Apelidado de Orçamento “secreto” ou “paralelo”, o direcionamento de quase R$ 20 bilhões de recursos da União sob o controle de parlamentares tem como pano de fundo as chamadas emendas de relator. Trata-se de um dispositivo criado recentemente e que deu ao Congresso poderes de controlar uma fatia maior do Orçamento do que aquela a que deputados e senadores já tinham direito por meio das emendas individuais, de bancada e de comissão.
Para se ter uma ideia, no Orçamento de 2021, cada parlamentar podia indicar até 25 emendas, com valor total de R$ 16,2 milhões. Enquanto isso, as emendas de relator, conhecidas pela sigla RP9, somaram um total de R$ 18,5 bilhões. Em 2020, foram liberados R$ 19,7 bilhões para emendas de relator, dos quais R$ 7,5 bilhões já foram executados.
Por causa do volume de recursos, essa espécie de “superemenda” foi dividida para que parlamentares, especialmente do Centrão, pudessem ter controle sobre mais recursos do Orçamento, conforme mostrou o jornal O Estado de S.Paulo. Distribuída de forma desigual e sem transparência, uma vez que a divisão é feita informalmente – daí ser chamada de “secreta” –, a verba é alvo de denúncias de irregularidades.
No fim de 2020, deputados e senadores teriam se valido do esquema para indicar a destinação de R$ 3 bilhões, boa parte para a compra de tratores e equipamentos agrícolas com suspeita de superfaturamento, em troca de apoio ao governo no Congresso, segundo apurou o jornal a partir de 101 ofícios enviados ao Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) e órgãos vinculados.
Por causa dessa operação, o esquema, apelidado de “tratoraço”, entrou na mira do Tribunal de Contas da União (TCU), que vai apurar de que forma o MDR e a Companhia de Desenvolvimento dos Valos do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) usaram os recursos.
Confira, a seguir, 11 pontos para entender como funcionam as superemendas:
1. O que são emendas parlamentares?
As emendas parlamentares são previstas na Constituição como instrumento do Legislativo para aperfeiçoamento do Orçamento anual, que é proposto pelo Executivo. Parlamentares têm o direito de indicar onde deve ser aplicado determinado recurso para, em tese, corrigir erros e omissões do plano previsto pelo governo.
“Com o passar do tempo, o Executivo passou a utilizá-las como moeda de troca, para manter a fidelidade dos parlamentares”, explica o economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper e consultor legislativo do Senado licenciado.
Um passo seguinte foi a criação das emendas de bancada e de comissão, que deveriam ser propostas pelos parlamentares de uma mesma unidade federativa ou de um colegiado que pretendessem destinar recursos para gastos em ações de maior impacto e interesse comum.
Por muito tempo, as emendas individuais e de bancada foram apenas "autorizativas". Ou seja, o governo não era obrigado a executá-las. Isso mudou nos últimos anos.
Em 2015, o Congresso aumentou o controle sobre o Orçamento, tornando impositiva a execução de emendas individuais, o que diminuiu o poder de influência do Executivo. Em 2019, as emendas de bancada também passaram a ser obrigatórias.
2. O que são as superemendas e qual a diferença para as emendas tradicionais?
As superemendas ou emendas de relator (RP9) são um tipo específico de emenda de prerrogativa exclusiva do relator do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA).
Além de ter uma previsão da gastos significativa – R$ 19,7 bilhões no Orçamento de 2020 e R$ 18,5 bilhões no de 2021 –, a dotação altera ainda mais o equilíbrio de forças entre os Poderes.
“Uma vez aprovada a emenda, ela só pode ser alterada [durante a execução do Orçamento] com autorização do relator”, explica Marcos Mendes. “Até a criação desse tipo de emenda, a função do relator acabava quando o Orçamento estava aprovado. Agora, depois de aprovada, para qualquer compensação, só se o relator mandar um ofício para o ministro da Fazenda dizendo que ele autoriza cortar tais despesas para realocar aquele recurso.”
3. Quando as superemendas surgiram e por quem foram criadas?
As emendas de relator foram criadas pelo Congresso em 2019, durante a apreciação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020, relatada pelo deputado Domingos Neto (PSD-CE). Diferentemente das emendas individuais, de bancada e de comissão, essa nova modalidade de dotação não foi criada por meio de proposta de emenda à Constituição (PEC), mas prevista apenas na LDO, uma lei ordinária que é renovada a cada ano.
