O presidente Jair Bolsonaro (PL) enviou no fim de março à Câmara um projeto de lei que cria o instituto jurídico chamado de "excesso exculpante", que tenderia a ser usado principalmente em ações policiais que causem mortes. Embora com um termo diferente, é uma nova tentativa do presidente de ampliar as hipóteses em que se aplica o chamado “excludente de ilicitude”, situações nas quais uma pessoa não é punida quando pratica um crime em estado de necessidade, em legítima defesa ou cumprindo um dever legal ou exercendo um direito.
Em 2019, os deputados rejeitaram uma proposta semelhante, à época encampada pelo então ministro da Justiça Sergio Moro, dentro do pacote anticrime. O novo projeto, redigido pelo atual titular da pasta, Anderson Torres, é ainda mais amplo e pode sofrer maior resistência entre os congressistas, num momento de consternação em razão da operação policial na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, que deixou mais de 23 mortos, e da morte de um homem asfixiado com gás lacrimogênio dentro de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal, no Sergipe, na semana passada.
A atual redação do Código Penal diz que o agente do crime, ainda que o pratique em legítima defesa, cumprindo um dever ou exercendo um direito, responde pelo crime quando há excesso.
O projeto, no entanto, diz que “não é punível o excesso quando resulta de escusável medo, surpresa ou perturbação de ânimo em face da situação”.
Trata-se de uma proposição muito semelhante à que havia no pacote anticrime, que dava ao juiz o poder de reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorresse de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
Essa proposta foi rejeitada em 2019 pelo grupo de deputados que analisou o pacote porque continha termos subjetivos, que poderiam ser alegados por um policial para se eximir de responsabilização em caso de abordagens violentas e desnecessárias sobre suspeitos. No novo projeto, o dispositivo é chamado de “excesso exculpante” e o objetivo é garantir maior “amparo jurídico” aos agentes de segurança pública.
O novo projeto ainda contém outros dispositivos não propostos anteriormente. Especifica, por exemplo, que será considerado “exercício regular de direito” – uma das hipóteses do excludente de ilicitude – a defesa da inviolabilidade do domicílio. Significa que uma pessoa que atirar em outra que invade sua casa poderá se livrar da punição criminal.
Novidades no conceito de legítima defesa
Outra novidade em relação ao pacote anticrime relaciona-se ao próprio conceito de legítima defesa. A atual redação do Código Penal diz que ela se aplica a “quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.
Na discussão do pacote anticrime, em 2019, os deputados aprovaram uma proteção maior para agentes de segurança pública, dizendo que eles poderiam alegar a legítima defesa quando repelissem “agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”. Na prática, poderiam atirar num sequestrador, por exemplo.
O novo projeto estabelece mais duas situações de legítima defesa, ao detalhar de forma mais específica o que poderia se enquadrar no conceito de “injusta agressão”. Ela poderia se revelar num ato “contra a ordem pública ou a incolumidade das pessoas mediante porte ou utilização ostensiva, por parte do agressor ou do suspeito, de arma de fogo ou de outro instrumento capaz de gerar morte ou lesão corporal de natureza grave”.
Um exemplo concreto seria o policial atirar em bandidos armados durante uma incursão numa favela, por exemplo. Outra hipótese de injusta agressão prevista no projeto é um ato de terrorismo, que, na atual legislação, corresponde a atentados contra a vida ou integridade física de pessoa, além de sabotagem ao funcionamento de instalações públicas específicas, como meios de comunicação, transporte e serviços essenciais.
O governo, contudo, também busca ampliar o conceito de terrorismo, para abarcar ataques contra o patrimônio público ou privado e o emprego premeditado de ações violentas com fins políticos ou ideológicos. Uma proposta nesse sentido foi enviada à Câmara no fim de março, junto com o projeto que amplia o excludente de ilicitude.
É meu grande sonho, diz Bolsonaro
Nos últimos tempos, Bolsonaro voltou a defender a ampliação do excludente de ilicitude. No dia 13 de maio, durante cerimônia na Academia de Polícia Militar em São Paulo, disse que seu “grande sonho” na Presidência é aprovar a proposta.
“Gostaria muito, de um dia, aprovar o excludente de ilicitude, para que vocês, após o término da missão, fossem para casa se recolher no calor de seus familiares e não esperar a visita de um oficial de Justiça”, disse durante seu discurso.
