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Raízes do Centrão: como a política brasileira virou um balcão de negócios sem ideologia

Centrão se fortaleceu após a Congresso aprovar emendas impositivas, em 2015
Conhecido antigamente como "Baixo Clero", Centrão se fortaleceu após a Congresso aprovar emendas impositivas, em 2015 (Foto: Mario Agra / Câmara dos Deputados)

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Conhecido atualmente como “Centrão”, o grupo de partidos sem ideologia clara que predomina no Congresso Nacional desperta sentimentos mistos. Se por um lado foi responsável pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, também é visto como o principal adversário do impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Mas como esse grupo chegou ao poder? 

Da eleição de Fernando Collor de Mello, em 1989, até o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Centrão se consolidou por fornecer o apoio Legislativo para diversos governos com ideologias divergentes. Seja votando contra ou a favor de projetos, negociando emendas e cargos, parlamentares conhecidos como centro-democrático possuem uma origem comum na falta de ideologia dos antigos partidos e as oligarquias que atravessaram os séculos 18 e 19. 

“O Brasil deixou de ser um país do Executivo e passou a ser um país do Legislativo”. A frase dita em reserva por um parlamentar às vésperas da votação da Reforma Tributária, em julho de 2023, sinaliza que parte da classe política brasileira possui um entendimento claro de que o protagonismo político no país está na barganha de interesses diversos com o governo federal.

Diferentemente de outras democracias, analistas políticos apontam que o Brasil consolidou um modelo único, onde interesses regionais são superiores aos interesses ideológicos e até aos nacionais.

Fraqueza ideológica dos partidos já era observada no Império

Mesmo durante o Segundo Reinado (1840 e 1889), os partidos políticos brasileiros tinham dificuldades em sustentar ideias e valores da mesma forma que as siglas europeias. Na época, o Partido Conservador (Saquaremas) e Partido Liberal (Luzias) possuíam divergências mais focadas na organização do Estado Imperial do que em valores ideológicos. 

A pouca diferença entre as agremiações já era percebida inclusive por observadores políticos da época. “Não há nada mais saquarema do que um luzia no poder", afirmou o então senador pernambucano Antônio Francisco de Paula Holanda Cavalcanti. 

As disputas em torno do Ato Adicional de 1834 evidenciam as divergências entre os partidos. O documento permitiu a criação de assembleias legislativas provinciais, concedendo autonomia para impostos e finanças, mas manteve o controle do presidente da província, indicado pelo governo central. Enquanto os Conservadores defendiam a centralização no Rio de Janeiro, os Liberais apoiavam a descentralização.

Em seu artigo “O Partido Político no Império", para a Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), o cientista político Paulo Bonavides (1925-2020) explicou que ambos os partidos eram compostos pelo mesmo público, pertencendo às mesmas elites - especialmente às do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e Rio Grande do Sul - e representando os mesmos interesses agrários quando estavam no governo central.

Estudando as origens dessa fraqueza ideológica, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro “Raízes do Brasil" (Ed. José Olympio, 1936), observou que o costume de misturar interesses públicos com interesses privados expõe a sobreposição do “elemento emotivo sobre o elemento racional” na sociedade brasileira. Para o autor, a “inadaptação” do brasileiro em aceitar “ideais teóricos” explica a pouca consistência dos partidos.

Buarque afirmou que a falta de verdadeiros partidos não é a causa da dificuldade do país em se adaptar a um regime democrático, como alguns supõem, mas sim um sintoma dessa própria inadaptação.

Ele também apontou que o brasileiro tem facilidade em defender concepções políticas publicamente. No entanto, o personalismo político – o culto em torno de um líder – acaba sobrepondo os ideais de uma causa.

O sociólogo afirmou que a adesão do país aos formalismos revela uma falta de espontaneidade e que a confiança nas fórmulas teóricas demonstra a pouca inclinação para a especulação. Segundo ele, é possível organizar campanhas, formar facções e até promover motins em torno de uma ideia nobre, mas, na prática, o triunfo de um princípio no Brasil - assim como na América Latina - representa apenas a vitória de um personalismo sobre outro.