Na LDO de 2020, aprovada em 2019, estavam previstos inicialmente R$ 30,1 bilhões para o relator, que distribuiria a verba entre deputados e senadores. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vetou o dispositivo, mas, após acordo com o Congresso, ficaram mantidos R$ 19,7 bilhões, porém sem execução obrigatória. Na LDO de 2021, Bolsonaro voltou a vetar o dispositivo, mas o veto foi derrubado pelo Legislativo.
4. Por que as superemendas viraram alvo de suspeita de irregularidades?
Apesar do nome de emenda de relator, a destinação dos recursos sob a rubrica RP9 não é decidida unicamente pelo parlamentar responsável por relatar a LDO.
“Volta a lógica da emenda individual não impositiva”, compara Mendes. Além de ampliar a aplicação de recursos por critérios políticos e permitir sua utilização como moeda de troca, a distribuição de fatias do Orçamento torna-se menos transparente, o que dá margem à atos de corrupção, como compras superfaturadas, por exemplo.
O assunto voltou aos noticiários após uma série de reportagens do jornal “O Estado de S.Paulo” mostrar como funcionaram os acordos entre parlamentares do Centrão para direcionar o dinheiro das emendas de relator. Ao privilegiar determinados ministérios e órgãos comandados por indicados políticos, o esquema ainda contrariaria a necessidade de critérios técnicos para a definição do orçamento de cada pasta.
5. Para onde foram direcionados os recursos das superemendas?
A maior parte das emendas de relator do orçamento de 2020, alvo de controvérsias, foi destinada ao Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) – R$ 8,03 bilhões. Desse montante, R$ 1,2 bilhão foi direcionado à Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), órgão chefiado desde 2019 por um indicado do deputado Elmar Nascimento (DEM-BA).
De acordo com reportagem de “O Globo”, mais de 90% da verba das emendas de relator da Codevasf foi indicada por aliados do governo Bolsonaro no Congresso. O órgão tem superintendências regionais comandadas por indicados do líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e dos deputados Hildo Rocha (MDB-MA) e Arthur Maia (DEM-BA).
O Ministério da Educação foi contemplado com R$ 2 bilhões em emendas de relator. Desse total, R$ 1,5 bilhão foi para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), cujo gestor, Marcelo Lopes da Ponte, é indicado do presidente do PP, o senador Ciro Nogueira (PP-PI), segundo o jornal.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), atualmente presidido por Geraldo Melo Filho, indicado pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni, recebeu R$ 225 milhões.
6. Quais parlamentares foram beneficiados?
Entre os congressistas que participaram da indicação de fatias das emendas do relator, segundo apurou “O Estado de S.Paulo” estão o ex-presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) e a atual ministra-chefe da Secretaria de Governo, Flavia Arruda (PL-DF).
Na lista estão ainda os deputados Cluadio Cajado (PP-BA), Lúcio Mosquini (MDB-RO), Ottaci Nascimento (SD-RR), Bosco Saraiva (SD-AM), Vicentinho Junior (PL-TO) e o senador Rodrigo Cunha (PSDB-AL).
Até mesmo um senador da oposição, Humberto Costa (PT-PE), encaminhou ofício pedindo direcionamento de recursos, embora o petista alegue ter se tratado de um pedido de Alcolumbre.
Os acordos para o Orçamento de 2020 ocorreram às vésperas das eleições de Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Arthur Lira para as presidências do Senado e Câmara.
7. Como eram feitas as indicações dos parlamentares para as superemendas?
As indicações dos parlamentares para cotas das emendas de relator não são transparentes como as emendas individuais. Em muitos casos, as indicações foram feitas por meio de ofícios, que “O Estado de S.Paulo” obteve por meio da Lei de Acesso à Informação.
Os documentos eram encaminhados pelos congressistas aos ministérios e órgãos contemplados pelas emendas do relator para serem direcionados a gastos específicos, como a compra de maquinário agrícola, por exemplo.
Segundo o jornal “O Globo”, em outros casos os pedidos foram feitos pelo WhatsApp ou em planilhas manejadas por assessores, das quais não há registro oficial.
8. Qual a posição do governo Bolsonaro sobre essas emendas?
O governo, por meio do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), alvo das principais suspeitas de irregularidades, publicou nota em que repudia as acusações de que haveria um orçamento secreto. “É do Parlamento a prerrogativa de indicar recursos da chamada emenda de relator-geral (RP9) do Orçamento. O RP9 foi criado por iniciativa do Congresso Nacional em 2009, e não pelo Executivo, como erroneamente tenta afirmar a manchete do jornal [O Estado de S. Paulo]”, diz trecho.
