O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, desempenha desde a transição do governo de Jair Bolsonaro (PL) para o de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a função de pacificador das tensas relações entre o atual presidente da República e as Forças Armadas. Essa missão de mediar o diálogo para impedir atritos severos e firmar acordos entre comandantes militares, o chefe do Executivo, membros do Judiciário e outros atores está consagrada neste domingo (31), aniversário de 60 anos do movimento que iniciou duas décadas do regime conduzido pelos generais.
Com o avanço dos inquéritos do Supremo Tribunal Federal (STF) que apuram responsáveis pelos atos do 8 de Janeiro e por suposta tentativa de golpe de Estado, o cerco a oficiais da reserva e da ativa se fecha. Até o fim do ano passado, quando cicularam rumores de que Múcio poderia deixar o cargo, a aceitação dele pelas Forças Armadas e ainfluencia que teria no governo ainda não estavam claras.
Mas hoje ele é visto pelos comandantes militares como "a pessoa certa no lugar certo". Foi nesse contexto que José Múcio costurou um pacto entre Planalto e Forças Armadas para impedir embates públicos neste 31 de março entre integrantes do governo e militares em torno da data histórica.
Lula ordenou a ministros, sobretudo Silvio Almeida (Direitos Humanos), que abortassem iniciativas para honrar “vítimas do golpe”. Toda uma campanha já teria sido feita e foi parar no fundo da gaveta de Almeida.
Enquanto isso, generais prometeram não celebrar a “Revolução de 1964” nos quarteis. Qualquer comandante que citar o tema na "ordem do dia", a comunicação com os soldados, pode ser repreendido.
Como justificativa desses atos, Lula afirmou que não vale a pena “remoer o passado”. Em paralelo, Múcio conduziu o agendamento de encontros entre o presidente e os comandantes das Forças.
Este episódio adiciona mais um capítulo à série que ilustra o papel crucial do ministro em mitigar conflitos entre as Forças Armadas e o terceiro mandato de Lula, cujo tom esquerdista e revanchista supera os anteriores.
Mas ele não está agindo sozinho. O próprio comandante do Exército, general Tomás Paiva, tem participado de reuniões e encontros discretos com representantes de diversos espectros políticos em uma tentativa de distencionar as relações institucionais. É uma variação estratégia do "Grande Mudo" (de não comentar assuntos não militares), que o Exército vinha exercendo nas últimas décadas.
Múcio queria solução negociada para acampamentos poerto de quartéis
Diante de desconfianças mútuas e quadro político muito polarizado com a direita liderada por Bolsonaro, cuja administração foi marcada pela forte presença militar em diversas esferas, Múcio atuou como um pacificador em prontidão permanente. Além de conter as reações aguerridas de Lula e os aliados mais radicais do presidente durante a “desmilitarização” do aparato estatal, ele conduziu saídas para episódios mais tensos.
Após as cenas violentas na Praça dos Três Poderes, em boa parte resultado da escassez de tropas federais, e a desmontagem de acampamentos cívicos em frente a bases militares, nos quais Múcio confessou ter a presença de parentes, coube ao ministro empreender esforços para impedir gestos precipitados e sim propor soluções negociadas, sempre conversando com todos os lados, mas sem deixar de expressar as suas divergências em relação ao próprio governo, postura que não lhe rendeu qualquer reprimenda.
“Sobre aquelas manifestações no acampamento, digo com muita autoridade porque tenho familiares e amigos lá: é uma manifestação da democracia”, afirmou ele dias antes da invasão das sedes dos Três Poderes.
Múcio contradiz Lula e rechaça golpe em 8/1
Em suas declarações à imprensa, ele consistentemente rejeitou a noção de conspiração golpista ("foi uma balbúrdia sem líder", disse), defendeu a postura legalista inabalável das três forças sob a sua tutela ministerial – Exército, Marinha e Aeronáutica – e sustentou a visão de que o 8 de Janeiro poderia ter sido evitado, indo de encontro ao discurso oficial e explicitando o contraponto com o ex-ministro da Justiça, Flávio Dino. A rixa entre eles foi evidenciada pelas imagens das câmeras internas do Palácio do Planalto, que captaram uma discussão entre os dois na noite da fatídica data.
