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Alexandre de Moraes
Ao menos 25 núcleos de investigação consultaram dados pessoais de forma indevida de Moraes e outras autoridades.| Foto: Gustavo Moreno/STF

A Polícia Federal está investigando, há seis meses, acessos indevidos a dados restritos e informações pessoais do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e de autoridades policiais que atuaram em inquéritos como o das fake news, das milícias digitais e das joias recebidas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. As pesquisas foram feitas em um banco de dados de uso exclusivo das forças policiais e do judiciário chamado Sinesp Infoseg.

Na lista de suspeitos pelos acessos indevidos aparecem 25 núcleos de pesquisa com login e senha. Eles correspondem a perfis ligados a policiais militares, policiais civis, policiais federais, policiais rodoviários federais, membros do Ministério Público, um assistente no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, um login atribuído a um juiz no interior de São Paulo e até guardas municipais, segundo documentos obtidos pela Gazeta do Povo.

O Sinespe Infoseg é o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, uma plataforma que integra os dados de segurança pública, Justiça e fiscalização em todo território nacional. Ele agrega dados de pessoas que são alvos de inquéritos, de processos, de mandados de prisão, além de reunir informações de veículos, condutores e registro de armas. O conteúdo acessado por um ministro do STF é o mesmo disponível para consulta às polícias e guardas municipais de todo o Brasil.

O simples acesso aos dados pelo sistema por agentes autorizados não é crime. Mas se as informações obtidas forem usadas para fins como causar constrangimentos a autoridades ou serem comercializadas para organizações políticas ou criminosas, o agente público pode responder a procedimentos administrativos e até a processos que podem levar à perda do cargo na esfera da administração pública.

Na esfera criminal, o inquérito quer saber se a partir das informações extraídas houve a prática de incitação ao crime (com pena de detenção de três a seis meses mais pagamento de multa), obstrução de investigação (com pena que pode variar de três a oito anos de prisão) ou prática de organização criminosa (que também tem pena que varia de três a oito anos de reclusão).

A Polícia Federal ainda não chegou a uma conclusão sobre as motivações de quem pesquisou dados do ministro e dos policiais. Uma das possibilidades é que acessos aos dados sejam uma tentativa de constrangimento de autoridades públicas. Outras linhas de investigação são que consultas tenham sido feitas para venda de informações sigilosas para grupos criminosos ou tenham ocorrido por meio da ação de hackers com motivações ainda desconhecidas.

Entre as consultas tidas como irregulares estão sete buscas pelo CPF do ministro Alexandre de Moraes nos primeiros três meses deste ano. Em um documento que a Gazeta do Povo teve acesso constam as seguintes consultas:

  • 22 de janeiro busca pelos dados restritos de Alexandre de Moraes em um login atribuído a um assistente no TRT4 (Justiça do Trabalho);
  • 1º de fevereiro o CPF do ministro foi consultado por um login da Guarda Municipal do Rio de Janeiro;
  • 7 de fevereiro a busca foi por um login e senha de um agente da Polícia Federal em Araçatuba (SP);
  • 14 de fevereiro outra consulta atribuída a um sistema de acesso ligado a um investigador da Polícia Civil do estado do Mato Grosso;
  • 24 de fevereiro busca pelo CPF em um login de um cabo da PM de São Paulo;
  • 24 de março acesso com login e senha atribuído a um soldado da PM de Alagoas;
  • 26 de março de uma máquina atribuída a um juiz lotado no estado de São Paulo

A partir da consulta pelo CPF, são disponibilizados dados pessoais como registros de armas, inquéritos e processos que a pessoa possa responder, dados de veículos, endereços pessoais e de trabalho, telefones e informações sobre parentescos.

Entre as buscas também constam pesquisas sobre delegados e investigadores que conduzem e participam de inquéritos policiais como o que indiciou Bolsonaro no caso das joias e que já investigou críticos do ex-presidente.

