O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) usou o encontro com o presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Joe Biden, para subir o tom contra o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Além disso, cobrou a criação de um movimento para obrigar que os demais países, o Congresso e empresários cumpram as decisões de organismos globais relacionadas ao combate à mudança climática. Essa sugestão contraria o texto da Constituição brasileira e também se contrapõe às normas destinadas a manter pacíficas as relações internacionais.
Ao final da reunião, Lula disse acreditar que o governo norte-americano vai participar no Fundo Amazônia, criado para financiar ações de preservação e uso sustentável da região.
O petista disse em uma entrevista coletiva após a conversa com Biden que o Brasil volta ao cenário mundial "utilizando sua potência política".
O presidente americano havia concordado com as falas de Lula sobre defesa da democracia e necessidade de combate à mudança climática. Mas não demonstrou publicamente apoio a diversas propostas do brasileiro, como a de criar um Clube da Paz para acabar com a guerra na Ucrânia ou um fundo mundial para ajudar países que têm grandes florestas, como Brasil, Equador, Venezuela e Guiana.
Bolsonaro é acusado por Lula de isolar o Brasil
Durante a abertura da reunião, que aconteceu no salão Oval da Casa Branca, dedicado aos encontros de autoridades, Lula afirmou que o Brasil "se isolou" nos últimos quatro anos e acusou o governo anterior de promover o garimpo na Amazônia.
"O Brasil ficou quatros anos se marginalizando. Tínhamos um presidente que não gostava de manter relação com nenhum país. O mundo dele começava e terminava com fake news. Ele me parece que menospreza relações internacionais", disse Lula, sem citar nominalmente Bolsonaro. Neste momento, a fala do petista foi interrompida com uma risada e uma frase de Biden. “Parece familiar”, declarou o presidente dos EUA, em referência indireta ao ex-presidente americano Donald Trump.
Bolsonaro se alinhou politicamente com Trump no início de seu mandato. Mas, quando o americano perdeu a reeleição, o Brasil retomou a prática de não alinhamento político automático que rendeu à nação o apelido de país pêndulo entre analistas internacionais.
Sobre a preservação ambiental, Lula acusou o governo do seu antecessor de incentivar o garimpo e o desmatamento na Amazônia. "Nos últimos anos, a Amazônia foi invadida pela irracionalidade política e humana porque tivermos um presidente que mandava desmatar, mandava o garimpo entrar nas terras indígenas, e mandava garimpar nas florestas que nós demarcamos na Amazônia", completou o presidente brasileiro.
Lula pediu o apoio de Biden para que haja uma discussão para obrigar os países a acatar decisões globais sobre clima. "É preciso que a gente estabeleça uma nova conversa para construir uma governança mundial mais forte. Porque a questão climática, se não tiver uma governança global forte que tome decisões que todos os países sejam obrigados a cumprir, se nós não tivermos, não vai dar certo", disse Lula.
"Eu não sei qual é o foro. Não sei se é na ONU, não sei se é no G20, não sei se é no G8, mas alguma coisa nós temos que fazer, para que a gente obrigue os países, o nosso Congresso, os nossos empresários, a acatar as decisões que nós tomamos a níveis globais", completou o petista.
Fala de Lula contraria Constituição do Brasil e normas internacionais
A fala de Lula de que grupos de países e organismos multilaterais deveriam poder obrigar outras nações, o Congresso Nacional e os empresários a acatar decisões globais sobre o clima vão contra o que determina o artigo 84 da Constituição brasileira. O texto constitucional diz que os tratados, convenções e atos internacionais celebrados pelo presidente da República devem ser sujeitos ao referendo do Congresso Nacional. Por isso, obrigar o Congresso a acatar decisões internacionais não é, até o momento, um instrumento reconhecido no Brasil.
Mas, há uma brecha na lei para que o Congresso não seja consultado. Porém, em geral esse mecanismo é usado em decisões de menor impacto, como a celebração de memorandos bilaterais de cooperação. Acordos de grande importância costumam ser negociados durante longos períodos por diplomatas e representantes dos poderes antes de sua assinatura pela autoridade do Executivo com seu par internacional.
