Após o Congresso Nacional derrubar o veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao marco temporal de demarcação de terras indígenas e aprovar um calendário para pagamento das emendas parlamentares na Lei de Diretrizes Orçamentárias - diminuindo a capacidade de barganha de Lula -, o Executivo não esperou nem o fim do recesso parlamentar para modificar as decisões do Legislativo. Isso está sendo entendido por deputados e senadores como quebra deliberada de acordos firmados e pode aumentar ainda mais a resistência ao governo na volta aos trabalhos no Congresso.
Deputados e senadores se mostraram mais uma vez surpresos com a interferência em decisões tomadas após anos de discussão, como aconteceu, por exemplo, no caso do marco temporal. A lei aprovada pelo Legislativo define a data de 5 de outubro de 1988 - data da promulgação da Constituição Federal - como parâmetro para a demarcação de terras indígenas e dificulta a criação de novas reservas. Isso foi motivo de intenso debate tanto na Câmara quanto no Senado durante todo o ano de 2023.
O vice-líder da oposição na Câmara, Maurício Marcon (PL-RS), disse que o governo "não respeita o Congresso" e citou exatamente a questão da demarcação de terras. A lei do marco temporal foi promulgada pelo próprio Congresso Nacional após a derrubada do veto, já que o presidente Lula não o fez, e já foi judicializada pelo PT e outros partidos de esquerda no Supremo Tribunal Federal (STF).
"A desoneração da folha, o marco temporal, o Congresso já deu sua palavra final e eles não respeitam, eles só querem fazer a vontade deles", disse Marcon.
Para o deputado Kim Kataguiri (União-SP), a queda de popularidade de Lula, e o clima de tensão já no início de 2024 devido aos enfrentamentos com o Congresso fragilizam ainda mais a gestão petista. "Acho que o governo está comprando mais brigas com o Congresso do que consegue suportar. Lula gastou a maior parte do que tinha de cargos e emendas em 2023, o que vai dificultar a aprovação de projetos do governo em 2024", afirmou o parlamentar. Ainda segundo ele, tudo indica que o governo vai começar o ano legislativo com uma série de derrotas.
Uma delas provavelmente virá da mobilização dos parlamentares para derrubar o veto de Lula ao cronograma para pagamento de emendas impositivas, ou seja, obrigatórias, que foi acordado entre os parlamentares ainda na elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), na Comissão Mista de Orçamento.
De acordo com o relator do texto, deputado Danilo Forte (União-CE), embora não tenha sido feito um acordo formal sobre o calendário de pagamento das emendas individuais, o governo participou de todo o processo de elaboração da matéria. Deputados de oposição afirmaram na época ter entendido que o calendário havia sido aprovado em um acordo que garantiu, em contrapartida, a aprovação da Reforma Tributária.
Ao estabelecer um tempo para que as emendas sejam empenhadas, até o fim do primeiro semestre deste ano, os deputados buscam garantir que o dinheiro enviado a estados e municípios chegue ao destino ao mesmo tempo, independente se a emenda partiu de um parlamentar aliado ou de oposição. Já o governo perde o poder de barganha de liberar emendas em troca de apoio a projetos de seu interesse.
Ainda mais se considerarmos que 2024 é um ano de eleições municipais, alerta o Consultor de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, Fidélis Fantin. "O Congresso tem puxado para si um poder maior de decisão, montantes maiores, e isso, ao meu ver, reflete uma certa desconfiança com o governo. A ideia é que esse calendário seja permanente. Mas, principalmente, em ano eleitoral, para o político em geral, é muito caro para eles, parlamentares e prefeitos, que recursos para obras e investimentos sejam liberados a tempo", salienta.
Parlamentares prometem derrubar veto de Lula a cronograma de pagamento de emendas
O senador Magno Malta (PL-ES), assim como outros deputados e senadores, promete se esforçar para derrubar o veto, que precisará ser analisado em sessão do Congresso Nacional, que será marcada na volta do recesso.
