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A participação de uma embaixadora do Ministério das Relações Exteriores do governo brasileiro na posse do ditador venezuelano, Nicolás Maduro, está sendo interpretada como o reconhecimento do resultado das eleições no país, apesar da comprovação da fraude generalizada no pleito. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) será representado pela embaixadora do Brasil em Caracas, Glivânia Maria de Oliveira. A informação foi confirmada por fontes do Itamaraty consultadas pela Gazeta do Povo.
A reportagem também apurou que Lula não deve comparecer à posse de Donald Trump, nos Estados Unidos, mas o Itamaraty não divulgou quem representará o Brasil na cerimônia.
A solenidade na Venezuela, que ocorre no próximo dia 10, marca o início do terceiro mandato do ditador Maduro, que está há mais de uma década no poder. Em meio a uma série de manobras eleitorais e desclassificações arbitrárias de opositores para concorrer ao pleito, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela – que é controlado pelo regime de Maduro – declarou o chavista reeleito. A oposição venezuelana apresentou cópias de boletins de urna em quantidade suficiente para comprovar que Maduro foi derrotado e o resultado foi rechaçado pelas democracias do Ocidente.
Desde o anúncio divulgado pelo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela, o governo brasileiro não se manifestou oficialmente sobre o resultado das eleições. Fontes do Itamaraty, no entanto, avaliam que a decisão pelo envio ao evento de uma representante "considerada de baixo escalão" (em comparação o presidente, ao chanceler ou ao assessor especial de Lula), segundo a pasta, é justificado pelo não reconhecimento do governo brasileiro do resultado das eleições presidenciais venezuelanas.
Analistas e políticos ouvidos pela reportagem, refutam a posição da pasta. Embora não tenha tido uma declaração oficial do Planalto ou Itamaraty sobre o processo venezuelano, especialistas avaliam que a decisão do governo de Lula pode reflete um reconhecimento do resultado que deu a Maduro um novo mandato.
O presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, deputado Lucas Redecker (PSDB-RS) avalia que, “se o Brasil enviar qualquer representante à posse do Maduro, o governo brasileiro estará reconhecendo a sua eleição”. De acordo com o senador e ex-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS), a decisão do governo Lula em enviar um representante para a solenidade, coloca o mandatário como um “admirador de tiranos”.
“Enquanto as democracias do mundo reconheceram a vitória de Edmundo Gonzales (candidato opositor que está exilado), o governo Lula resolveu prestigiar o tiranete cucaracho que se mantém no poder pelo aparelhamento institucional. Ao prestigiar um déspota, o governo Lula valida a tirania e mostra que, na essência, despreza os princípios democráticos”, avalia Mourão.
Ainda que não tenha tido uma manifestação oficial do governo, o cientista político Elton Gomes, professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e pesquisador sênior do Instituto de Pesquisas Estratégicas em Relações Internacionais e Diplomacia (IPERID) explica que, do ponto vista do Direito Internacional Público, se o Brasil envia um representante oficial, ainda que não seja uma autoridade eleita do Poder Executivo ou o chanceler, o reconhecimento do resultado é demonstrado “na prática”.
“A embaixadora tem essa característica de ser uma representante devidamente creditada nos termos do direito internacional. Portanto, há o reconhecimento na prática do resultado das eleições venezuelanas”, disse Gomes.
Para Anne Dias, advogada e diretora do Programa de Núcleos da organização não governamental Ladies of Liberty Alliance (entidade internacional que reúne mulheres que lutam por liberdades individuais e livre mercado) a presença de um representante brasileiro neste evento é um insulto à luta por democracia e liberdade. “É um completo absurdo que o Brasil, com sua histórica defesa dos valores democráticos, legitime com sua presença um regime autoritário e criminoso. Tal postura só nos distancia de nosso compromisso com a liberdade e os direitos fundamentais”, disse Anne.
