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Militares brasileiros que integram as tropas de paz da ONU na República Democrática do Congo (RDC), na África Central, relataram à Gazeta do Povo que estão protegidos em bases que contam com abrigos contra bombardeios em Goma, a principal cidade do leste do país. Segundo eles, as instalações da ONU foram alvo de tiros e bombardeios durante a invasão da cidade por rebeldes no último domingo (26).
Há cinco militares brasileiros na cidade. Eles integram a Missão das Nações Unidas para a Estabilização da República Democrática do Congo (MONUSCO) e disseram que estão bem e possuem alimentos, mas precisam racioná-los, porque durante o conflito não há a possibilidade de reabastecimento.
Goma foi invadida por uma força de quatro mil militares do M23 e da Aliança do Rio Congo, que são considerados movimentos rebeldes. Mas eles tinham treinamento de um exército profissional e possuíam armas pesadas, como foguetes e obuses de artilharia, drones de ataque e instrumentos de guerra eletrônica que inutilizaram o rádio e os canais de comunicação da ONU.
As tropas das Nações Unidas não são equipadas para combater esse poder de fogo, pois seu mandato aprovado pelo Conselho de Segurança da ONU prevê que lutem contra milícias e grupos rebeldes e não contra uma força armada que tenha o poder de fogo de um exército de um país independente. No Conselho de Segurança da ONU, o governo congolês acusou Ruanda de fornecer as tropas profissionais e os armamentos para os rebeldes.
Mesmo lutando com uma tropa mais numerosa e armada, os capacetes azuis tentaram impedir o avanço do M23 e da Aliança do Rio Congo. Pelo menos 17 militares da ONU foram mortos em batalhas em Sake e Goma.
Após a consumação da invasão de Goma, onde ficam as principais bases da ONU na região, a aliança dos rebeldes passou a combater bolsões de resistência do exército da República Democrática do Congo na cidade. Mas os rebeldes pararam de atacar as bases da MONUSCO, a missão de paz da ONU.
Ao longo da semana, os combates na cidade diminuíram de intensidade, mas a situação continua tensa, com milhares de refugiados tentando deixar a região. O líder dos rebeldes, Corneille Nangaa, disse a aliança continuará sua campanha militar até a derrubada do governo central da República Democrática do Congo. O grupo militar se prepara agora para avançar sobre a cidade de Bukavu, no Kivu Sul.
A Aliança do Rio Congo divulgou um comunicado aos militares da ONU e da missão de paz africana SAMIDRC ordenando que deixem de apoiar o governo congolês. Ou seja, ao suspender o ataque à ONU, os rebeldes podem estar pressionando as Nações Unidas para se retirarem pacificamente da região.
Os brasileiros em Goma disseram que por ora estão de prontidão na defesa das bases das Nações Unidas e aguardam orientações do comando da missão para realizar qualquer atuação externa.
“Em Goma, o ambiente está volátil e inseguro. Para minimizar o risco, a Monusco tem implementado medidas adicionais de segurança. No momento, não podemos sair das bases e temos que ocupar os bunkers de proteção”, afirmou o coronel brasileiro Felipe Drumond Moraes.
Ele relatou que ele e os colegas precisam usar capacetes e coletes à prova de balas permanentemente e que algumas tropas estão reforçando a segurança das bases. Toda vez que soa o alerta de bombardeio, os brasileiros precisam procurar o abrigo antiaéreo da base.
“A ONU prepara bem a estrutura de suas bases, para justamente enfrentar momentos de crise. Não tem faltado suprimentos, como água e comida. Porém, durante os combates não é possível ter ressuprimento [reabastecimento] das bases e temos que racionar, até que a situação permita o [novo acesso] a suprimentos”, afirmou Drumond.
A missão de paz da ONU é comandada no momento por um general do Senegal. Mas ele deve ser substituído em breve pelo general brasileiro Ulisses Mesquita Gomes, que foi designado para o cargo no último dia 28. Em entrevista à Gazeta do Povo, ele disse que sua estratégia será inicialmente apostar na diplomacia militar para fazer a Aliança do Rio Congo se retirar pacificamente de Goma.
Os militares brasileiros dizem que não podem falar sobre aspectos políticos da missão. Mas a reportagem apurou que os membros do Conselho de Segurança da ONU estudam pressionar Ruanda a parar de fornecer armas e tropas para a aliança rebelde. Essa pressão deve escalar em breve para corte de ajuda financeira e eventualmente sanções e embargos.
Enquanto isso não acontece, o papel dos brasileiros e das outras tropas internacionais da ONU será defender suas bases e tentar dar apoio humanitário à população local.
A missão da ONU na República Democrática do Congo tem mais de 25 anos e o Brasil tem contribuído sistematicamente com militares. Desde 2013 a maioria dos comandantes da Força da Monusco tem sido oficiais generais do Exército Brasileiro.