Fontes da PF ouvidas pela Gazeta do Povo confirmam que, mesmo após a instauração do inquérito, ocorrida em 18 de março, as pesquisas pelos dados restritos de Alexandre de Moraes e de outros nomes ligados a investigações se mantiveram.

O inquérito identificou que os 25 núcleos de acesso realizaram milhares de buscas que foram consideradas indevidas. Esses acessos ocorreram entre os meses de janeiro e março. A investigação visa saber se houve incitação ao crime, obstrução de investigação ou prática de organização criminosa.

Vale destacar que, como o sistema Sinesp Infoseg consultado pelos agentes integra informações pessoais de todos os brasileiros, eles não são considerados dados sigilosos, mas sensíveis.

Perfil de juiz realizou mais de quatro mil consultas a dados em um único dia

Somente do login e senha atribuídos a um juiz no interior de São Paulo teriam sido feitas mais de quatro mil consultas em um único dia e há registro de acessos via VPN, uma rede virtual privada que permite conexão de usuários à internet de forma anônima. Essas buscas envolveriam diferentes alvos de pesquisa, não somente o ministro do STF, mas também de agentes e delegados da PF. Em outro caso, um policial militar em Goiás realizou durante um mês, em média, mais de 500 consultas por dia, registrando mais de 17 mil acessos em 30 dias.

No curso da investigação também foram identificados perfis que teriam realizado mais de mil consultas durante o mês, volume tido como elevado para qualquer uma das forças de segurança ou de fiscalização.  A investigação também quer saber se há alguma possibilidade de o sistema e perfis destes agentes terem sido invadidos por hackers com o objetivo de um vazamento seletivo de informações.

Procurado para saber do andamento do inquérito e sobre as investigações envolvendo os perfis que teriam realizado acessos indevidos, a Polícia Federal em Brasília respondeu que “a PF não se manifesta sobre eventuais investigações em andamento”.

Fontes ligadas à PF confirmam que entre os investigados também estão agentes da corporação.

Investigação ajudou Moraes a criar argumentos para a suspensão do X

A suspensão da rede social X no Brasil, por determinação do ministro Alexandre de Moraes no fim de agosto deste ano, teve como uma de suas fundamentações o inquérito sobre os vazamentos do sistema Sinespe Infoseg, segundo apurou a Gazeta do Povo.

As informações sobre o vazamento de dados dos policiais no X e a suposta tentativa de intimidação a eles constam em uma petição sigilosa elaborada por Moraes que foi revelada recentemente pelo empresário Elon Musk. Ele criou uma página na internet chamada "Alexandre Files" que visa levar a conhecimento público decisões do ministro consideradas por ele arbitrárias.

As pesquisas sobre os dados de Moraes e dos delegados, ocorridas de janeiro de março de 2024, colocaram o ministro em estado de alerta, segundo a petição. Nos meses seguintes, o documento cita que Moraes teria identificado o surgimento de uma campanha em redes sociais para tentar expor publicamente os dados de um delegado e de outros servidores da Polícia Federal que trabalharam em inquéritos relatados por ele.

Eles supostamente alegavam que o delegado e um grupo restrito de policiais federais estariam recebendo ordens do ministro sobre como conduzir investigações contra políticos e comunicadores de direita, agindo assim por motivação política. Por isso, esses policiais deveriam ser monitorados pela sociedade, pois poderiam receber eventuais promoções e aumentos salariais indevidos em retribuição ao seu engajamento.

Segundo investigação da Polícia Federal que consta na petição de Moraes, o jornalista Allan dos Santos anunciou no dia 8 de março "um projeto de exposição dos policiais federais que atuam nos casos em curso no STF". Segundo a PF, ele afirmou que iria expor "todos os delegados que atuam nos casos sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes."