A deputada Julia Zanatta (PL-SC) reforça a oposição à decisão do governo Lula. “Ao agir assim, o governo brasileiro não apenas valida a tirania que sufoca a liberdade, mas também destrói os princípios democráticos que as forças ligadas ao Foro de São Paulo alegam defender, mas utilizam apenas como ferramenta para consolidar o poder. É o Brasil deixando evidente o triste rumo que estamos trilhando: um afastamento cada vez maior do mundo civilizado e livre”, disse Zanatta.
Maduro tomará posse após manobras, prisões e fraudes nas eleições
As eleições presidenciais na Venezuela ocorreram no dia 28 de julho e o processo foi marcado por uma série de fraudes orquestradas pelo regime chavista de Maduro. Após o anúncio da vitória do ditador venezuelano, a oposição do país, que foi representada nas eleições pelo diplomata Edmundo González Urrutia, contestou o resultado do pleito. A situação deu início à uma crise política no país. Enquanto o regime de Maduro solicitava prazos para validar a alegada vitória de Maduro, a oposição tornou públicas as atas eleitorais, que apontavam a vitória de Urrutia.
O Brasil, além de ter sido um dos países que pressionou o regime chavista a realizar eleições presidenciais com ampla concorrência e de forma transparente, atuou ao lado de Maduro para viabilizar a realização do processo. Após as acusações de fraude, o governo brasileiro condicionou o reconhecimento dos resultados à divulgação das atas eleitorais que comprovassem a vitória de Maduro, mas os documentos nunca foram divulgados.
Para os analistas e parlamentares consultados pela Gazeta do Povo, o envio de uma representante do governo à posse demonstram um consentimento com o regime de Maduro. O deputado Lucas Redecker entende que o envio da Embaixadora em Caracas será um gesto de reconhecimento de que Maduro ganhou. Para o parlamentar, isso deixará o Brasil em uma “situação bastante desconfortável”. "O governo impôs como condição (para o reconhecimento) a apresentação das atas eleitorais”, pontuou Redecker.
As ações de Maduro se estendem também para a repressão dos venezuelanos. Segundo dados do próprio regime chavista, cerca de 2,4 mil pessoas foram detidas após as eleições. Até o dia 31 de dezembro de 2024, pelo menos 1.794 pessoas permanecem detidas no país como presos políticos, de acordo com dados da ONG Foro Penal. “A Venezuela hoje é um país sufocado por repressão. Milhares de prisioneiros políticos, como a ativista Maria Oropeza, estão detidos arbitrariamente por se oporem ao regime. Oropeza, presa desde 6 de agosto, é apenas um exemplo das inúmeras vítimas dessa ditadura que oprime seus cidadãos, cerceia liberdades e silencia vozes dissidentes”, lembra a advogada Anne Dias.
Na avaliação do deputado Alfredo Gaspar (União-AL), o governo do Brasil “mantém os olhos fechados para as arbitrariedades do ditador Maduro”. “Não é surpresa que essa atitude de envio de representação diplomática à posse de um governo ilegítimo vá acontecer. É o deslinde natural da omissão proposital do atual governo Lula no cenário do caos instalado na Venezuela”, afirma o deputado.
Lula tem sido resistente em romper relações com a Venezuela
O presidente Lula possui uma aproximação histórica com o chavismo e tem sido relutante em cortar os laços com a Venezuela. Quando retornou ao Planalto para seu terceiro mandato, saiu em defesa de Maduro em diversas oportunidades e chegou a dizer que o regime ditatorial de Maduro não passava de uma "narrativa".
Após a comprovada fraude eleitoral que reelegeu Maduro para um terceiro mandato, o governo brasileiro evitou condenações ao ditador. O governo brasileiro adotou até agora o que é conhecido nas relações internacionais como "reconhecimento tácito", caracterizado pela ausência de uma manifestação pública de reconhecimento ou repúdio.
Ou seja, as relações entre os dois países são mantidas sem a necessidade de reconhecer a legitimidade de Maduro como presidente da Venezuela, mas tendo o entendimento de que este é governo que representa o país. A decisão foi tomada sob a justificativa de que um rompimento com o país traria consequências para o Brasil, que se tornou um dos principais destinos de venezuelanos refugiados que deixam o país.
