Na sabatina a que foi submetido no Senado, o novo procurador-geral da República, Paulo Gustavo Gonet Branco, evitou entrar em controvérsias e embates com senadores de direita e de esquerda. Os primeiros queriam que ele se posicionasse contra o inquérito das fake news e explicasse por que defendeu a inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro. Já a esquerda queria uma defesa irrestrita das cotas e o compromisso com a manutenção do casamento gay.
Com postura serena e palavreado cortês, Gonet não cedeu para nenhum dos lados, mas sempre com o cuidado de não entrar em colisão. Saiu aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e depois, no plenário do Senado, sem revelar, de concreto, o que fará e como vai se guiar no comando da Procuradoria-Geral da República (PGR), que atua como a voz do Ministério Público em todos os casos no Supremo Tribunal Federal (STF).
De certo mesmo, os senadores só confirmaram sua ligação com o ministro Gilmar Mendes, maior patrocinador de sua indicação, e a opção por não se opor a ele nem a Alexandre de Moraes, que também apoiou sua escolha pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Na sabatina, Gonet disse para a direita que, como chefe do Ministério Público, vai defender o papel do órgão nas investigações; desde 2020, o órgão é praticamente ignorado por Alexandre de Moraes nas investigações que conduz contra quem se opõe ao STF. Em nenhum momento, porém, o novo PGR criticou os métodos do ministro – disse que, como não conhecia na integralidade o inquérito das fake news, agiria com “leviandade” se o comentasse qualquer coisa.
“Não me caberia buscar conhecer esse inquérito antes de merecer a confiança de V. Exas. e de ser nomeado pelo presidente da República para o cargo. Portanto, eu lamento, mas eu não tenho informações que me permitissem uma abordagem não leviana, uma abordagem que pudesse ser realmente construtiva e objetiva sobre o assunto”, disse ao senador Rogério Marinho (PL-RN).
Defendeu, de qualquer modo, o direito de o STF abrir uma investigação de ofício. “O Ministério Público é o titular da ação exclusivo – está na Constituição, o senhor conhece bem –, mas, do inquérito, não [...] É possível que o regimento interno de um tribunal diga que delitos contra o tribunal podem ser abertos pelo próprio tribunal”, afirmou a Eduardo Girão (Novo-CE).
Quanto a Bolsonaro, Gonet atenuou seu papel na decisão do Tribunal Superior Eleitoral que declarou a inelegibilidade. “Não condenei o presidente Bolsonaro: eu fiz um parecer que indicava esse resultado como o devido diante das circunstâncias que estavam ali no processo”, disse a Jorge Seif (PL-SC). “Os fatos que foram apurados pareciam se enquadrar, me pareciam estar enquadrados na hipótese prevista na lei; a lei ligava esses fatos com a consequência da inelegibilidade. O que eu fiz foi apenas seguir o que a lei determinava”, afirmou ainda.
Quanto à Lava Jato, que vem sendo destroçada pelo STF, nenhuma palavra. Sobre o combate à corrupção, se limitou ao óbvio: “Todos nós, no Ministério Público, entendemos que o combate à corrupção é uma ação indeclinável do Ministério Público, todos nós estamos de acordo com que esse combate tem que ser feito dentro dos limites e das garantias constitucionais.”
No que toca à liberdade de expressão, cada vez mais limitada pelo STF, Gonet falou mais em abstrato e com exemplos distantes da censura que se tornou comum nos últimos anos, como a proibição de certos conteúdos e remoção perfis incômodos nas redes sociais.
“O Ministério Público da União sempre vai procurar preservar todos os direitos fundamentais e todas as liberdades, mas nós sabemos que os direitos fundamentais muitas vezes entram em atrito com outros valores constitucionais. E aí eles merecem, precisam ser ponderados, saber qual daqueles vai ser o predominante numa determinada situação. A liberdade de expressão, portanto, não é plena. A liberdade de expressão pode e deve ser modulada de acordo com as circunstâncias”, afirmou.
Para a esquerda, Gonet disse que, como jurista, deve sempre respeitar a vontade dos legisladores e as interpretações do STF, perante o qual irá atuar. Disse não ser contra a criminalização da homofobia, mas expressou, de forma implícita, reserva à forma como a conduta se tornou crime, por equiparação ao racismo, via decisão do STF.
“Se vossas excelências, no Parlamento, decidirem tipificar essa conduta como crime, eu acho que está perfeitamente dentro das atribuições constitucionais do nosso Legislativo”, afirmou a Fabiano Contarato (PT-ES).