Além disso, não há nenhuma norma no direito internacional que obrigue um país a se submeter automaticamente a decisões de grupos de nações. Grandes potências ou blocos de países em geral usam a diplomacia para atingir seus objetivos políticos. Quando uma nação contraria os interesses desses atores, eles podem se coordenar para usar recursos como sanções econômicas, embargos e, em última instância, operações militares - que podem ser consideradas legítimas ou não pela comunidade internacional.
Lula deu apenas uma pista sobre como deseja que esse processo seja feito: "Uma coisa muito importante que eu acho que precisa acontecer é que eu acho que a gente tem que ter uma governança global com mais autoridade. Que outros países possam participar do Conselho de Segurança [da ONU] para que algumas decisões de ordem climática sejam tomadas a nível internacional".
O Conselho de Segurança da ONU pode adotar resoluções contra países, definir embargos e determinar operações militares legítimas. A hipótese de se deliberar no órgão sobre sanções e até sobre o uso da força para resolver questões de mudança climática chegou ser proposta pela Irlanda e pelo Níger em 2021, mas foi vetada.
Lula "acha" que os EUA vão entrar para o Fundo Amazônia
Havia a expectativa de que Lula anunciasse ao lado de Joe Biden a entrada oficial dos Estados Unidos como financiador do Fundo Amazônia. Ao final do encontro, no entanto, o presidente brasileiro afirmou apenas que "acha" que o governo norte-americano vai fazer aportes ao fundo de preservação.
"Não só acho que vão, como é necessário que participem, porque veja: o Brasil não quer transformar a Amazônia em um santuário da humanidade, mas também o Brasil não quer abrir mão de que a Amazônia é um território do qual o Brasil é soberano", completou o presidente.
Lula disse que não conversou especificamente sobre o Fundo Amazônia com Biden. Mas disse que discutiu a necessidade de países ricos financiarem ações de preservação do meio ambiente em países em desenvolvimento.
O Fundo Amazônia foi criado em 2009 com uma doação inicial da Noruega para ajudar a combater o desmatamento e estimular o desenvolvimento sustentável no Brasil. O fundo, no entanto, foi congelado por Bolsonaro em 2019, depois que os países doadores rejeitaram mudanças no modelo de gestão dos recursos.
O fundo foi retomado pelo governo Lula e, até o momento, outros países como Noruega, França e Alemanha também já deram sinalizações de aportes. O Palácio do Planalto estima que poderá captar cerca de US$ 30 bilhões de governos estrangeiros e fundos privados.
Para o analista Nelson Ricardo Fernandes Silva, da consultoria ARP Risk, a ampliação de aportes financeiros ao Fundo Amazônia por parte de países estrangeiros pode implicar em riscos à soberania do Brasil sobre a floresta amazônica. De acordo com ele, isso pode se dar pela falta de uma política de Estado do governo brasileiro em relação às pautas ambientais e de preservação.
"O grande problema é que o Brasil não tem uma política clara sobre a Amazônia. Quando você não tem um objetivo claro, você acaba seguindo os objetivos de alguém. Como o Brasil não tem uma definição clara de política de Estado, você anda ao sabor do vento da opinião pública internacional. O que não é a melhor opção", argumentou Fernandes Silva.
Lula e Biden alinham discurso em defesa da democracia
Ainda durante a sua fala, Lula agradeceu o apoio de Biden após o resultado das eleições do Brasil em 2022. Já o presidente dos Estados Unidos afirmou que a democracia em ambos os países foi testada nos últimos anos.
“A democracia foi testada em nossos dois países. Nossas agendas mútuas soam muito semelhantes. Afirme o apoio inabalável dos EUA à democracia”, disse Biden.
O norte-americano lembrou que os dois países são as duas maiores democracias do hemisfério ocidental. "Nós somos as duas maiores democracias do hemisfério. Brasil e Estados Unidos estão juntos rejeitando a violência política e defendendo os valores das nossas instituições democráticas", disse Biden.
Na mesma linha, Lula afirmou que os dois países precisam trabalhar juntos para que episódio como o de vandalismo em Brasília e a invasão ao Capitólio não voltem a se repetir. Temos alguns problemas para trabalhar juntos. A primeira coisa é nunca mais permitir que haja um novo capítulo do Capitólio e que nunca mais haja o que aconteceu no Brasil.