A presença da embaixadora na solenidade de posse de Maduro é classificada pelo Itamaraty com o mesmo objetivo, de manter o laço diplomático. O envio da embaixadora ao invés da ida de Lula, de seu vice Geraldo Alckmin (PSB), do chanceler Mauro Vieira, ou do assessor especial Celso Amorim, significa uma baixa importância do relacionamento, segundo uma fonte do Ministério das Relações Exteriores que pediu para não ter o nome revelado por não poder falar oficialmente sobre o assunto. Em outubro do ano passado, o governo Lula viveu impasse semelhante com outra ditadura latino-americana, a Nicarágua.
O regime de Daniel Ortega decidiu pela expulsão do embaixador brasileiro na Nicarágua, Breno da Costa, após o diplomata não comparecer ao evento de aniversário da Revolução Sandinista – marco da história da esquerda na Nicarágua e que levou Daniel Ortega ao poder. Em resposta, o Brasil também expulsou a embaixadora da Nicarágua, Fúlvia Patricia Castro Matu. As expulsões levaram ao rompimento diplomático entre os dois países.
Ainda que as situações sejam parecidas, o fato de a Venezuela ser um vizinho limítrofe e ter uma população considerável causa um receio maior no governo brasileiro. Lula e o chanceler Mauro Vieira, já descartaram a possibilidade de romper com Caracas.
Lula também não vai na posse de Trump, mas representante não foi definido
De modo geral, em se tratando de posse presidencial de países considerados "de mais alto nível” para um governo, o comum é que o presidente da República ou, ao menos, o vice-presidente participem das solenidades. Ministros ou até mesmo o chanceler, também são escalados para representar governos em posses presidenciais.
A reportagem apurou que Lula também não vai na posse do presidente eleito dos Estados Unidos Donald Trump, do Partido Republicano, de direita. Ainda não foi divulgado pelo Itamaraty quem representará o Brasil na cerimônia. Lula chegou a elogiar o processo democrático que elegeu o americano mas não o felicitou pela vitória.
O presidente Lula, por outro lado, marcou presença na cerimônia da presidente eleita no México, Claudia Sheinbaum, demonstrando a afinidade entre os dois líderes. No último ano, o mandatário escalou o chanceler Mauro Vieira para a posse de Javier Milei na Argentina. Ainda que o libertário seja um desafeto de Lula, a presença de Vieira reflete o grau de importância que o Brasil enxerga o relacionamento com Buenos Aires.
Para Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington e em Londres, o envio de Glivânia reforça ainda o esfriamento das relações entre os dois países. “O Brasil não está mandando um ministro ou o presidente, a escolha de mandar um nível mais baixo reflete o problema que Lula e Maduro tiveram nos últimos meses”, pontua.
Na análise de Vito Villar, analista de política internacional da BMJ, a designação da embaixadora para a solenidade na Venezuela demonstra o desejo de Lula em manter o relacionamento com o país. “Embora essas relações estejam estremecidas, ainda tem uma certa formalidade diplomática”, pontua.
A relação entre os dois países chegou ao seu pior nível nos últimos meses, após a crise política deflagrada pela fraude eleitoral que reelegeu Maduro para seu terceiro mandato. O governo brasileiro atuou para intermediar a situação em Caracas pela via diplomática, mas não obteve sucesso. O cientista político Elton Gomes, professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI) relembra que o envolvimento do Brasil trouxe ainda consequências.
“Quando ficou configurada, de forma praticamente inequívoca, a fraude eleitoral, o Brasil tentou agir como intermediador, buscando uma solução negociada. Falou-se em fazer um fantasmagórico segundo turno não reconhecido nem pela oposição venezuelana, nem pelo autocrata Maduro. Isso trouxe para o Brasil um prejuízo para a imagem de líder da América do Sul e desgastou a relação não só com a Venezuela, mas com outros países vizinhos que até retiraram as suas representações diplomáticas do país”, disse Gomes ao se referir a Argentina, Chile e Uruguai.