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O governo do presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, que começa nesta segunda-feira (20), pode impactar diretamente os planos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nos próximos dois anos. Ficará mais difícil para o petista emplacar a regulamentação das redes sociais no país. Além disso, existe um temor por parte do Palácio do Planalto de ver prejudicados o Fundo Amazônia e a Conferência Mundial do Clima, que servirá de palco internacional para Lula no Brasil neste ano. O Brasil também poderá ser retaliado em sua tentativa de criar um meio de pagamento alternativo ao dólar no bloco dos Brics (Rússia, Índia, China, África do Sul, Irã, Arábia Saudita, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos).
O primeiro embate diz respeito justamente aos planos do governo petista de aprovar um projeto de regulamentação das redes sociais no Brasil. Apelidado de PL da Censura, o texto enfrenta forte resistência por parte da oposição, mas havia uma expectativa por parte do Palácio do Planalto de retomar essa discussão a partir desse ano com a troca de comando nas presidências da Câmara e do Senado.
Contudo, a recente decisão da Meta, responsável por redes sociais como Facebook, Instagram e Threads, de acabar com checagem de fatos nos Estados Unidos acendeu um alerta em integrantes do governo Lula. A mudança foi um dos frutos do chamado "efeito Trump", um conhecido defensor da liberdade de expressão nas redes sociais.
A avaliação dentro do Planalto é de que o alinhamento de empresas como a comandada por Mark Zuckerberg e o X (antigo Twitter, que foi comprado por Elon Musk) com o futuro governo de Trump pode acabar dificultando a tramitação do projeto no Congresso brasileiro. Musk, inclusive, foi indicado por Trump para chefiar o Departamento de 'Eficiência Governamental' dos Estados Unidos.
"As medidas adotadas pela Meta estão promovendo o faroeste digital e são ruins porque afrontam a soberania nacional. Defendemos a liberdade de expressão e lamentamos que o extremismo esteja desvirtuando esse conceito para viabilizar a liberdade de manipulação", afirmou o ministro Sidônio Palmeira, da Secretaria de Comunicação.
Os governistas avaliam que o lobby feito pelas Big Techs (empresas de tecnologia controladoras das redes sociais) acabou travando o avanço do projeto na Câmara em 2023. O projeto queria encarregar as redes sociais de censurar conteúdos que o governo entenda como "antidemocráticos". Mas para fazer isso as redes teriam que endurecer seus filtros de inteligência artificial e censurar conteúdos em larga escala, mesmo que fossem apenas opiniões ou sátiras. Isso poderia gerar prejuízos econômicos e resultar em multas no caso de falhas.
Com a chegada de Trump à Casa Branca e com o apoio de empresários como Zuckerberg e Musk, a perspectiva é de que essa discussão seja ainda mais difícil para o governo Lula.
"Na véspera da anunciada votação do PL 2630, as ações [contra o texto] se intensificaram. Google, Meta, Twitter e Spotify atuaram com forte abuso de poder econômico e desinformação para influenciar a opinião pública e os parlamentares contra o referido projeto de lei", argumentou o deputado Ivan Valente (PSol-SP).
Governo Lula ensaia alternativa contra redes sociais por meio do STF
Recentemente, o ministro Jorge Messias, da Advocacia-Geral da União (AGU), aproveitou a decisão da Meta e disse que o anúncio tornou urgente a necessidade de um “novo marco jurídico” para as plataformas. Uma das manobras articuladas pelo governo Lula para tentar driblar a influência de Trump junto às redes sociais tem como pano de fundo o Supremo Tribunal Federal (STF).
"Torna-se ainda mais premente a necessidade de criar um novo marco jurídico para a regulação das redes sociais no Brasil", afirmou Messias.
Em ofício encaminhado ao STF, o órgão comandado pelo ministro de Lula defendeu a responsabilização das plataformas e a retirada do ar de conteúdos ofensivos sem necessidade de decisão judicial. A manifestação foi feita em ações que discutem as regras do Marco Civil da Internet sobre a responsabilidade das redes sociais pelo conteúdo publicado nelas.
Sob a gestão de Messias, a AGU tem atuado contra publicações que são consideradas desinformação. Recentemente, por exemplo, o órgão solicitou ao YouTube a retirada de vídeos com informações falsas ou descontextualizadas sobre a saúde do presidente Lula.
A Corte julga desde 2024 uma ação que discute uma mudança no Marco Civil da Internet para levar à responsabilização das big techs pelos conteúdos publicados por terceiros. A análise do tema foi interrompida na última sessão do ano passado pelo ministro André Mendonça, que pediu vista, mas deve ser retomada ainda no primeiro semestre deste ano.
Na avaliação da deputada Julia Zanatta (PL-SC), o STF "desrespeita" a decisão do Congresso de não avançar com o projeto de regulamentação das redes. "Nós, aqui no Parlamento, refutamos a possibilidade de discutir o PL da Censura e neste momento o Supremo Tribunal Federal o está fazendo isso no nosso lugar. Quando o Parlamento escolhe não discutir sobre um tema, essa também é uma escolha legítima, e o Supremo Tribunal vem desrespeitando isso", afirmou a deputada sobre o julgamento da Corte.
"Eles querem regulamentar as redes sociais — censurar, na verdade, porque vão colocar lá discurso de ódio de uma maneira ampla, e o que eles acharem que é discurso de ódio vai ser qualquer coisa, porque não há como definir. É óbvio que não vai se tratar do que se fala, mas de quem fala, para retirarem de circulação, como já fizeram com muitos, alguns que incomodam, que falam verdades, que denunciam barbáries daqueles que se dizem defensores do Estado Democrático de Direito, mas estão acabando com a democracia no Brasil", completou a deputada.