Lula comparou Bolsonaro a Trump em entrevista nos EUA
Pela manhã, Lula concedeu entrevista de cerca de meia hora para a jornalista britânico-iraniana Christiane Amanpour, da CNN. Entre outros pontos, Lula afirmou que Bolsonaro é uma "cópia fiel do ex-presidente americano Donald Trump" e não tem “chance nenhuma” de voltar à Presidência da República. “O Brasil aos poucos vai se encontrando e a democracia vai prevalecer”, declarou.
Na mesma entrevista, Lula negou que pretende pedir a extradição de Bolsonaro na conversa com Biden. "Um dia ele terá que voltar ao Brasil e enfrentar os processos a que responde. Não vou falar com Biden sobre extradição do Bolsonaro, isso depende dos tribunais, e quero que ele seja considerado inocente até que seja provado o contrário, o que não aconteceu comigo. Só falo com Biden sobre isso se ele falar", disse o petista.
Encontro de Lula com a esquerda radical dos EUA
Antes da reunião com Biden, Lula teve agenda com integrantes da esquerda radical dos Estados Unidos. O presidente brasileiro se encontrou com parlamentares do Partido Democrata, entre eles Bernie Sanders, Alexandria Ocásio-Cortéz, Pramila Jayapal, Sheila Jackson Lee, Brad Sherman, além de dois assessores. A reunião durou cerca de uma hora.
Sanders é um dos signatários da carta apresentada ao Senado americano pelo senador Bob Menendez, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Casa, que pede a extradição do ex-presidente Bolsonaro. A carta, encampada por nove senadores, veio a público no começo deste mês. Ela relaciona Bolsonaro aos atos de vandalismo contra os prédios dos Três Poderes de 08 de janeiro, em Brasília. Não houve, porém, nenhuma menção oficial ou pedido de saída de Bolsonaro do território americano.
Também presente no encontro com Lula estava Alexandria Ocasio-Cortez. A parlamentar, que integra a ala mais radical do Partido Democrata, foi detida no ano passado ao participar de um protesto a favor do aborto em frente à Suprema Corte dos Estados Unidos.
Lula foi questionado em entrevista se pretendia legalizar o procedimento no Brasil. Ele disse que esse é um assunto para o Congresso Nacional.
"AOC", como é conhecida, também defendeu a extradição de Bolsonaro dos EUA após os atos de vandalismo em Brasília. "Os Estados Unidos devem deixar de dar guarida a Bolsonaro", disse a deputada em uma rede social.
No final do encontro, Sanders falou à imprensa que um dos temas conversados com Lula na manhã de sexta, em Washington D.C., foi "a necessidade de fortalecer os fundamentos democráticos não apenas no Brasil, não apenas nos Estados Unidos, mas ao redor de todo o mundo”.
Na visão do político americano, a ameaça massiva do que chamou de “extrema direita autoritária”, na qual incluiu Trump e Bolsonaro, “tenta minar a democracia".
Questionado sobre a questão das fake news, o senador democrata disse que essa é uma grande questão tanto para o Brasil quanto para os Estados Unidos.
Sanders também falou sobre a Amazônia e fez críticas a Bolsonaro. “Ao contrário de seu antecessor", [...] "Lula entende a enorme ameaça que as mudanças climáticas representam para o nosso planeta. Discutimos ideias de como aumentar a cooperação internacional para preservar o meio ambiente para as gerações futuras. É imperativo que os Estados Unidos trabalhem com o Brasil e outros países para proteger a Amazônia", enfatizou o senador.
"O futuro da Amazônia vai determinar se vamos conseguir salvar o planeta ou não. E os EUA têm de fazer tudo o que puder para acabar com o desmatamento e proteger a Amazônia", afirmou.
O parlamentar democrata também disse aos jornalistas que é preciso que as "economias da América Latina e dos EUA trabalhem para trabalhadores, não apenas para bilionários do 1% [mais ricos]."
Antes de se dirigir para a Casa Branca, Lula conversou ainda com representantes do Sindicato da Federação Americana dos Trabalhadores e Congresso de Organizações Industriais.
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