Revelações posteriores mostraram que nos momentos tensos que se seguiram aos atos do 8 de Janeiro, José Múcio chegou a debater com a primeira-dama Rosângela Lula da Silva, a Janja, sobre a conveniência de se decretar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para conter os ataques e deter os invasores. O ministro defendeu a GLO e foi vencido pela posição veemente contrária de Janja, conforme foi relatado pelo próprio Lula. Em janeiro de 2023, ao demitir o então comandante do Exército, general Júlio Cesar de Arruda, e ao não convocar uma GLO, Lula fez uma afronta aos militares.
Entretanto, a pacificação implementada por Múcio, um político de linha direitista e conservadora, impediu a abertura de novos focos de tensão para o presidente da República. Múcio conseguiu, por exemplo, impedir que se concretizassem propostas que desagravam os militares, como a de extinção do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e a criação da Guarda Presidencial.
Ministro teve papel decisivo nos bastidores da CPMI do 8/1
Mas o principal desafio enfrentado por José Múcio durante a atual gestão petista surgiu durantes os trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de Janeiro, que foi instalada em maio e encerrada no fim de outubro, um mês antes do previsto.
Atuando de forma intensa nos bastidores, junto à mesa diretora do colegiado, aos líderes partidários e ao Planalto, ele coordenou os esforços para conter o ímpeto dos parlamentares da maioria governista, que buscavam interrogar e indiciar o maior número possível de militares, especialmente aqueles de mais alta patente e mais próximos de Bolsonaro.
Ao longo de meses de duros embates entre oposição e aliados de Lula, Múcio conseguiu evitar novas investidas contra o chamado núcleo militar dos investigados e ajudou a encurtar a duração da CPMI.
Outra frente em que o ministro da Defesa se incumbiu de barrar foi a reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, extinta no governo Bolsonaro. A recriação do grupo foi repetidamente adiada, novamente contrariando o Ministério dos Direitos Humanos, com o propósito de justamente reduzir o desgaste com os militares.
Embora nunca tenha se declarado contrário à iniciativa, Múcio reiterou ser preciso aguardar o “momento mais adequado” par ela de voltar à discussão dos chamados “crimes da ditadura”.
Noutra direção, Lula assinou em setembro decreto que instituiu um grupo de trabalho interministerial para atualizar a Política Nacional de Defesa e a Estratégia Nacional de Defesa, documentos que norteiam a preparação das Forças Armadas.
Segundo analistas e políticos ouvidos pela Gazeta do Povo, o titular da Defesa é um mestre da arte da conciliação, sempre usando palavras amenas e dispensando tratamento suave a todos. Quando o próprio se apresenta como um homem que não gosta de briga, também confirma o pedido que recebeu de Lula e que teve importantes mostras no último desfile de Sete de Setembro, com clima tranquilo e foco absoluto nas Forças Armadas.
Sob o tema “Democracia, Soberania e União”, a cerimônia contribuiu para a despolitização dos militares, objetivo que se consolidaria com a proposta de emenda à Constituição (PEC) para limitar a vida partidária deles. “Já existe um clima de harmonia e trabalho”, declarou ministro após o desfile.
Reunião de Lula, Múcio e comandantes sela a paz de vez
Para coroar os gestos de aproximação com os militares e o desejo de “virar a página” das tensões, Lula, José Múcio e os comandantes da Marinha, almirante Marcos Olsen, do Exército, general Tomás Paiva, e da Aeronáutica, tenente-brigadeiro do ar Marcelo Damasceno, se reuniram na quinta-feira (28) para discutir temas de interesse das três Forças. Na quarta-feira (27), durante o lançamento e batismo do submarino Tonelero em Itaguaí (RJ), o presidente declarou que tem “carinho” pelas forças armadas e defendeu que elas sejam “altamente qualificadas como forma de garantir a paz”.
