O "corte na carne" ficou na promessa. Propostas para retirada de recursos da classe política e transferência destas verbas para a rede pública de saúde, que se repetiram aos montes no início da pandemia de coronavírus, não avançaram no Congresso Nacional. Passado quase um ano do começo da crise da Covid-19, as proposições de "corte na carne" acabaram se acumulando nas gavetas virtuais da Câmara e do Senado.
As proposições continham ideias como repasse dos recursos do Fundo Eleitoral para o Sistema Único de Saúde (SUS); a autorização para que partidos pudessem doar as verbas do fundo partidário, que hoje só podem ser utilizadas em suas atividades internas; o corte de salários de deputados federais e senadores; e também a diminuição dos vencimentos dos servidores do Congresso Nacional, sob a alegação de que as casas legislativas teriam o funcionamento reduzido.
Nenhuma das propostas com estes teores chegou a ir a votação. Os projetos não superaram nem sequer as barreiras iniciais da tramitação no Congresso, como a designação de um relator. Alguns foram apensados a projetos antigos — "apensar", no jargão do Legislativo, significa unir duas ou mais propostas de caráter semelhante, de forma a evitar trabalhos repetitivos.
Um desses apensamentos ocorreu com o projeto 646/2020, de Felipe Rigoni (PSB-ES), Tabata Amaral (PDT-SP) e outros parlamentares, que autorizava partidos a repassarem recursos dos fundos eleitoral e partidário. A iniciativa foi apensada a uma proposta de 2019, que havia sido apensada a outra de 2007, que fora apensada a outra de 2017, e esta de 2017 não teve tramitação significativa nos últimos anos.
"Os projetos foram todos engavetados. Eles diziam 'legal, ótimo', mas não deixavam avançar. Quem pauta os projetos é o presidente da Câmara, e o presidente pauta o que tem consenso. Então os líderes pressionavam para votar o que eles entendiam como prioritário, e não eram essas propostas", afirmou o líder do Novo, Vinícius Poit (SP), que foi também um dos autores do PL 646/2020.
O presidente da Câmara no ano passado era Rodrigo Maia (DEM-RJ). Ele não chegou a se opor formalmente às iniciativas de "corte na carne", mas em mais de uma ocasião declarou considerar injusto que a cobrança ficasse exclusivamente sobre os membros do Legislativo ou sobre a classe política.
Então comandante do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) deu em abril do ano passado declaração de sentido semelhante: "não podemos voltar a essa discussão neste momento, quando 250 vezes mais do que o orçamento destinado à democracia já foram aplicados por medidas do governo, do Congresso brasileiro. Então é só uma conta: 250 vezes [mais recursos] já foram liberados. Será que esses R$ 2 bilhões do financiamento da democracia, são eles que são fundamentais para o combate à pandemia, enquanto todos nós temos nos dedicado à defesa dos brasileiros?".
Os R$ 2 bilhões citados por Alcolumbre já haviam entrado no debate público em 2020 antes mesmo do início da pandemia. A verba, do fundo eleitoral, fora sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro e a decisão foi contestada até mesmo por parte dos apoiadores do presidente, que são contrários à destinação de recursos públicos para campanhas políticas.
Além de uma escolha de prioridades, as dinâmicas vividas por Câmara e Senado nos meses que sucederam o início da pandemia também contribuem para o "engavetamento" das iniciativas. As primeiras semanas após a deflagração da crise sanitária foram de impasse sobre se o Congresso teria ou não sessões e votações.
Depois de implantados os sistemas virtuais de Câmara e Senado, as duas casas se viram na obrigação de negociar com o governo propostas de cunho mais urgente, como o "orçamento de guerra", o auxílio emergencial e, mais recentemente, a vacinação. Houve ainda eleições, tanto as municipais quanto as internas do Congresso, que centralizaram as atenções por algumas semanas.
"É claro que se tivéssemos destinado mais recursos para o combate à pandemia, poderíamos ter evitado mais mortes. Mas é importante colocar também que o Legislativo aprovou todas as propostas enviadas pelo governo sobre o tema, e também algumas de iniciativa própria", destacou o deputado Fábio Trad (PSD-MS).
Até que ponto fez falta?
O Brasil contabilizou recentemente 250 mil mortes por Covid-19. O presidente Bolsonaro alega que suas responsabilidades para o combate à doença foram limitadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), enquanto adversários do chefe do Executivo, como opositores no Congresso e o governador João Doria (PSDB-SP), culpam o governo federal pelo que consideram uma má gestão de crise.
Em meio a esse debate, a contribuição real dos recursos do "corte na carne" é incerto. Coordenador adjunto da Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Getúlio Vargas Júnior acredita que é difícil especificar se a realidade seria diferente se o Brasil dispusesse das verbas do fundo eleitoral e do salário dos congressistas, por exemplo. Mas ele avalia que o país vive, hoje, uma crise causada pela falta de recursos para a saúde pública.
"O financiamento tem sido um dos grandes gargalos da saúde. A gente entende que algumas medidas poderiam ser tomadas. Não me atreveria a dizer que é desse lugar [fundo eleitoral] que estariam os recursos necessários, mas isso não impede que algumas coisas sejam repensadas", declarou Vargas.
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