Na República, o Federalismo virou a ideologia nacional

Se as preocupações com a burocracia imperial já eram mais importantes do que a ideologia em si, os partidos que assumiram o poder no período Republicano - como o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Republicano Mineiro (PRM) - elegeram o federalismo como nova ideologia nacional. O objetivo das legendas era desfazer o governo central e partilhar o poder entre os novos entes da recém-criada República dos Estados Unidos do Brasil. 

No livro Formação da Federação no Brasil (Companhia Editora Nacional, 1951), o historiador João Camilo de Oliveira Torres (1915-1973) destacou a incoerência entre o princípio federalista clássico e a forma como a classe política pós-Império o aplicou no Brasil. Ele questionou se o país realmente seguiu o princípio federativo, apontando que, para haver uma federação, seria necessário que as unidades tivessem sido originalmente independentes antes de se associarem - o que não ocorreu.

Apesar da confusão conceitual, a descentralização do poder resultou no fortalecimento dos antigos presidentes de estados, atuais governadores dos estados. O historiador explicou que, no plano federal, prevalecia a chamada política dos governadores ou "dos estados".

A estratégia consistia em garantir que os governadores controlassem os votos de suas regiões, tornando-se, assim, os "grandes eleitores" dos presidentes. Como os estados tinham populações e eleitorados distintos, os mais populosos, como Minas Gerais e São Paulo, asseguravam a manutenção do sistema.

Descentralização do poder elevou política coronelista

A descentralização do poder imperial fortaleceu a política municipal e estadual, permitindo que a elite agrária, afetada pela abolição da escravidão, mantivesse grande influência na política local e no financiamento das eleições. Esse cenário favoreceu o surgimento do coronelismo, um sistema em que os chefes locais, especialmente os senhores de terras, trocavam apoio político por benefícios do poder público.

O jurista Victor Nunes Leal, em “Coronelismo, enxada e voto” (1948), define o coronelismo como uma troca de favores entre os chefes locais e o poder público. Com a ampliação do eleitorado pela Constituição de 1891, os senhores de engenho e outros proprietários rurais passaram a controlar os votos de cabresto, garantindo o apoio de trabalhadores rurais em troca de favores e benefícios.

Nunes explicou que os fazendeiros e líderes locais financiavam as eleições, cobrindo custos como documentos, transporte e alimentação, o que incentivava a participação dos trabalhadores rurais. Esse sistema, embora frequentemente associado ao Nordeste, também teve raízes profundas no Sudeste, especialmente em São Paulo, onde a concentração de propriedades cafeeiras consolidou o voto de cabresto.

Segundo o professor Pierre Granjeiro, docente da Universidade Federal do Ceará (UFCE), "essas oligarquias, especialmente as agrárias, firmaram um acordo para controlar a máquina pública, com São Paulo e Minas Gerais alternando a presidência da República".

O pacto, que começou em 1898 com o governo de Campos Sales, perdurou até 1930, quando Getúlio Vargas chegou ao poder. Durante esse período, a alternância de presidentes ligados às oligarquias paulista e mineira se manteve, com o apoio das elites regionais, garantindo a estabilidade política e o controle sobre o governo federal.

"O objetivo principal era manter o poder, com os grupos políticos buscando se revezar no comando do país para assegurar benefícios mútuos", explicou o professor. Esse sistema de alternância refletia a luta pelo controle da máquina pública e a busca por estabilidade política, onde as oligarquias rurais desempenhavam um papel fundamental na manutenção desse equilíbrio de poder.

De Vargas ao regime militar: suspensão dos partidos fortaleceu oligarquias locais

A proibição dos partidos políticos durante o Estado Novo (1937-1945), sob Getúlio Vargas, é vista como um fator que impediu o pleno desenvolvimento do sistema partidário no Brasil. O decreto de 2 de dezembro de 1937 consolidou o poder central de Vargas, extinguindo partidos como o PCB, o PSD e o PRP, sob a alegação de que não possuíam conteúdo programático nacional. Essa medida, em parte, foi uma resposta à Intentona Comunista de 1935, liderada por Luís Carlos Prestes, que buscava implementar o comunismo no país.

