Ouça este conteúdo
A decisão do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de enviar uma representante para a posse de Nicolás Maduro reafirma o compromisso do petista em preservar os laços com o regime chavista. Na solenidade desta sexta-feira (10), o mandatário foi representado pela embaixadora do Brasil em Caracas, Glivânia Maria de Oliveira. A decisão também reforça o reconhecimento brasileiro de Maduro como presidente da Venezuela.
A representação brasileira na solenidade acontece em um momento em que Lula é pressionado a adotar uma postura condenatória contra Maduro, que foi reeleito após uma série de manobras para se manter no poder.
Os Estados Unidos, que cortam relações com a Venezuela, aumentaram a recompensa por informações que possibilitem a prisão de Maduro para US$ 25 milhões (R$ 150 milhões). A União Europeia e a Grã-Bretanha anunciaram sanções individuais a 15 altos funcionários do governo venezuelano.
Ainda que o Brasil não tenha se manifestado oficialmente sobre o pleito no país, o envio da embaixadora para a posse é visto como um ato do Brasil de reconhecimento explícito da "eleição" do ditador.
“A presença de uma autoridade brasileira legitima um processo eleitoral flagrantemente fraudulento, além de destoar dos demais países latino-americanos, que, em sua maioria, não reconhecem a fraude de Maduro", avalia Cezar Roedel, doutor em filosofia pela PUCRS e analista internacional.
Apesar da violação aos direitos humanos e à democracia, e da crise institucional causada por Maduro no país, a chancelaria brasileira já descartou um possível rompimento com Caracas.
Cortar laços diplomáticos com uma nação é um ato de demonstração de insatisfação e desaprovação com aquele país, seja pela sua conduta como Estado ou pelas ações de seu governante. Um rompimento, contudo, já foi descartado pelo chanceler Mauro Vieira e pelo assessor para assuntos especiais de Lula, Celso Amorim. O governo Lula tem um histórico de apoio ao regime chavista, ofuscado apenas recentemente pela decisão do brasileiro de vetar momentaneamente a entrada da Venezuela no bloco de países dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã).
"Ainda que as circunstâncias imponham uma inevitável redução do dinamismo do relacionamento bilateral, isso não significa, de forma alguma, que o Brasil deve romper relações ou algo dessa natureza com a Venezuela. Diálogo e negociação, e não isolamento, são a chave para qualquer solução pacífica na Venezuela", já disse o chanceler Vieira.
Entre as alegadas justificativas também estão o receio de dar início à uma crise migratória, já que a Venezuela é um país limítrofe e o Brasil é o destino de milhões de venezuelanos que deixam o país em busca de condições melhores de vida. A decisão, coloca o Brasil ao lado de regimes como Rússia e Irã, que reconheceram e celebraram a eleição que deram a Maduro um terceiro mandato.
Na avaliação de Roedel, a presença do Brasil no evento é um contrassenso em termos democráticos e uma "humilhação perante os parceiros regionais e o mundo". O analista avalia ainda, que a designação da embaixadora responde à aliança de Lula ao chamado "Sul Global", que tem países como Rússia e China na ponteira. "Creio que o recado seja evitar o rompimento com a aliança russo-chinesa, que praticamente comprou a soberania venezuelana, da qual Maduro é apenas um fantoche", pontua.
Rompimento com a Venezuela não é possibilidade para o governo Lula
O governo brasileiro afirmava vir adotando o chamado "reconhecimento tácito" em relação à Venezuela, caracterizado pela ausência de uma manifestação pública de reconhecimento ou repúdio sobre um governo. Mesmo com o envio da embaixadora à posse de Maduro nesta sexta-feira, o Itamaraty continua insistindo nesse tipo de narrativa. O discurso agora é que o envio de uma diplomata ao invés do próprio Lula ou do vice-presidente Geraldo Alckmin é um reconhecimento tácito e não explícito do resultado fraudulento do processo eleitoral.
Na visão do Itamaraty, as relações entre os dois países podem ser mantidas sem a necessidade de reconhecer formalmente a legitimidade de Maduro como presidente da Venezuela, mas tendo o entendimento de que este é governo que representa o país.