Segundo Marcus Deois, diretor da consultoria política Ética, a principal marca do ministro José Múcio é a sua discrição. “Ele atua de forma comedida em público e se aprofunda mais nas negociações em privado, conseguindo assim aparecer e desaparecer no noticiário sem deixar vestígios de polêmica e sem renunciar às suas responsabilidades”, explicou. Um exemplo desse modo de agir foi a recente participação em cerimônias que envolveram Lula e o presidente francês Emmanuel Macron.
Para o especialista, após uma agenda intensa em território brasileiro com Macron, Lula consolidou seu movimento político de aproximação com as Forças Armadas, ao ponto de pedir cancelamento do evento que relembraria os “60 anos do golpe militar”.
Na sua opinião, o responsável por esses feitos deve ser creditado ao discreto ministro da Defesa, que ganhou ainda relevância nas relações externas depois de organizar diversos acordos bilaterais entre Brasil e França para modernizar e potencializar as Forças Armadas, sem criar nenhum ruído entre Lula e os três comandantes, pelo contrário.
A percepção de que José Múcio é o “homem certo no lugar certo” é amplamente compartilhada pelos próprios líderes das Forças Armadas, segundo apurou a Gazeta do Povo. Eles têm se unido ao esforço do ministro em “construir pontes” entre os militares, o governo e os demais poderes da República.
A confiança deles na habilidade e na liderança de Múcio chega ao ponto de já temerem a sua eventual saída, caso ele considere ter cumprido com a sua missão pacificadora e decida desfrutar plenamente de sua aposentadoria na vida pública, deixando para trás pressões cotidianas.
Múcio condenou contas de Dilma e recebeu elogios de Bolsonaro
Político habilidoso, com trânsito por todo o espectro partidário e ideológico, Múcio foi deputado federal por cinco mandatos, integrou a equipe do segundo governo de Lula como ministro das Relações Institucionais e presidiu o Tribunal de Contas da União (TCU), do qual está aposentado.
A sua indicação não sofreu nenhuma resistência e foi elogiada até mesmo por Bolsonaro, que disse ser “impossível não gostar” do ex-colega de Câmara. Graças ao perfil articulador e às conexões com as Forças Armadas, ele assumiu o posto do general Paulo Sérgio Nogueira, retomando a chefia civil da pasta, interrompida no governo anterior. O Ministério da Defesa foi criado em 1999, na gestão de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), com o propósito de estabelecer o controle civil sobre as Forças Armadas pela primeira vez desde a instauração da República em 1889.
No período de sua atuação no TCU, que se estendeu de 2009 até 2020, Múcio optou por se aposentar antes de atingir a idade máxima, estabelecida em 75 anos. Em seu momento de despedida da Corte de Contas, recebeu um convite de Bolsonaro para integrar o governo, que também lhe demonstrou afeto e apreço: “Se a saudade bater, venha para cá”, expressou o então presidente, acrescentando: “Zé Múcio, se me permite, eu sou apaixonado por você. Gosto muito de vossa excelência.”
Nascido em Recife, o ministro, agora aos 75 anos, é formado em engenharia civil pela Escola Politécnica de Pernambuco. Iniciou a sua carreira política como vice-prefeito de Rio Formoso (PE), posteriormente eleito prefeito da cidade e nomeado presidente da então estatal energética Celpe. Mais tarde, assumiu o cargo de secretário dos Transportes, Comunicação e Energia do estado. Sua trajetória no Congresso teve início em 1991, quando era filiado ao PFL, passando posteriormente pelo PSDB, até chegar ao PTB.
Como ministro do TCU, Múcio foi um dos membros que votaram pela reprovação das contas da então presidente Dilma Rousseff (PT) em 2014. No ano seguinte, como relator da matéria, recomendou novamente a rejeição das pedaladas fiscais da ex-presidente, apresentando um voto que classificou como pautado pela técnica e objetividade.
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