A decisão do Congresso, confirmada pelo Senado na quarta-feira (27), de estabelecer um marco temporal para a demarcação de terras indígenas, colocou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) diante de uma difícil escolha. Ele deve decidir se confirma ou veta (total ou parcialmente) o projeto de lei (PL 2.903/2023) que regula os direitos originários dos povos indígenas sobre os seus territórios. A decisão envolve dilemas políticos que ele terá de levar em conta, a começar pelas pressões dentro do próprio governo para vetar integralmente o projeto, lideradas pelas ministras Marina Silva (Meio Ambiente) e Sonia Guajajara (Povos Indígenas).
No papel de árbitro para o tenso embate entre Judiciário e Legislativo, a tendência é que Lula opte por abordagem intermediária, que pode significar na prática apenas devolver a questão central ao Supremo Tribunal Federal (STF), que desencadeou a controvérsia. O tema do marco temporal em si foi analisado pela Corte na semana passada e rejeitado pelo placar de 9 a 2, provocando rápida mobilização entre diferentes bancadas do Congresso, sobretudo as de senadores de oposição e alcançando integrantes da base governista.
A decisão de Lula é crucial, pois aborda uma das principais bandeiras de seu governo: a expansão das áreas de proteção ambiental e consolidação de direitos indígenas. A questão também é cara à esquerda e tem repercussões internacionais. No entanto, ela também está relacionada a interesses vitais de setores econômicos dinâmicos, bem como de agricultores de diversos tamanhos e até mesmo de residentes em pequenas cidades.
A situação é ainda mais complexa porque o projeto aprovado é uma simples lei, não uma alteração na Constituição. Isso significa que o assunto pode retornar ao STF, que já declarou o marco inconstitucional, também por essa razão.
Os cidadãos afetados pelo julgamento do STF são representados pela maioria dos congressistas, que enfatizaram nos seus discursos durante a tramitação do PL 2.903/2023 o risco iminente de insegurança jurídica em todo o país.
Ocorre que o projeto tratou, em diferentes artigos, não só de cristalizar o marco temporal previsto na Constituição e negado pelo STF, avançando também sobre flexibilização de terras já demarcadas, emprego de insumos agrícolas por índios, entre outros temas que podem ser vetados.
Jaques Wagner acena chance de acordo com veto parcial de Lula
No debate e votação do projeto no plenário na noite de quarta-feira (27), os líderes do governo no Senado e no Congresso, senadores Jaques Wagner (PT) e Randolfe Rodrigues (Sem Partido-AP), apresentaram abordagens divergentes, refletindo as complexidades enfrentadas por Lula na questão. Enquanto Rodrigues destacava a possibilidade de novo desafio no STF em relação ao assunto, Wagner pedia ao relator, senador Marcos Rogério (PL-RO), que removesse os artigos que vão além do marco.
O líder do governo no Senado reconheceu que a presença desses pontos controversos, anteriormente aprovados pelos deputados e que apoiadores do governo tentaram sem sucesso suprimir na sessão final, se devia à estratégia para evitar que o texto retornasse à Câmara, atrasando sua aprovação final e seu envio à sanção presidencial. “No entanto, nada impede que o presidente Lula faça essas correções por meio de vetos parciais”, ponderou, abrindo espaço para um possível acordo futuro.
As declarações de Wagner se alinham com a posição manifestada por Lula na segunda-feira (25), na qual expressou intenção de evitar conflitos entre poderes, tais quais os enfrentados por Jair Bolsonaro (PL). Ao afirmar que quer escolher o próximo ministro do STF com base em critérios de “interesse da sociedade”, Lula expressou o desejo de “encerrar a disputa entre políticos e o Judiciário, bem como entre o Judiciário e o Executivo”. “Se cada um cumprir sua função no país, as coisas vão funcionar bem”. Seu encontro com o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, na noite de quarta-feira (27), também sugere intenção de desarmar novos conflitos institucionais.
Uma das preocupações de Lula em relação à possibilidade de vetar integralmente o projeto está relacionada ao risco de confrontar os presidentes do Senado e da Câmara, que apoiaram a rápida aprovação do texto e sentiram a pressão de suas bases eleitorais. Além disso, há a preocupação com o senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), um comitê decisivo para a aprovação de matérias de interesse do governo. Tanto Pacheco quanto Alcolumbre já transmitiram ao Planalto a mensagem de que eventuais conflitos podem resultar em novos obstáculos.