A deputada Carla Zambelli (PL-SP) publicou em uma rede social que o veto do presidente Lula à Lei de Diretrizes Orçamentárias é "imoral". Para Zambelli, o veto deixa a critério do governo a liberação desses recursos sem um calendário específico, fazendo com que possa "chantagear" os parlamentares que não se vendem ao governo com emendas em caso de votações importantes. A deputada lembrou que diversas emendas foram pagas pelo Executivo, mais de R$ 10 bilhões, para aprovação da reforma tributária, ainda no final de 2023.
Zambelli disse ainda que, além da possível derrubada do veto, o subprocurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), Lucas Rocha Furtado, entrou com uma representação no tribunal, para que a Corte acompanhe a execução orçamentária de 2024, a fim de evitar o "toma lá dá cá".
MP que acaba com desoneração para setores é mais um foco de tensão com Planalto
Não bastasse a judicialização do marco temporal e o veto ao trecho da Lei de Diretrizes Orçamentárias que acaba com a definição de prazos para pagamento de emendas parlamentares, o governo também aproveitou o início de 2024 para enviar ao Congresso uma medida provisória que reonera a folha de pagamento das empresas de 17 setores. Essa matéria também foi decidida pelo Congresso em dezembro no sentido contrário, ou seja, de manter a prorrogação da desoneração da folha.
Há quem defenda que o presidente do Congresso e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), devolva o texto ao Executivo. Desde o início da semana, Pacheco tem conversado com líderes e integrantes da equipe econômica. Embora já tenha ocorrido no passado, a devolução nesse caso não é amparada por nenhuma regra formal ou lei.
O senador Magno Malta (PL-ES) disse que alguns líderes de oposição nem quiseram participar desses encontros, e ressalta que o governo mais uma vez desrespeitou uma decisão do Congresso Nacional.
O deputado tenente-coronel Luciano Zucco (PL-RS) endossa o que disse Malta sobre o desrespeito a decisão do parlamento. "O Governo Federal ignora solenemente o Congresso Nacional ao vetar a prorrogação da desoneração e, posteriormente, com o veto derrubado, mandando outra Medida Provisória com novas regras".
Fontes próximas ao Planalto avaliam que Lula pode ceder e aceitar negociar a questão da medida provisória, justamente para tentar reverter os desgastes e não perder mais apoio em votações importantes. Enquanto não sai a decisão sobre a medida, Pacheco e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, vão se reunir na próxima segunda-feira (15), segundo informou o líder do governo no Senado, Jacques Wagner (PT-BA).
Descompasso ideológico entre agendas cria clima de tensão entre Governo e Congresso, dizem analistas
A relação entre o Congresso e o governo vem sendo marcada pela tensão e diferenças ideológicas de agendas, avalia o vice-presidente da Arko Advice, Cristiano Noronha. Embora não acredite que o nível de tensionamento deste início de ano entre os poderes chegue a se configurar como uma crise, Noronha afirma que as relações começam tensionadas em 2024.
"Há algumas divergências ideológicas fortes entre eles. O governo tentou alterar regras do saneamento, defendeu mudanças no marco temporal e o Congresso reagiu", avalia. Para Noronha, se o governo insistir em confrontar a agenda do Legislativo pode criar problemas mais sérios de relacionamento, num claro descompasso ideológico.
O professor de Ciências Políticas Antônio Henrique Lucena, da Universidade Católica de Pernambuco, também acredita que a relação entre Executivo e um Legislativo cada vez mais poderoso reforça a necessidade de ampla negociação entre os poderes a cada votação. Lucena destaca ainda o papel mais à direita de grande parte do Parlamento, que discorda da ideologia do governo Lula. Embora admita as divergências, Lucena acredita que a tendência é de uma acomodação, e diminuição da tensão provocada pelos vetos e medidas do governo neste início de ano.
Mas, na avaliação do professor de Ciências Políticas Adriano Cerqueira, da Universidade Federal de Ouro Preto, há, sim, uma crise instalada entre o Planalto e o Congresso Nacional. "O governo, ao responder em pleno recesso parlamentar a uma decisão dos parlamentares, enviando uma MP sobre assunto já deliberado, mostra que a relação harmoniosa e sem ruídos ainda está longe".
O Congresso retoma os trabalhos em 02 de fevereiro, com o início do ano legislativo. Com tantas quebras de acordo por parte do governo, a capacidade de Lula conseguir aprovar suas principais pautas começa abalada no segundo ano do atual mandato.
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