Apesar de enfraquecer os partidos regionais, o Estado Novo não significou o fim da influência das oligarquias, mas uma reconfiguração de seu papel. Vargas nomeou interventores federais para governar os estados, substituindo os antigos governadores, e muitos desses interventores estavam ligados às elites locais. O modelo econômico adotado por Vargas favoreceu grandes grupos econômicos, principalmente nos setores industrial e agrícola, fortalecendo ainda mais as oligarquias. Embora tenha enfraquecido o coronelismo tradicional, Vargas criou uma forma de "coronelismo de novo tipo", em que as elites locais passaram a depender diretamente do governo federal.

Com o fim do Estado Novo e a transição para a democracia em 1945, os partidos políticos foram restaurados. Mas, em 1964, o regime militar extinguiu as legendas e instaurou o bipartidarismo, criando o MDB e a Arena. Embora o regime fosse centralizador, ele não rompeu com as oligarquias regionais, mas as incorporou ao novo sistema político. No Nordeste, por exemplo, famílias tradicionais - como os Sarney e Magalhães - mantiveram o controle político, agora sob a Arena.

O regime militar também adotou medidas que fortaleceram as oligarquias, como o "Pacote de Abril" de 1977, que garantiu maior representação para as regiões menos populosas, como o Norte e o Nordeste, no Congresso. Além disso, o regime incentivou a produção agrícola voltada para a exportação, beneficiando grandes latifundiários e oligarquias agrárias, como no governo Vargas. A medida modernizou a agricultura, mas também consolidou o poder das elites agrárias e fortaleceu a lógica do latifúndio.

CF de 1988 permitiu que partido político "virasse negócio" 

A Constituição de 1988 contribuiu para o fortalecimento dos partidos políticos no Brasil. O cientista político Adriano Cerqueira, do Ibmec, destaca que a exigência de candidatura registrada em legendas partidárias foi um dos fatores que consolidaram o multipartidarismo no país. A diversidade de elites regionais, somada ao voto proporcional, favoreceu essa tendência histórica.

Cerqueira também aponta a ascensão do presidencialismo de coalizão, em que o presidente precisa construir alianças para garantir governabilidade, fortaleceu partidos de diferentes ideologias, incluindo o "Centrão". Esse modelo levou à formação de coalizões para a aprovação de propostas, sem a necessidade de uma maioria no Congresso, como ocorre no parlamentarismo.

O advogado constitucionalista André Marsiglia critica o grande número de partidos políticos no Brasil, afirmando que isso compromete a qualidade do debate político. Segundo ele, a elasticidade partidária, permitida pela Constituição, transformou o ambiente político em um "balcão de negócios", enfraquecendo o campo das ideias. Marsiglia aponta que muitos partidos funcionam sem identidade ou ideologia definida, focando apenas em negociações pragmáticas.

Essa flexibilidade partidária, de acordo com Marsiglia, criou um cenário onde a política se tornou um espaço de negociações em vez de um fórum para o debate de ideias, resultando em um ambiente político marcado pela busca de vantagens e alianças, mais do que por discussões de conteúdo ideológico.

Presidencialismo de coalizão fortaleceu o Centrão

Com a primeira eleição geral após o regime militar, as oligarquias regionais já estavam instaladas nos novos partidos políticos e consolidaram o que a ciência política classifica como “presidencialismo de coalizão". Esse sistema caracteriza-se pela dependência do presidente da República de uma união de partidos para sustentar seu governo, em vez de uma base política sólida que o apoie de forma independente.

O presidencialismo de coalizão se tornou uma característica marcante da política brasileira, onde a governabilidade é garantida por alianças partidárias em vez de uma forte maioria em torno de um único partido.

No pós-regime militar, o poder do chefe do Executivo esteve sempre à mercê da vontade dos partidos que compunham sua base de apoio. O impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, em 1992, foi o primeiro grande teste de força desse conceito político. Collor, então filiado ao PRN, não conseguiu formar uma base sólida no Congresso Nacional, composto por 19 partidos, o que dificultou sua capacidade de resistir aos escândalos de corrupção que marcaram sua gestão e resultaram em seu afastamento do cargo.