Essa foi a narrativa encontrada pelo governo Lula para manter relações com o país. Uma outra opção seria o rompimento das relações com a Venezuela, retirando o corpo diplomático brasileiro de Caracas. Este foi o caminho adotado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2019, quando considerou "ilegítimo" o novo mandato de Maduro. Em sua decisão, Bolsonaro também reconheceu Juan Guaidó, candidato da oposição, como presidente legítimo da Venezuela.
A postura de Bolsonaro, é condenada pela atual gestão petista. “A solução precisa ser construída pelos próprios venezuelanos e não imposta de fora, com mais sanções e isolamento. Isso nós já vimos que não funciona. Não podemos repetir os erros que cometemos na época da autoproclamação de Guaidó como presidente”, disse Mauro Vieira em novembro do ano passado, durante Comissão na Câmara dos Deputados. O que o chanceler não menciona é que tampouco a postura de manutenção do diálogo surtiu qualquer efeito sobre a ditadura venezuelana.
Na opinião de diplomatas consultados pela Gazeta do Povo, a posição do governo Lula de dialogar com Maduro vai continuar pois a possibilidade de reconhecer Edmundo González Urrutia, apontado como verdadeiro vitorioso do último pleito venezuelano, como presidente daquele país é praticamente descartada.
No caminho oposto, países como os Estados Unidos, Argentina, Espanha e Paraguai, reconheceram o Urrutia como líder venezuelano e romperam relações com a Venezuela. Até mesmo o Chile, governado pelo presidente de esquerda Gabriel Boric adotou o mesmo caminho. Boric disse: “Eu pessoalmente, e esta é a postura do governo do Chile, não tenho dúvidas de que o regime de Maduro tentou cometer uma fraude”.
Na avaliação do diplomata aposentado Paulo Roberto de Almeida o silêncio do Brasil não é bem visto. “A situação da Venezuela é caótica e violenta, e o governo brasileiro tem ficado silencioso, quando poderia pelo menos emitir uma opinião, como faz a cada ocasião”, pontua Roberto em referência às notas que, de praxe, são publicadas pela pasta em situações de repercussão internacional.
Itamaraty vê presença de embaixadora na posse de Maduro como contenção de riscos
Para diplomatas do Itamaraty com quem a reportagem conversou em carácter reservado, a presença da embaixadora Glivânia na cerimônia de posse do ditador venezuelano cumpre o papel de manter as relações com o país, mas também envia um alegado recado de insatisfação. O envio de um embaixador para a posse de um presidente de um país vizinho é visto como uma representatividade de baixo nível.
Nessas solenidades, é comum que o próprio presidente, seu vice, ministros ou o chanceler, sejam escalados para representar seu respectivo país. O status da autoridade enviada representa o nível de relacionamento desejado com aquela nação ou o grau de importância da relação bilateral entre elas.
No último ano, por exemplo, o presidente Lula marcou presença na cerimônia de posse da presidente eleita no México, a esquerdista Claudia Sheinbaum, demonstrando a afinidade entre os dois líderes. O mandatário, por outro lado, escalou o chanceler Mauro Vieira para prestigiar a posse de Javier Milei na Argentina. A escolha demonstra que, ainda que o libertário seja um desafeto de Lula, a relação com Buenos Aires é vista como prioritária para o governo brasileiro.
Para diplomatas do Ministério das Relações Exteriores, o envio de Glivânia tem a intenção de mandar o recado de que as relações, ainda que estremecidas, serão mantidas. “Parece-me que o grau de intensidade das relações vai depender do comportamento das autoridades venezuelanas em termos como promoção do diálogo interno, direitos humanos, Estado de Direito”, informou o membro da pasta à reportagem em condição de sigilo.
PT e MST reconheceram vitória de Maduro e também enviam representantes para a posse
Outro ponto de tensão que pesou sobre Lula foi o reconhecimento do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de Nicolas Maduro como vitorioso do pleito. O PT por ser o partido do presidente, e o MST uma organização ligada à legenda. Na quinta-feira (9), as duas organizações saíram em defesa de Maduro.