Até mesmo senadores fiéis da base governista expressaram o seu apoio ao marco temporal. Para Weverton (PDT-MA), o governo está cometendo um erro "ao não abordar adequadamente essa questão". Ele destacou que no Maranhão há mais de mil famílias que foram desalojadas de suas terras sem receberem indenização adequada. O senador enfatizou que os indígenas não estão mais buscando apenas terras, mas também infraestrutura.
Omar Aziz (PSD-AM) manifestou seu desacordo com a política ambiental que nega a presença de habitantes na floresta amazônica. Ele mencionou as dificuldades em asfaltar uma rodovia em seu estado como exemplo dessa abordagem inadequada. Além disso, ele acusou a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, de ter uma visão restrita em relação ao desenvolvimento e às necessidades da população.
Congresso já trabalha com a perspectiva de vetos de Lula
Para analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, a intenção do Congresso ao reafirmar a tese do marco temporal foi dar um recado político, resumido na frase do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), de que o projeto aprovado era só o “cumprimento do dever do legislador”.
A possibilidade de ter de derrubar vetos de Lula já estava previamente incorporada à estratégia de aprovação do texto, em paralelo às discussões jurídicas sobre a sua repercussão a respeito da decisão já firmada pelo STF, de inconstitucionalidade da tese do marco temporal.
“De toda forma, caso o veto integral ou parcial de Lula seja derrubado e a lei for promulgada, com ou sem restrições ao texto original, uma nova ação de inconstitucionalidade pode ser iniciada, abordando tanto as partes vetadas quanto o próprio conceito do marco temporal. A abertura de um novo processo não deve ter decisão automática e abrirá nova fase de discussões, sem prazo definido para um desfecho”, observa o cientista político Ismael Almeida.
Após 15 anos de análise no Congresso, a matéria passou pelo crivo do Senado nas comissões de Agricultura (CRA) e Constituição e Justiça (CCJ). A senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), que foi relatora do projeto na CRA, disse que Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, lhe relatou que a maior preocupação dos índios em relação ao projeto aprovado estava nos penduricalhos e não na questão do marco, já prevista na Constituição.
Pontos do projeto estimulam a atividade produtiva dos índios
O texto aprovado no Senado, com 43 votos a favor e 21 contrários, é de autoria do falecido deputado Homero Pereira (1955-2013) e foi relatado no Senado por Marcos Rogério (PL-RO), seguindo para a sanção da Presidência da República. A matéria foi aprovada na manhã da mesma quarta-feira (27) pela CCJ e enviada ao plenário, onde foi aprovado requerimento para tramitar em regime de urgência. Veja os principais pontos.
Marco temporal para demarcação – O ponto essencial do projeto estabelece um marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Apenas territórios que estavam ocupados pelos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, podem ser demarcados.
Critérios para demarcação – Para que uma terra seja considerada “área tradicionalmente ocupada” pelos indígenas, é necessário comprovar que ela era habitada pela comunidade indígena em 5 de outubro de 1988, era usada de forma permanente e para atividades produtivas, era essencial para a reprodução física e cultural dos indígenas, e para a preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar. Terras que não estavam ocupadas por indígenas e não eram objeto de disputa na data do marco temporal não podem ser demarcadas.
Áreas reservadas – As “áreas reservadas” continuarão sendo da União, mas serão geridas pelos indígenas instalados nelas, sob supervisão da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Mas terras adquiridas por indígenas por meio de compra, doação ou outros meios previstos na legislação serão consideradas propriedade particular.
Exploração Econômica – O projeto permite a exploração econômica das terras indígenas, incluindo cooperação ou contratação de não indígenas. A aprovação da comunidade, a manutenção da posse da terra e o benefício para toda a comunidade são requisitos para a celebração de contratos com não indígenas. O turismo pode ser explorado nas terras indígenas, desde que organizado pela comunidade indígena, mesmo em parceria com terceiros. A pesca, a caça e a coleta de frutos são autorizadas para não indígenas apenas se estiverem relacionadas ao turismo. O projeto também altera a Lei 11.460/2007, para permitir o cultivo de transgênicos em terras indígenas.
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