A lição do governo Collor foi assimilada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que, ao longo de seus dois mandatos, formou uma coalizão robusta composta por seu partido e outros como PMDB, PFL, PTB, PPB e PL, alcançando o apoio de 400 deputados. Essa aliança política foi essencial para garantir a governabilidade e a aprovação de reformas durante seu governo, consolidando o modelo de presidencialismo de coalizão como um componente central da política brasileira.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) também se inseriu nesse modelo, embora com uma base mais modesta no início de seu primeiro mandato. Com 214 deputados, Lula construiu uma coalizão maior no segundo mandato, contando com o apoio de 15 partidos, o que ampliou sua base para 336 deputados. A ampliação dessa base política foi crucial para a estabilidade de seu governo - principalmente após o escândalo de corrupção do mensalão -, mas também refletiu as complexidades e as negociações inerentes ao presidencialismo de coalizão.

A sucessora de Lula, Dilma Rousseff (PT), iniciou seu governo com uma base ainda mais supostamente mais sólida, com 351 deputados federais. No entanto, seu segundo mandato foi marcado pela desagregação dessa base e pela crise econômica que o Brasil atravessava, o que culminou em sua impeachment em 2016.

O governo de Michel Temer (MDB), que assumiu após o impeachment de Dilma, procurou reorganizar a relação entre o Executivo e o Legislativo, distribuindo cargos para garantir apoio parlamentar. Esse movimento resultou em uma base de 400 deputados, que foi fundamental para a aprovação de reformas estruturantes, como a PEC 55 e a reforma trabalhista de 2017.

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), inicialmente no PSL, seguiu o mesmo caminho e firmou acordos com diversos partidos para garantir a governabilidade. Sua base inicial de 317 deputados federais foi ampliada ao longo de sua gestão, chegando a cerca de 380 parlamentares, dependendo da temática em questão.

Esse padrão de governabilidade baseado em coalizões partidárias, que se tornou uma constante desde o fim do regime militar, continua a ser uma característica marcante da política brasileira, refletindo a complexa dinâmica entre o Executivo e o Legislativo no país.

Mudança no pagamento de emendas uniu o Centrão e mudou relação entre poderes

A mudança no sistema de barganhas ocorrida em 2015 é vista por cientistas políticos como peça fundamental para se compreender o que o Centrão se tornou hoje. Antes do impeachment de Dilma, os parlamentares aprovaram uma Proposta de Emenda à Constituição que instituiu o pagamento impositivo das emendas parlamentares. 

Aliado ao enfraquecimento do Palácio do Planalto, os políticos entenderam que o Legislativo necessitava de uma participação maior dentro do Orçamento - o que resolveria duas situações: a dependência do Congresso em relação ao Executivo e a garantia do envio de recursos para suas bases eleitorais. Passada quase uma década da aprovação da Emenda Constitucional 86, o montante de recursos para emendas saltou de R$ 6,14 bilhões para R$ 44,67 bilhões em 2024. 

Para o cientista político Juan Carlos Arruda, CEO do Ranking dos Políticos, o novo cenário político proporcionou ao Centrão um poder de barganha política inédito, o que potencializou sua capacidade de influenciar as pautas do Legislativo.

"Isso criou um ambiente em que os partidos de centro, que já se organizavam de forma pragmática, passaram a ter um instrumento muito mais poderoso de barganha política. Com o impeachment e o enfraquecimento dos governos posteriores, esse bloco encontrou ainda mais espaço para se estabelecer como uma força indispensável, tanto para aprovar como para barrar pautas no Congresso", destacou Arruda.

O cientista político acrescenta que as emendas impositivas seguem sendo "um pilar central desse poder, funcionando como moeda de troca em negociações políticas", o que reforça a posição estratégica do grupo no equilíbrio entre Executivo e Legislativo. "Isso, aliado à capacidade de adaptação do Centrão às conjunturas políticas, o transformou na principal força que regula o equilíbrio entre os poderes atualmente", explicou.

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