“Aos venezuelanos que nos acompanham, nosso mais profundo e caloroso abraço fraterno de irmãos e irmãs de toda a América Latina e Caribe, nesse momento histórico em que o povo venezuelano toma em suas mãos sua soberania, sua libertação, com a posse do presidente Nicolás Maduro Moros”, disse Mônica Valente, dirigente do PT, durante reunião do Foro de São Paulo em Caracas.
Membros do MST também foram ao país para acompanhar a posse do ditador e chegaram a participar de uma motociata em apoio ao regime chavista. Ainda nesta semana, a organização publicou e assinou uma carta endereçada a Lula solicitando que o petista reconheça a “legitimidade” de Maduro.
"O reconhecimento dessa eleição não apenas reafirma nosso compromisso com o respeito à soberania venezuelana, mas também fortalece os laços de amizade e cooperação que historicamente unem nossas duas nações", afirma um dos trechos do documento.
Lula atuou pela "normalidade" na Venezuela
Lula possui uma relação histórica com o chavismo e atuou para promover um processo eleitoral na Venezuela com a intenção de retomar a normalidade democrática no país. Os esforços, contudo, foram em vão. O petista somente deu um passo atrás na defesa ao regime chavista após o dia 28 de julho, data em que ocorreu o pleito, quando o regime de Maduro o declarou vitorioso sem a devida comprovação e deu início a uma perseguição contra opositores e manifestantes.
A ausência de reconhecimento por parte do petista causou insatisfação ao ditador venezuelano, que o tinha como um aliado. A relação entre os dois líderes ficou ainda mais conturbada após o Brasil se opor à entrada da Venezuela nos Brics. A decisão foi adotada em um sinal de desaprovação à conduta adotada por Maduro em seu país, de acordo com o chanceler de facto do Brasil, Celso Amorim.
“O Brasil concordou com Cuba e não concordou com a Venezuela porque existe esse mal estar [nas relações]. Eu espero que possa se dissolver a medida que as coisas lá se normalizem, os direitos humanos sejam respeitados, as eleições transcorram com normalidade, as atas apareçam, enfim, coisas desse tipo”, disse Amorim, que é apontado como principal articulador da política externa de Lula.
Na avaliação de Rubens Ricupero, diplomata aposentado e ex-embaixador do Brasil em Washington, foi uma ação acertada do governo ter diminuído o engajamento com Caracas. “Teria sido um erro se o governo de Brasília tivesse insistido na iniciativa tomada, meses atrás, de favorecer o acordo pelo qual Maduro aceitou realizar eleições. O governo brasileiro fez uma aposta que não deu certo”, analisa Ricupero.
Tensão política no país aumenta, mas Itamaraty mantém silêncio
Às vésperas da solenidade de posse, uma onda de violência se instaurou em Caracas. Nesta quinta-feira (9), o principal nome da oposição no país Marina Corina Machado, que chegou a ser inabilitada a concorrer a cargos políticos na Venezuela, foi presa pelo regime de Maduro.
Enquanto participava de uma manifestação contra Maduro, a comitiva de Corina foi alvejada por tiros e interceptada por forças ligadas ao chavismo no momento em que deixavam o local onde estava sendo realizado um protesto.
Horas depois, opositores disseram que ela tinha sido libertada, mas não antes de ter sido obrigada a gravar vídeos onde afirmava que “estava bem”. Em uma publicação no X, a política tranquilizou seus apoiadores dizendo que já estava refugiada em um local seguro e que segue determinada a lutar pela liberdade na Venezuela.
Representantes do governo brasileiro disseram não oficialmente à emissora de TV CNN Brasil que o Itamaraty teria considerado não enviar a embaixadora Glivânia à posse de Maduro por causa do ataque a Maria Corina, mas desistiram da ideia e relativisaram a violência contra a opositora.
Protestos contra o ditador também foram registrados em diversos locais do mundo, como no Brasil, Madri, Austrália, Malásia, Japão, Bélgica e Holanda. Sob o lema “glória, bravo povo” - um trecho do hino venezuelano - dezenas de venezuelanos se reuniram em lugares simbólicos em várias cidades do mundo para expressar seu apoio ao líder da oposição, que reivindica vitória nas eleições de julho, Edmundo González Urrutia.