A Proposta de Emenda Constitucional 09/2023, ou a PEC da Anistia, como tem sido chamada, pode abrir a possibilidade para que os partidos paguem multas e condenações por "caixa-dois" com dinheiro do Fundo Partidário e Eleitoral, que vem do bolso do contribuinte, segundo analistas. A afirmação é de um grupo de organizações de combate à corrupção e de promoção à transparência política, que inclui a Transparência Internacional, o Pacto Pela Democracia, o Transparência Partidária e o Instituto Não Aceito Corrupção.
Em nota divulgada sobre a aprovação da PEC, as instituições afirmam que uma das consequências da proposta é a “autorização para o uso de recursos públicos para pagar dívidas e penalidades, inclusive pela prática de caixa-dois”.
O texto da nova PEC da Anistia prevê que os partidos políticos podem utilizar recursos do Fundo Partidário para “parcelamento de sanções e penalidades de multas eleitorais, outras sanções, débitos de natureza não eleitoral, devolução de recursos ao erário, e devolução de recursos públicos ou privados imputados pela Justiça Eleitoral, inclusive os de origem não identificada, excetuados os recursos de fontes vedadas”.
Ou seja, o dinheiro do contribuinte, de onde vem os recursos do Fundo Partidário, poderá ser utilizado para, até mesmo, cumprir sanções pelo recebimento de recursos privados sem origem identificada, prática que é enquadrada como ‘caixa-dois’, segundo analistas. Roberto Livianu, procurador de Justiça de São Paulo, doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, afirma que, se de fato isso ocorrer, “é o fim do mundo”.
Diante dessas e de outras consequências que as entidades avaliam que a PEC trará para o país, Livianu afirmou à Gazeta do Povo que a aprovação da medida pela Câmara é um retrocesso para o Brasil. Além disso, se aprovada pelo Senado e promulgada, a PEC pode contribuir para a piora brasileira no Índice de Percepção da Corrupção, elaborado pela Transparência Internacional.
Em 2023, o país ficou em 104º lugar do ranking - o índice avalia 180 países. Dinamarca, Finlândia e Nova Zelândia ocupam as primeiras posições. O Brasil está no mesmo patamar que Zâmbia, Argélia, Sérvia e Ucrânia. Livianu declarou que “o país, que terminou 2023 como a 9ª economia do mundo se mantém em uma faixa intermediária no combate à corrupção. São situações incompatíveis", disse ele.
Tramitação da PEC da Anistia gerou controvérsias na Câmara
A PEC foi aprovada na Câmara dos Deputados na noite desta quinta-feira (11). Além de permitir o uso de impostos para pagar "caixa-dois", a medida ainda revoga a determinação de que candidatos negros devem receber verba eleitoral que seja proporcional ao número de suas candidaturas frente aos candidatos totais, livra os partidos de multas por descumprimento dessas cotas para negros e mulheres e ainda cria uma espécie de Refis (refinanciamento de dívidas) para as legendas.
De acordo com a determinação atual do TSE, caso o partido tenha 40% de candidatos negros, precisa destinar 40% das verbas de campanha para essas candidaturas. Caso a PEC seja aprovada, independente do percentual de candidaturas de negros e pardos, o partido poderá destinar apenas 30% por elas.
Pautada desde a semana passada para votação no plenário pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a PEC tem gerado controvérsias desde meados de junho, quando a possibilidade de votação começou a ser debatida. O Partido Novo e o Psol foram contrários à PEC desde o início. Já o PT, apesar de ser favorável, disse no início do mês que era preciso mais tempo de debate para a proposta.
Contrário à aprovação da proposta, o deputado federal Marcel Van Hattem (Novo-RS) avalia que a PEC da Anistia demonstra a hipocrisia de partidos que defendem políticas de cotas e que depois não conseguem cumpri-las. Além disso, ele destaca que, mais uma vez, fica evidente o poder abusivo do Tribunal Superior Eleitoral que cria regras ilegais que não são cumpridas pelos partidos, referindo-se à aplicação da proporcionalidade de verbas para candidatos negros e para mulheres defendida pela Corte Eleitoral em suas decisões.