Segundo a PF, Allan dos Santos teria recebido e-mails anônimos com supostas informações de policiais envolvidos nos inquéritos após iniciar a campanha. No dia 9 de julho, o perfil no X da filha adolescente do jornalista Oswaldo Eustáquio publicou uma foto de um dos delegados da PF e supostamente também imagens de sua mulher e de seu filho.

No dia 14 de julho, o perfil do senador Marcos do Val (Podemos-ES) retuitou (republicou) um dos textos do perfil da adolescente onde constava a foto do delegado supostamente acrescentando os dizeres "procura-se", segundo a PF.

O senador Do Val disse à Gazeta do Povo que há uma politização "jamais vista antes" na Polícia Federal, mas negou ter exposto a família do delegado. "Gostaria de reiterar que, em nenhum momento, publiquei ou compartilhei fotos de familiares de qualquer delegado, muito menos incitei violência com supostas legendas como 'Procura-se vivo ou morto'. Tais alegações são, sem dúvida, absurdas e difamatórias, ferindo diretamente minha honra e conduta como Senador da República”, disse. A reportagem tentou contato com Allan dos Santos e Oswaldo Eustáquio mas não obteve resposta.

O STF e associações de policiais entenderam a campanha como uma tentativa de intimidação contra os policiais. Os perfis de Allan dos Santos, Oswaldo Eustáquio e Marcos do Val foram alvo de pedido de censura do STF para o X que inicialmente se recusou a cumprir a determinação. Mas na semana passada, após a suspensão do X, os perfis foram bloqueados.

Bloqueio do X não seria caminho, segundo especialistas

Para especialistas em Direito Penal ouvidos pela reportagem, o bloqueio do X também pautado neste inquérito não seria o caminho mais correto. Para os especialistas, ao analisar o acesso indevido para um suposto vazamento dos dados, o foco seria o de identificar quem fez as consultas e fazer com que respondessem de forma individualizada, não com o bloqueio da rede social como uma punição coletiva.

Os advogados alertam ainda que a Justiça pune de forma individualizada e não coletiva. Para advogados, com medidas assim o Brasil se aproxima de um mapa geográfico de decisões mais autoritárias, como Venezuela, China, Coreia do Norte, Rússia e até mesmo o Irã.

Ministério da Justiça diz que anormalidades em acessos são comunicados à PF

O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) disse à Gazeta do Povo que o sistema Sinesp Infoseg integra um conjunto de ações no desenvolvimento de soluções para atender, de maneira mais eficiente, às demandas dos profissionais de segurança pública.

“O sistema é de uso restrito a esses profissionais, à justiça, à fiscalização e aos órgãos de controle. Ele reúne dados e informações a respeito de pessoas, veículos, armas, entre outras, que dão subsídio a investigações e ações de inteligência”, afirmou.
Como é uma ferramenta de uso reservado, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), disse realizar monitoramento contínuo das credenciais de seus usuários.

“A partir desse rastreamento, é possível identificar eventual uso indevido de acesso ao sistema. Quando há, por exemplo, movimentações consideradas atípicas, a equipe de segurança interna identifica o usuário e, imediatamente, bloqueia a conta. Ou seja, a entrada no Sinesp é barrada. Em seguida, as informações são encaminhadas à PF”, seguiu o MJ.

O Ministério afirma ainda que mantém contato regular com a PF e também reporta à corporação qualquer indício de robotização no acesso ao sistema ou de mudanças não autorizadas nos dados restritos de usuários. “É prioridade da Senasp a implementação de novas funcionalidades para aprimorar a segurança cibernética, com o objetivo de prevenir fraudes e impedir eventuais irregularidades no acesso ao sistema. Para isso, o Ministério da Justiça e Segurança Pública tem atuado em parceria com o Serviço Federal de Processamento de Dados”.

A reportagem também procurou o STF. Pediu manifestação da corte sobre as investigações e se o ministro pretendia se manifestar. Até a publicação desta reportagem não obteve retorno.

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