“Com todo o respeito aos profissionais da segurança pública, temos que diminuir a letalidade sim, mas é a do cidadão de bem e de pessoas como vocês. E não da bandidagem. Se vocês, na rua, portam uma arma na cintura ou no peito é para usá-la. Nós, chefes do Executivo, quer seja o presidente ou governadores, devemos dar respaldo e segurança após o cumprimento da missão”, afirmou ainda o presidente.
Poucos dias antes, na mesma semana, Anderson Torres foi à Comissão de Segurança Pública da Câmara defender o projeto do “excesso exculpante”. “O que amarra a segurança pública, o que amarra os policiais, é a legislação, o entendimento da legislação, por conta do Ministério Público e do Judiciário. Isso é muito grave”, afirmou o ministro, que também é delegado da Polícia Federal.
Disse aos deputados que, se todo cidadão tem o direito de se defender, “por que o policial não tem?”. “O cara tem filho em casa, tem família. Agora, se a sua vida estiver em risco, o que você vai fazer?”
Ao comentar o texto do projeto, afirmou que a proposição para a legítima defesa – que isentaria um policial que atirasse num bandido armado ou em alguém enquadrado como terrorista – “é muito mais efetiva do que a questão da excludente da ilicitude”, que, segundo ele, já estaria bem elaborada na atual legislação.
“Os ‘policiólogos’ e os ‘estudiólogos’ que existem por aí querem dizer como o policial deve agir, quando o fogo está vindo de lá, quando ele está encurralado, quando ele está sendo ferido e alvejado. E ainda querem dizer onde ele tem de atirar, como tem de atirar, enfim, eles acham que os policiais são máquinas. Então, isso aqui eu acho que é muito mais efetivo do ponto de vista prático e do ponto de vista dos policiais”, afirmou o ministro.
Durante a audiência, o deputado Sargento Fahur (PSD-PR) afirmou que o projeto não significa uma “licença para matar”. “É simplesmente algo para proteger o policial no seu serviço”, disse. Relatou ainda que, no início do mandato de Bolsonaro, ouviu dele que não adiantaria mandar um policial para a fronteira do país e ele voltar preso.
Oposição vai tentar barrar novo excludente de ilicitude
Assim como ocorreu no pacote anticrime, a oposição tentará barrar o avanço da proposta. O deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que participa das discussões no colegiado, disse que a operação na Vila Cruzeiro e a morte no Sergipe expõem os problemas da proposta.
“Esse projeto deve ser para reproduzir mais essas cenas, para reintroduzir essas cenas de barbárie. Bolsonaro já tentou isso cinco vezes, e não vamos deixar passar. Esses episódios demonstram que tem que ter outro padrão de policiamento, com câmera, inteligência. Isso que estão propondo é inaceitável”, afirmou à reportagem.
Um fator complicador é o fato de ter sido designado como relator o deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), condenado no Supremo Tribunal Federal (STF) por ameaçar ministros e que, na carreira de policial militar no Rio, foi punido em mais de 60 sanções disciplinares por mau comportamento, incluindo uma prisão de 26 dias e uma detenção de 54 dias.
Nos próximos dias, o presidente da Comissão de Segurança Pública, Aluisio Mendes (PSC-MA), deve se reunir com integrantes da comissão para discutir o projeto. Ele considera que o texto atual é bom, mas que pode mudar para não sofrer grande resistência no plenário da Câmara.
“Eu não faria nenhuma supressão. Mas deputados da oposição me disseram que vão fazer sugestões, que não me apresentaram ainda. Na comissão, eu tenho certeza da aprovação, mas no plenário é outra coisa. Se conseguirmos um acordo, para fazer ajustes com a oposição antes, fica mais fácil aprovar no plenário”, disse o deputado.
Ele também deverá discutir a substituição de Daniel Silveira como relator para facilitar o diálogo com outros parlamentares.
O objetivo é levar o projeto para votação na segunda ou terceira semana de junho – o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já prometeu que irá pautar propostas na área de segurança nesse período.
Além do novo projeto da excludente de ilicitude, Mendes quer levar o projeto do governo de combate ao “novo cangaço”, que define conceito mais amplo para terrorismo e pune com mais rigor quadrilhas que promovem assaltos generalizados em cidades. Também há interesse em pautar o Estatuto da Vítima, proposto pelo PT e que tem apoio do governo, que protege os direitos de quem sofre danos físicos, emocionais ou econômicos por ser vítima de crimes, desastres naturais ou epidemias.
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