indicações feitas ainda no governo Bolsonaro e encomendou à Advocacia Geral da União (AGU) que analise possibilidades de revisão nas normas das agências.
Pela regra atual, os diretores das agências reguladoras, criadas em 1997 como autarquias independentes, têm mandato fixo de cinco anos, não coincidentes com o do Presidente da República, o que, na prática, impede que sejam substituídos a qualquer momento.
"Eu tomei posse em janeiro de 2023, e quem está nas agências são pessoas indicadas pelo governo passado. Eu nem conheço as pessoas", disse Lula. E nem deveria conhecer, diz o cientista político Luiz Felipe D'Ávila, do Centro de Liderança Pública (CLP).
Segundo ele, o papel das agências, como foi concebido no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), de caráter técnico e blindado de indicação política, vem sendo desvirtuado há anos, inclusive pelo próprio Lula em mandatos anteriores. "O negócio é que essas agências vêm sendo politicamente loteadas há tempos", pontua o analista.
Para D'Ávila, nem mesmo a norma que estabelece que as indicações para a diretoria das agências devem passar pelo crivo do Senado Federal, com a sabatina dos nomes escolhidos, garante que essas pessoas terão a independência e autonomia necessárias para cumprir o papel de fiscalização e regulação de serviços em diversos setores.
Lula busca parecer da AGU para mudar legislação das agências
Sobre a possível reformulação das agências reguladoras, que pode ser enviada pelo governo ao Congresso Nacional, D'Ávila afirma que "o que Lula quer é um parecer jurídico para legitimar indicação política."
Segundo a assessoria da AGU informou à Gazeta do Povo, não existe ainda um grupo formalmente constituído para debater a questão, mas há uma movimentação inicial em torno do pedido feito por Lula para rever as regras das agências, para torná-las mais alinhadas ao mandato presidencial.
Ministro de Minas e Energia defende fim de mandatos nas agências
Além do próprio Luiz Inácio Lula da Silva, após a crise deflagrada pelo apagão em São Paulo, o Ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, defendeu mudanças nas regras para o funcionamento das agências reguladoras. Silveira foi além e considerou até mesmo o fim dos mandatos para os diretores. Isso significaria que o governo poderia substituí-los a qualquer momento, o que diminuiria a independência das agências.
“Eu não concordo com mandato. Se tiver que ter mandato, eu concordo plenamente com o governo. Sabe por que eu não concordo com mandato? Porque autonomia todos já têm”, disse Silveira a jornalistas.
Especialistas alertam para risco de interferência política
Na avaliação do doutor em sociologia e consultor político independente, Antônio Testa, o que o presidente Lula pretende ao tentar mudar os mandatos nas agências, seja por mandatos coincidentes com o do governo ou por avaliações de desempenho, é o controle total das agências para poder manipular as políticas de regulação.
"Esse é o projeto dele [Lula] desde que assumiu. Logo mudaram a lei das estatais. Agora quer interferir na política de regulação e colocar 'postes' nas diretorias. Se conseguir, o país avançará rapidamente para a centralização total do processo decisório", completa o consultor.
Em março de 2023, Lula conseguiu aval do Supremo Tribunal Federal (STF) para driblar a Lei das Estatais e assim derrubar a necessidade de "quarentena" para a indicação de políticos às empresas estatais, e assim poder colocar no comando de empresas pessoas ligadas ao PT, caso de Jean Paul Prates, na Petrobras; e Aloísio Mercadante, no BNDES.
Na época, o então ministro Ricardo Lewandowski, hoje à frente do MInistério da Justiça, acatou pedido feito pelo PCdoB para considerar inconstitucional o artigo da lei que proibia a indicação para conselhos de administração e diretoria das estatais de ministro de Estado, servidor público, e pessoas que tenham participado de campanha ou da estrutura de partidos políticos nos 36 meses anteriores.
Já a advogada especialista em Direito Público do Escritório Gasparini, Nogueira de Lima, Barbosa e Freire Advogados, Maysa Abrahão Tavares Verzola, acredita que uma troca mais frequente no comando das agências pode ser interpretada como tentativa de influenciar decisões regulatórias, o que pode até minar a confiança de investidores e do mercado.
Além disso, a advogada alerta que pode haver descontinuidade de projetos e políticas regulatórias vigentes. "Isso pode gerar instabilidade e prejudicar setores que dependem de regulações caras e previsíveis, como energia, telecomunicações, saúde e transporte", explica Maysa Abrahão.
Trocas frequentes podem comprometer eficiência de agências
Outra consequência de trocas mais assíduas no comando das agências reguladoras seria em relação à eficiência operacional, que pode resultar na perda de agilidade e eficiência dos trabalhos, avalia Maysa Abrahão, mestre em Administração Pública e Direito do Estado. Isto porque, segundo ela, sempre que se troca o comando de uma agência, é necessário um período de adaptação.
"Uma troca constante de diretoria pode aumentar essa percepção porque as decisões regulatórias estão sujeitas a pressões políticas, especialmente se essas mudanças forem motivadas por interesses externos em detrimento do mérito técnico. E isso, claro, compromete a qualidade das decisões regulatórias e afeta alguns setores-chave que dependem da estabilidade e da imparcialidade das agências", conclui.
Nem todas as agências cumprem suas missões, mas medida de Lula não deve resolver o problema, diz analista
O professor de ciências políticas da Universidade de Brasília (UnB), Waldir Pucci, até concorda com uma eventual revisão das normas que regulam as agências, já que muitas delas não cumprem seu papel primordial, que é, além de olhar o mercado, proteger o lado do consumidor. No entanto, Pucci destaca que esse tipo de debate não deve ocorrer apenas em momentos de crise.
"Aí é ruim, porque a gente acaba caindo naquele hábito do Brasil de, em situações emergenciais, dar respostas rápidas e simples que, na verdade, não vão solucionar o problema", afirma Pucci.
Para o analista, um eventual debate sobre o papel das agências deve ser feito de forma aberta, para evitar que elas sejam utilizadas por grandes empresas para garantir benefícios e que se tornem mais um campo de ocupação e loteamento de cargos políticos.
Frente dos Consumidores de Energia critica "assédio" do governo
Após as notícias de uma possível mudança nas regras para mandatos nas agências reguladoras, a Frente Nacional dos Consumidores de Energia, que representa consumidores residenciais, industriais, de baixa renda e de sistemas isolados, criticou a postura do governo, chamando-a de "assédio", especialmente sobre a Aneel.
Segundo nota divulgada pela entidade, a crise da Enel em São Paulo é um exemplo de um "apagão" de gestão no setor elétrico.
“A Frente Nacional dos Consumidores de Energia (FNCE) manifesta enorme preocupação diante do assédio do governo federal e do Congresso Nacional sobre as agências reguladoras. Decepcionada, a sociedade brasileira assiste à disputa que os poderes Legislativo e Executivo travam pelo controle das autarquias, enquanto o povo aguarda soluções”, diz a entidade.
A Frente também destacou que a Câmara dos Deputados está analisando um projeto de lei para colocar as agências reguladoras sob fiscalização das comissões temáticas. No entanto, o projeto do deputado Danilo Forte (União-CE) ainda não foi apresentado, conforme informado por sua assessoria, mas deverá mesmo sugerir que os colegiados da Câmara assumam a função de fiscalizar as agências.
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