PEC da Anistia teve aprovação massiva
A PEC teve uma aprovação estrondosa, com 344 votos a favor, 89 contra e 4 abstenções, no primeiro turno. No segundo turno, foram 338 votos favoráveis, 83 contrários e 4 abstenções. As Propostas de Emendas à Constituição precisam ser aprovadas em dois turnos, com 308 votos a favor. Além da aprovação massiva, chamou também atenção o número de autores da proposta, 184 ao todo, incluindo parlamentares do PT, MDB, PSD, PL, entre outros.
Um dos autores, o Cabo Gilberto Silva, afirmou durante as deliberações sobre a PEC que os deputados estavam estabelecendo "parâmetros, métodos e dando eficiência", já que as decisões do TSE se mostraram impossíveis de ser atendidas pelos partidos. "O TSE, com as melhores das intenções, criou uma legislação impraticável para os partidos cumprirem", disse ele.
Gilson Daniel (PODE-ES), que também consta do amplo roll de autores da proposta, defendeu a criação do Refis partidário (pagamento a longo prazo com juros amigáveis), invocando a necessidade de regularizar débitos anteriores. "Às vezes, quando se assume o partido, há questões anteriores. Tem-se que regularizar o passado. Traz um transtorno muito grande, porque há multas e juros para serem pagos. E, muitas vezes, o partido não tem capacidade financeira".
A nota crítica à PEC da Anistia, que também é assinada pelo Pacto pela Democracia e pelo Movimento Transparência Partidária, afirma que a proposta foi aprovada em um “plenário esvaziado”.
“Excepcionalmente, como era prática comum durante a pandemia, se autorizou a votação remota pelos parlamentares que não se encontravam em Brasília - o que reduziu o espaço de discussão sobre uma proposta que emendará a Constituição Federal. Não houve participação efetiva da sociedade civil na discussão do texto sob análise pelo Plenário da Câmara dos Deputados. Conforme diversos parlamentares apontaram, nem mesmo eles tiveram acesso ao texto que foi alvo da deliberação com prazo mínimo e razoável”, diz a nota.
PEC incentiva inadimplência por meio de Refis partidário
Um dos pontos controversos sobre a matéria é a instituição de um programa de Recuperação Fiscal para os partidos. As organizações afirmam que é uma prática historicamente problemática, pois gera renúncias de receitas, além de estimular o descumprimento das obrigações tributárias.
Como mostrado pela Gazeta do Povo em junho deste ano, a criação dessa espécie de Refis partidário foi uma forma encontrada pelos relatores para que a proposta não ganhasse tons de uma autoanistia - na qual os próprios partidos são responsáveis por perdoar suas dívidas.
A medida contraria, inclusive, pareceres técnicos da Receita Federal, segundo a qual, esse tipo de programa influencia o comportamento do cidadão comum de forma negativa e cria “uma cultura de inadimplência”. A Receita também refuta argumentos de que esses parcelamentos especiais auxiliem a incrementar a arrecadação, reduzindo o passivo tributário, ou promovendo a regularidade fiscal dos devedores. Dessa forma, indica a rejeição de qualquer iniciativa desse âmbito.
PEC pode levar à redução de verbas para candidaturas regionais, e anistia a multas cria confusão para pleitos futuros
Diante da alegação de que os partidos têm dificuldade para se adaptar às regras de distribuição equânime de recursos para candidaturas de pessoas negras e de mulheres, o texto da PEC da Anistia prevê o mínimo de 30% dos recursos do Fundo Partidário e Eleitoral para candidaturas de pessoas pretas ou pardas. Atualmente, o Tribunal Superior Eleitoral estabelece que essa distribuição seja igual à participação de candidatos negros, que, em 2022 ficou em torno de 50%.
O texto, no entanto, afirma que os 30% das verbas podem ser utilizados “nas circunscrições que melhor atendam aos interesses e estratégias partidárias”. Em sua nota, a Transparência Internacional e entidades parceiras afirmam que essa redação propicia que os gastos se concentrem em determinadas regiões e que sejam ausentes em outras, levando ao aprofundamento das desigualdades regionais.