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), por sua vez, minimizou as denúncias de irregularidades ao falar sobre o assunto e atacou jornalistas que trouxeram o assunto à tona. “Inventaram que eu tenho um orçamento secreto agora. Tenho um reservatório de leite condensado, três milhões de latas. Como um orçamento foi aprovado, discutido por meses e agora apareceu R$ 3 bilhões? Só os canalhas do Estado de São Paulo para escrever isso aí”, disse a apoiadores no Palácio da Alvorada.
9. Existe ilegalidade comprovada?
No momento, a divisão dos recursos das emendas de relator é investigada pelo Tribunal de Contas da União (TCU). A apuração foi iniciada por solicitação do subprocurador-geral do Ministério Público junto ao tribunal, Lucas Furtado.
“Os fatos noticiados pelo site do jornal Estadão denotam, em tese, inadequada execução orçamentária, motivada supostamente por interesses políticos e em desvirtuamento do princípio da isonomia que orienta a distribuição de recursos, (...) podendo caracterizar eventual crime de responsabilidade, por atentar contra a lei orçamentária”, escreveu no pedido.
Na Câmara, o deputado Ivan Valente (PSOL-SP) começou a coletar assinaturas para pedir a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o direcionamento das emendas.
10. Outros governos usaram emendas para cooptar apoio no Congresso?
O economista Marcos Mendes compara o caso das superemendas com o dos Anões do Orçamento, escândalo que foi alvo de uma CPI em 1993, durante o governo de Itamar Franco (PMDB).
“O Orçamento era muito menos transparente, até porque você tinha uma inflação muito alta e perdia-se a noção de valor. Como não existia oficialmente a emenda individual e de bancada, tudo era de uma forma mais improvisada, e a lógica acabava sendo essa da emenda de relator que existe hoje. O relator determinava a realocação de recursos e politicamente distribuía cotas indiretamente, de forma não transparente”, lembra.
Na época, João Carlos Alves dos Santos, chefe da assessoria técnica da Comissão do Orçamento (cargo que corresponde hoje ao de relator do orçamento), teria montado um esquema de propinas dentro do colegiado que acabou descoberto e levou à cassação de seis deputados e à renúncia de outros quatro.
Alguns parlamentares faziam emendas para enviar dinheiro para entidades filantrópicas ligadas a parentes e a laranjas, enquanto outros faziam acertos com empreiteiras para a inclusão de verbas orçamentárias para grandes obras em troca de um percentual dos valores.
Outros analistas veem semelhanças do caso com a liberação de emendas parlamentares durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) para a aprovação da PEC 16/1997, que permitiu a reeleição para ocupantes de cargos do Executivo.
Há ainda quem compare com o Mensalão, embora o esquema de compra de votos durante o governo Lula (PT) não se valesse de emendas parlamentares, mas de recursos de publicidade de empresas estatais, desviados por meio de uma agência de propaganda.
11. Por que existem as emendas parlamentares?
“É péssimo existir emendas, ainda mais a obrigatoriedade de execução. O orçamento deveria ser proposto e executado pelo Poder Executivo. O Legislativo é para estabelecer regras e fiscalizar, e não para interferir na execução de política pública”, diz Marcos Mendes, do Insper.
“O problema de fundo é que temos um regime presidencialista, mas com um Parlamento com grande poder de veto, além de um sistema eleitoral que estimula a fragmentação partidária. Então, ao se eleger, o presidente da República, para ter maioria no Congresso, tem de se juntar em torno de uns dez partidos.”
“Você tem duas formas básicas de conseguir essa maioria: uma é reconhecer as forças políticas e formar um governo de coalizão, dividir os ministérios, o poder de decisão, proporcionalmente à representatividade dos partidos no Congresso. Assim governaram o FHC [Fernando Henrique Cardoso], o Lula, e o [Michel] Temer [MDB]. Já a Dilma [Roussef (PT)] quis fazer um ministério basicamente de quadros do PT e de pessoas da confiança dela, e o Bolsonaro quis fazer um ministério de militares e amigos da família e dos filhos", diz o economista.
“Na hora que você não divide o poder, o cargo ministerial, o poder de decisão, entre as forças políticas que estão representadas no Congresso, aí o Congresso tenta buscar protagonismo e poder político de outra forma. Não foi por outro motivo que as emendas obrigatórias foram aprovadas em 2015, no governo da Dilma. Depois, a nova rodada de emendas obrigatórias veio em 2019, também por causa da incapacidade do Bolsonaro de formar um governo de coalizão. Nos dois casos os presidentes tiveram de se render. A Dilma acabou tentando na última hora formar um governo de coalizão e foi derrubada, sofreu o impeachment. E o Bolsonaro, para não sofrer o impeachment, se entregou completamente ao Centrão, inclusive com o controle do Orçamento.”
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