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Passados mais de quatro meses desde a última manifestação, a oposição no Congresso Nacional voltou a buscar o respaldo das ruas para avançar no pedido de impeachment contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O argumento técnico para pedir a queda do presidente são suspeitas de pedaladas fiscais no Pé-de-Meia, um programa de transferência de renda para estudantes. Já o clima político está sendo criado com base nas recentes crises envolvendo o Executivo, como a alta dos preços dos alimentos, do dólar e da taxa de juros, além dos esforços para aumentar a abrangência da taxação da população.
O sentimento dos congressistas é que Lula já possui as condições políticas e jurídicas para um processo de impedimento. Entretanto, isso só se tornaria viável se o Legislativo fosse pressionado pela insatisfação popular. “Com o povo brasileiro indo às ruas para pedir sua saída, acredito que isso será fundamental para avançarmos com o impeachment aqui no Congresso”, disse o deputado federal Rodolfo Nogueira (PL-MS), autor do pedido de impeachment.
Assim, os esforços de mobilização estão convergindo para uma manifestação de rua marcada para ocorrer no dia 16 de março, na Avenida Paulista, em São Paulo. Cada vez mais parlamentares da oposição estão se organizando para materializar o sentimento de indignação contra o governo em protestos de rua.
"A gente percebe que as pessoas já estão até impacientes, porque o Lula já cansou de dar motivos. Mas agora a coisa ficou muito explícita, muito clara, a ponto de pessoas que anteriormente nem pensavam nessa questão do impeachment já estão falando, apoiando. A popularidade do Lula está despencando, inclusive nos redutos eleitorais dele. Eu acho que já passou da hora mas a gente tem que aproveitar esse momento que parece bem propício", disse a deputada federal Bia Kicis (PL-DF).
A manifestação está sendo organizada por ativistas de direita pela internet com base em doações para confecção de material publicitário e contratação de carro de som. Uma das articuladoras é a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP), que foi cassada pelo Tribunal Regional Eleitoral e tenta reverter a decisão no Tribunal Superior Eleitoral. Ela disse à coluna Entrelinhas, da Gazeta do Povo, que mais de 100 deputados já aderiram a um pedido de impeachment de Lula por causa das supostas pedaladas do Pé-de-Meia
"Eu vejo o impeachment como sendo mais uma ação de quem realmente detém o poder soberano no país, que é o povo brasileiro. O direito de se manifestar é um direito constitucional e o povo brasileiro não pode abrir mão disso de maneira nenhuma", afirmou o deputado federal General Girão (PL-RN).
O clima político para o pedido de impeachment começou a se configurar com uma série de crises enfrentadas pelo governo desde o fim do ano passado. Em dezembro o real se desvalorizou e o dólar ultrapassou o valor de R$ 6.
Em janeiro, a Receita Federal instituiu uma nova norma que visava melhorar o monitoramento de operações financeiras, inclusive o Pix. A oposição apontou como a determinação poderia ser usada para aplicar impostos já existentes sobre a parcela da população mais pobre que trabalha na informalidade. A repercussão foi tão grande que o governo teve que cancelar a normativa.
Logo em seguida, o próprio governo jogou luz sobre a crise da alta dos preços dos alimentos. Após ser cobrado por Lula por uma solução para o problema, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, disse em uma entrevista à estatal de comunicação EBC que o governo faria intervenções para baratear os alimentos. A fala foi interpretada como intervenção no livre mercado e gerou temores de congelamento de preços.
Embora o governo tenha afirmado rapidamente que a declaração foi uma falha de comunicação do ministro, a alta dos alimentos passou a ser discutida no Congresso e nas ruas. O aumento da carne e do café ficou no foco dos debates.
Na abertura dos trabalhos do Congresso na segunda-feira (3), deputados de oposição fizeram um protesto na Câmara usando bonés com uma mensagem exigindo "comida barata novamente", em uma crítica ao governo Lula.
"Tudo isso que está acontecendo prova que o governo dele é falho na sua capacidade técnica. Para você melhorar em economia você não precisa sobrecarregar de taxa uma população produtora, uma empresa. Você tem que facilitar com que o dinheiro circule. Eles acabaram onerando tanto o produtor rural que a comida ficou mais cara, o café ficou mais caro, a carne está mais cara. Tudo aquilo que ele prometeu, ele não cumpriu", disse a deputada Sílvia Waiãpi (PL-AP), que participou do protesto.
O argumento técnico para a articulação pelo impeachment de Lula também veio em janeiro, quando o Tribunal de Contas da União bloqueou em caráter cautelar (provisório) R$ 6 bilhões que tinham sido destinados ao programa de transferência de renda Pé-de-Meia, que paga bolsas de R$ 200 para estudantes. O problema é que a destinação de verbas para o programa teria ocorrido por meio de transferências de recursos entre fundos controlados pelo governo sem passar pelo Tesouro, o que fez com que não fossem submetidos à política de austeridade fiscal nem fosse contabilizados como despesas do governo.
O deputado Zucco (PL-RS), líder da oposição na Câmara, disse ter apresentado uma notícia crime (uma espécie de queixa que pode dar origem a processos) contra os ministros Camilo Santana, da Educação, Fernando Haddad, da Fazenda, Simone Tebet, do Planejamento sobre o caso. "A gente entende que houve uma irregularidade séria. Esperamos que haja um retorno. E sabemos que o impeachment envolve questões políticas. A gente vai dialogar", disse.