Posse de Trump ameaça agenda ambiental de Lula
Além do embate sobre as redes sociais, outro ponto visto com cautela por parte do governo Lula em relação ao governo Trump tem como foco a agenda ambiental. Existe um temor, por exemplo, que uma eventual ausência do norte-americano acabe esvaziando Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP-30).
O evento será realizado em novembro, em Belém, no Pará, e é uma das principais apostas da agenda internacional de Lula para este ano. Além de retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris, como fez em seu primeiro mandato, a expectativa dos petistas é de que Trump “boicote” a definição de novas metas climáticas para 2035.
Além da renovação das metas do Acordo de Paris, a COP-30 pretende discutir o financiamento para ações de mitigação e adaptação ao aquecimento global. Os países emergentes e mais pobres querem recursos para essas ações e cobram a liberação de US$ 100 bilhões anuais. Em uma gestão Trump, acredita-se que será praticamente impossível arrancar recursos financeiros dos Estados Unidos para isso.
Integrante da comitiva do Congresso que participou da COP-29, no Azerbaijão, do ano passado, o deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP) avalia que o futuro presidente norte-americano não chega a ser um negacionista, mas é crítico em relação a medidas para reduzir as mudanças climáticas. Segundo ele, a eleição Trump fez com que o atual governo, do democrata Joe Biden, ficasse de “mãos amarradas” para aderir aos compromissos do encontro.
"Os Estados Unidos tiveram uma mudança muito significativa com a eleição do Trump, que tem um rito político, uma determinação, um conceito muito distinto em relação àquilo que era o governo Biden. O Trump já fez várias alegações sobre a questão das mudanças climáticas. Ele não chega a ser um negacionista que desconhece isso que está a acontecer, mas ele é muito crítico sobre as medidas que estão sendo adotadas", apontou Jardim.
Ainda na agenda ambiental, é esperado também por parte do governo Lula que Trump acabe com os repasses do país norte-americano para o Fundo Amazônia. O atual presidente Joe Biden chegou a repassar US$ 100 milhões, mas a promessa era de até US$ 500 milhões em cinco anos, o que não deve se concretizar com a troca de comando na Casa Branca.
Trump pode criar tarifas extras para o Brasil por causa de ataque dos Brics ao dólar
Outro plano de Lula que pode ser prejudicado com a chegada de Donald Trump ao governo dos Estados Unidos diz respeito à criação de um meio de pagamento alternativo ao dólar para transações feitas pelos países do Brics.
Em novembro, durante participação virtual na reunião do bloco realizada na Rússia, o presidente defendeu que era "chegada a hora de avançar na criação de meios de pagamento alternativos para transações” do Brics. Desde o início da sua gestão, o petista defende que os países deixem de usar a moeda norte-americana nos acordos feitos entre o grupo.
“Agora é chegada a hora de avançar na criação de meios de pagamento alternativos para transações entre nossos países. Não se trata de substituir nossas moedas. Mas é preciso trabalhar para que a ordem multipolar que almejamos se reflita no sistema financeiro internacional”, disse Lula.
O chamado “Brics Pay” seria um sistema de mensagens bancárias para liquidação e pagamento digital entre os membros do grupo, reduzindo a dependência do sistema SWIFT de pagamentos - mecanismo operado pelo mesmo princípio, mas por bancos ocidentais. A presidência do Brics está sendo conduzida atualmente pelo Brasil e o tema sobre a moeda alternativa ao dólar será uma das principais bandeiras da cúpula que deve ser realizada no Rio de Janeiro no final deste ano.
Donald Trump chegou a falar publicamente que poderá aplicar tarifas de 100% sobre os países membros do Brics, caso não se comprometam a abandonar planos de criar uma nova moeda ou criar outro meio alternativo ao dólar no comércio internacional. O republicano reforçou a impossibilidade de substituição da moeda norte-americana e disse que os países que tentarem devem se despedir dos Estados Unidos.
“Exigimos que esses países se comprometam a não criar uma nova moeda do Brics nem apoiar qualquer outra moeda que substitua o poderoso dólar americano, caso contrário, eles sofrerão 100% de tarifas e deverão dizer adeus às vendas para a maravilhosa economia norte-americana”, escreveu Trump em sua plataforma de mídia social, a Truth Social. Os Estados Unidos são o segundo maior parceiro comercial do Brasil, atrás apenas da China.
“Eles podem procurar outro ‘otário’. Não há nenhuma chance dos Brics substituírem o dólar americano no comércio internacional, e qualquer país que tentar deve dizer adeus aos Estados Unidos”, acrescentou o republicano.
Integrante da Comissão de Relações Exteriores na Câmara, o deputado General Girão (PL-RN), viu com "preocupação" a declaração do futuro presidente dos Estados Unidos. "Fico preocupado, porque o Trump mandou uma mensagem já: quem quiser acabar com a dolarização no mundo vai ter que enfrentar os Estados Unidos da América. E aí doa a quem doer, sobreviva quem tiver mais força", avalia.
A Rússia disse neste ano que o Brasil é o principal articulador do Brics Pay e o governo brasileiro não negou. Mas o maior interesse sobre um novo sistema de compensações financeiras é da China. Isso porque Pequim tenta que o yuan digital, uma moeda chinesa digital de banco central, concorra no futuro contra o dólar americano como principal moeda de comércio global. Para que isso aconteça é preciso criar antes um sistema de mensagens bancárias similar ao SWIFT do Ocidente.
O governo Lula está se prestando atualmente a cumprir essa parte do plano chinês. Mas também prepara sua própria moeda digital, o DREX. Essas moedas, chamas CBDC, são muito atrativas a governos autoritários, pois facilitam o monitoramento e o controle das finanças dos cidadãos. Não há perspectivas de criação de um dólar digital.