A PEC também livra os partidos de pagarem multas relativas ao uso incorreto das verbas em candidaturas de negros ou mulheres ou de terem o Fundo Partidário Eleitoral suspenso por irregularidades na prestação de contas realizadas antes da promulgação da emenda. A condição é que os valores devidos de pleitos passados sejam investidos em candidaturas de pessoas negras entre 2026 e 2032.
Na prática, a medida faz com que seja impossível conferir o cumprimento da realocação desses recursos, além de possibilitar que fundos que antes deveriam ter sido alocados nas eleições para o Congresso Nacional e para as Assembleias Legislativas, sejam direcionados para os pleitos municipais. Estimativas da Transparência Internacional apontam que, em razão dessa anistia, a União pode deixar de receber até R$ 23 bilhões em multas partidárias.
Roberto Livianu afirma que essa é a quarta anistia concedida a partidos políticos que não seguem as regras eleitorais, sendo esta a pior de todas. O procurador ainda destaca que, diante desse histórico, é possível que, nos próximos pleitos, caso não sejam cumpridas as regras, nada impede que novas anistias possam ser aprovadas.
Isenção de impostos da PEC da Anistia vai contra decisão judicial
A nova PEC ainda estabelece que os partidos políticos têm imunidade tributária. No entanto, o alerta das entidades de combate a corrupção indica que essa medida vai além da isenção de impostos, que já está garantida pelo artigo 150 da Constituição Federal. Segundo esse dispositivo, os partidos políticos já não pagam impostos, tal como ocorre com igrejas e instituições sociais e de assistência.
Assim, o artigo 6º da PEC não visa senão anular todas as sanções de natureza tributária aplicadas aos partidos políticos, incluindo aquelas que tenham sido originadas por processos administrativos e judiciais já concluídos e onde não cabem mais recursos. A condição para a aplicação da regra é que os processos tenham cinco anos ou mais.
Dessa forma, bastaria que os partidos alongassem seus processos na perspectiva de alcançar a impunidade. Ou seja, qualquer cobrança por condenação aplicada a partidos torna-se passível de ser anulada, bastando que se tenha deixado de cumpri-la por mais de cinco anos.
Outro ponto que favorece os partidos é o alívio nas regras de prestação de contas. Se aprovada, a PEC desobriga as legendas a apresentarem recibos de transferência bancária feitas pelo partido a candidatos e candidatas por meio de doações de recursos do Fundo Partidário e Eleitoral, assim como de doações recebidas através de PIX.
Livianu afirma que os partidos, infelizmente, não têm primado pela transparência em relação à prestação de contas dos recursos que recebem. “Nós precisamos rever o modelo do financiamento da política no Brasil, porque houve a proibição do financiamento empresarial, mas não é possível que se trabalhe com o financiamento via Fundo Eleitoral e Partidário sem transparência, né? Aumenta-se o valor sem ouvir a sociedade e não há prestação de contas decente disso”, salienta.
Há possível dissenso entre Câmara e Senado para aprovação da proposta
Diferentemente de Lira, que acelerou a tramitação e levou a proposta para votação antes do recesso parlamentar, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, teria indicado que não apressará a tramitação da proposta, e que seguirá os procedimentos legais para a que a PEC da Anistia seja analisada.
Uma das principais figuras no combate à corrupção levado adiante pela operação Lava Jato, o senador Sergio Moro (União-PR) não quis adiantar à Gazeta do Povo sua opinião sobre a PEC e disse que irá se posicionar assim que ela chegar ao Senado.
No entanto, o parlamentar pode ter dado indícios de sua visão sobre a pauta, pois afirmou que sua esposa, a deputada Rosângela Moro (União-SP), foi contrária à PEC por entender que “tinha muitos pontos problemáticos e por refletir a dificuldade que temos, no Brasil, em cumprir regras pré-estabelecidas”.
O procurador Roberto Livianu disse que, diante da indignação pela aprovação da PEC na Câmara, as esperanças ficam todas depositadas no Senado, para que reveja a situação e não aprove a medida.
“Esperamos que isso ocorra no âmbito do Senado sobre o comando do presidente Rodrigo Pacheco. Para que essa situação possa ser revista, porque é uma verdadeira aberração, uma situação em que houve uso abusivo do poder na Câmara. Tivemos aí um momento, uma página muito ruim, triste e lamentável da história política do Brasil”, afirmou.
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