Bases da ONU foram atingidas por fogos artilharia durante combate
O Exército Brasileiro afirmou que durante o combate, muitas bases foram atingidas por disparos de armas de fogo e artilharia e enfrentam danos em sua infraestrutura. Além disso, soldados das forças armadas da República Democrática do Congo que depuseram suas armas estão procurando abrigo nas bases da ONU para não precisarem se render ao M23.
“Apoiar a população que busca refúgio nas bases e receber os combatentes que se rendem têm sido um grande desafio, pois as estruturas das bases não estão dimensionadas para receber muitas pessoas ao mesmo tempo, podendo desencadear uma crise sanitária a qual a Monusco tem se empenhado para resolver”, disse Drumond.
O fechamento do aeroporto de Goma é outra preocupação elencada pelos brasileiros. Eles disseram que isso causa um impacto significativo para a missão diante da carência profunda de vias de transporte terrestre e as vias aquáticas são pouco exploradas na região. Em outras palavras, a única forma de receber reforços é por via aérea e o aeroporto está sob o controle dos rebeldes.
“Os militares brasileiros são muito bem preparados para enfrentar os desafios das Missões de Paz, o que facilita a nossa adaptação de uma situação de paz para uma situação de conflito violento. Temos conseguido manter o condicionamento físico e psicológico", relatou Drumond.
"Temos contato com as famílias, por meio dos meios de comunicações disponíveis por celular e internet, que, embora precários, ainda funcionam, assim como por meio da estrutura do serviço social das Forças Armadas, que fornecem apoio às famílias dos militares que se encontram em missão no exterior", disse Drumond.
Nenhum militar brasileiro foi morto no conflito
A crise no Congo vem escalando desde o domingo (26) quando tropas do movimento rebelde M23, que integra a Aliança do Rio Congo, de etnia Tutsi, apoiados pelas Forças Armadas de Ruanda, invadiram Goma que é a maior cidade do leste do país, com mais de um milhão de habitantes.
Além dos cinco militares localizados em Goma, o Brasil enviou ao país dez instrutores de guerra na selva na cidade de Beni, que, até o momento, não foi atingida pelos confrontos no Congo. A missão desses profissionais é capacitar o exército congolês. De acordo com o Exército Brasileiro, todos seguem em segurança.
A Embaixada do Brasil na República Democrática do Congo foi alvo de ataques durante a escalada do conflito em Goma no dia 28 de janeiro. Manifestantes invadiram a representação diplomática e levaram a bandeira brasileira, mas nenhum funcionário foi ferido.
O Ministério das Relações Exteriores disse estar preocupado com a deterioração da situação humanitária e pediu que o governo congolês tome medidas para controlar a crise. Além da embaixada brasileira, representações de França, EUA, Uganda, Quênia e Ruanda também foram atacadas.
Região é a única onde os capacetes azuis formam uma força ofensiva
Os capacetes azuis da ONU estão diretamente envolvidos nos combates ao lado do Exército da República Democrática do Congo contra os rebeldes do M23 e as forças militares de Ruanda. A RDC é o único país onde as tropas da ONU atuam de maneira ofensiva, utilizando artilharia e infantaria nos arredores da cidade. Apesar dos esforços, não conseguiram impedir a invasão no último domingo.
A incursão violou um acordo de cessar-fogo vigente desde 31 de julho do ano passado. O governo de Ruanda justifica suas ações alegando que busca eliminar integrantes do grupo rebelde FDLR, de etnia hutu, que opera a partir do Congo e se opõe ao governo ruandês. Parte desse grupo foi responsável pelo genocídio de tutsis em 1994. O atual conflito tem ligaçnoes desse evento histórico, mas sua real motivação é a disputa por uma região rica em recursos naturais como ouro, estanho e coltan (usado na fabricação de eletrônicos e tem o nióbio em sua composição).
Em 2012, o M23 chegou a tomar temporariamente a cidade de Goma, mas se retirou após um acordo de cessar-fogo.
Em 2013, sob o comando do general brasileiro Carlos Alberto dos Santos Cruz, forças da ONU garantiram o controle de Goma e praticamente desmantelaram o M23 no ano seguinte, levando à rendição do grupo, que já contava com apoio militar de Ruanda. Anos depois, Santos Cruz atuou como ministro no governo de Jair Bolsonaro (PL), mas deixou o cargo em desacordo com o então presidente.
Após a desmobilização do M23 em 2014, obstáculos políticos impediram que a ONU avançasse no processo de pacificação. Na década seguinte, o M23 se reorganizou com o apoio de Ruanda e retomou os ataques contra o FDLR e o Exército congolês, desencadeando a atual crise.
O Brasil tem contribuído com comandantes e oficiais do Estado-Maior na Missão da ONU para a Estabilização na RDC (Monusco), mas sua participação em tropas de combate sempre foi limitada, um papel assumido principalmente pela África do Sul, que mantém rivalidade política com Ruanda.