O deputado disse que a ideologia de direita avançou nos últimos dois anos e espera que a mobilização popular também dê impulso ao debate não só de temas econômicos, mas também à luta pela anistia aos presos nas manifestações de 8 de janeiro de 2023.
“Para além das questões econômicas e sociais, estamos muito preocupados com o avanço do autoritarismo e da censura sobre as redes sociais. A oposição também está mobilizada para avançar no projeto da anistia para os presos do 8 de janeiro. A sociedade está com muita coisa presa na garganta e disposta a lutar pelos seus direitos”, disse o parlamentar.
Com enfoque no impeachment de Lula, a manifestação marcada para março terá um caráter diferente dos eventos anteriores. Enquanto o protesto de 25 de fevereiro buscou ressaltar a defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro e do Estado Democrático de Direito, o ato de 7 de setembro visou pedir o impeachment do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Apesar de cada vez mais parlamentares da oposição estarem demonstrando apoio à manifestação, outros enxergam o protesto de março como um “teste” para medir o quanto a situação econômica atual do país pode mobilizar a população.
Um parlamentar da oposição que pediu para não ter o nome revelado disse que Lula não se encontra na mesma situação que a ex-presidente Dilma, que foi retirada do poder com uma taxa de apenas 9% de aprovação. No entanto, a expectativa, segundo essa fonte, é que a oposição consiga gerar um marco contra o governo Lula.
O raciocínio segue a lógica do que ocorreu com a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), que foi alvo de diversos protestos em seus dois mandatos como chefe do Executivo. Na época, o “bolso do trabalhador” teve um papel importante na insatisfação popular, o que gerou cobranças da população junto ao Legislativo.
Protestos de 2015 foram decisivos para impeachment de Dilma
Iniciados nas jornadas de junho de 2013, os protestos contra o governo da então presidente Dilma Rousseff (PT) foram decisivos para que o impeachment protocolado pela oposição tivesse andamento no Congresso. O marco dessas manifestações ocorreu em 15 de março de 2015, na segunda gestão de Dilma, quando mais de 1 milhão de pessoas foram ao protesto realizado na Avenida Paulista.
Outro fato que se destacou foi a Marcha Pela Liberdade, realizada pelo Movimento Brasil Livre (MBL). Na época, o coordenador do movimento, Kim Kataguiri, atual deputado federal pelo União Brasil, e seus apoiadores caminharam de São Paulo até Brasília para entregar o pedido de impeachment no Congresso Nacional. Eles saíram no dia 24 de abril e chegaram à capital federal no dia 27 de maio, percorrendo três estados e mais de mil quilômetros durante 33 dias.
Em dezembro do mesmo ano, após outras manifestações e a piora na avaliação da ex-mandatária, o então presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha, autorizou a abertura do processo na Casa.
“As manifestações foram decisivas para fortalecer a pressão popular sobre parlamentares, demonstrando uma insatisfação ampla com o governo à época”, afirma Juan Carlos Arruda, cientista político e CEO do Ranking dos Políticos. Segundo ele, a presença massiva de milhões de pessoas nas ruas deu fôlego à oposição e à sociedade civil organizada, criando um ambiente favorável para o avanço do processo de impedimento.
No entanto, Arruda ressalta que o impacto das manifestações atuais dependerá de diversos fatores, como o tamanho dos atos e a capacidade da oposição em canalizar essa insatisfação para pressionar o Congresso. “A mobilização popular, somada à instabilidade econômica, pode, sim, servir como combustível para aumentar a pressão sobre o Legislativo, mas ainda há variáveis políticas importantes em jogo que influenciam essa dinâmica”, pondera.
Centrão ainda não vê “clima” para impeachment, mas descontentamento é nítido
Apesar do empenho da oposição, parlamentares do Centrão entendem que não há clima para um impeachment de Lula. A avaliação é que o grupo pode se beneficiar mais pressionando o governo para ceder espaços na futura reforma ministerial. Além disso, o tempo que um processo de impeachment leva para se concretizar também é usado como argumento para não apoiar por ora o movimento.
Como o impeachment de Dilma durou cerca de nove meses para se concretizar, contando da instauração do processo por Cunha até o julgamento no Senado, um parlamentar da cúpula do Centrão analisa que, se o mesmo ocorresse com Lula, além da demora, o processo entraria em risco por uma eventual decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
Apesar desse cenário, a insatisfação de caciques do Centrão com o governo petista é latente. Participando do Latin America Investment Conference (LAIC), evento realizado pelo UBS e pelo UBS BB na quarta-feira (28), o presidente do PSD, Gilberto Kassab, classificou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, como “fraco” e criticou a condução da atual gestão na economia.
“O sucesso da economia precisa de ministros da Economia fortes. Já tivemos FHC, Henrique Meirelles, Paulo Guedes. Eles comandavam. Hoje existe uma dificuldade do ministro Haddad para comandar. Haddad não consegue se impor no governo. Um ministro da Economia fraco é sempre um péssimo indicativo”, disse.
Mesmo que o impeachment não seja iniciado, opositores e centristas apostam que a mobilização popular tem capacidade para enfraquecer o governo Lula na corrida eleitoral para 2026.