Quanto ao casamento homoafetivo, disse estar “afeito ao que vossas excelências decidem, ao que o Supremo decide”. “Se o legislador admite a união estável ou que seja o casamento entre pessoas do mesmo sexo, como jurista, é óbvio que eu tenho que admitir isso também”, respondeu ao mesmo parlamentar.
Católico, Gonet disse que não toma a Constituição como Bíblia nem a Bíblia como Constituição. “São dois livros diferentes. Com certeza que os valores bíblicos foram acolhidos, em grande parte, pela nossa Constituição [...] O que eu acho é o seguinte: no espaço público, no espaço técnico, a linguagem tem que ser técnica, os argumentos devem ser formados dentro da linguagem comum do espaço em que está sendo levado a conhecimento”, disse.
Com respostas assim, e aproveitando-se do foco dos senadores em Flávio Dino, sabatinado para o STF na mesma sessão, Gonet conseguiu esquivar-se de temas indigestos e embates ideológicos.
Ainda não se sabe se, como e em que medida o novo procurador-geral vai tentar conter excessos de Moraes nas investigações contra a nova direita ligada a Bolsonaro. Em 2019, o ex-presidente chegou a cogitá-lo para a PGR, mas optou por Augusto Aras, muito em razão dos sinais deste de que não atrapalharia o governo nem usaria o cargo para persegui-lo.
Ligação antiga com Gilmar Mendes preocupa ala da esquerda da PGR
No mundo político e jurídico, a maior certeza sobre Gonet recai sobre a ligação de Gonet com Gilmar Mendes, hoje o ministro do STF mais influente nos bastidores da política, seguido por Alexandre de Moraes. A relação com o primeiro é antiga e amplamente reconhecida no Judiciário e na academia.
Em 1998, os dois fundaram o Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, o IDP, que logo tornou-se referência no ensino do direito, com professores que também são advogados, juízes e procuradores da elite no Judiciário em Brasília e em São Paulo.
Gonet também é coautor, ao lado de Gilmar Mendes, de um livro obrigatório nas faculdades de direito: o “Curso de Direito Constitucional”; eles também assinam juntos inúmeros artigos jurídicos sobre os temas mais palpitantes na área.
Eles deixaram de ser sócios em 2017, mas continuam dando aula na faculdade que criaram, sobretudo para formar discípulos em cursos de mestrado e doutorado. Os dois, por sua vez, foram alunos na UnB e também sócios no IDP de Inocêncio Mártires Coelho, o último procurador-geral do regime militar, nomeado pelo presidente-general João Figueiredo.
Por causa desse passado, Gilmar e Gonet sempre sofreram forte oposição dentro da PGR por um amplo grupo de esquerda, herdeiros ideológicos de Sepúlveda Pertence, o sucessor de Coelho, nomeado pelo presidente José Sarney.
Nos anos de Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, esse grupo foi escanteado do comando da PGR. Mas nos primeiros governos do PT, eles passaram a dominar a instituição, principalmente por convencer Lula e a ex-presidente Dilma Rousseff a seguir a lista tríplice, votação interna de todos os membros do Ministério Público para indicar nomes. Nesse período, foram alçados ao comando da PGR Claudio Fonteles (procurador-geral entre 2003 e 2005), Antonio Fernando de Souza (2005-2009), Roberto Gurgel (2009-2013) e Rodrigo Janot (2013-2017).
Desses, o mais que mais entrou em choque com Gilmar Mendes foi Janot, que admitiu, em livro, ter ido armado para o STF para atirar no ministro – este, por sua vez, volta e meia o ataca – já declarou que Janot conduzia a Lava Jato “embriagado”, “e por isso fez tantas estripulias”.
O grupo de esquerda da PGR, ainda influente, agora teme que Gilmar Mendes domine o órgão, por meio de Gonet. Alguns subprocuradores mais próximos deste, no entanto, dizem que ele tem estatura própria e independência para atuar; que, apesar da proximidade, o ministro não poderia constrangê-lo nem pressioná-lo a agir de um modo ou de outro.
Na sabatina, Gonet reagiu quando Gilmar Mendes foi criticado. Alessandro Vieira (MDB-SE) disse que o ministro é “aparentemente carente do mínimo pudor ético”.
“Um cidadão que não vê o menor constrangimento em juntar no mesmo festim investigados, julgadores e partes interessadas em processos em curso na Corte Superior; um servidor público que se tornou milionário por obra e graça de uma atuação paralela como empresário na seara de educação, condição que a Lei Orgânica da Magistratura repudia; uma figura que continuamente se coloca, de forma velada ou ostensiva, como parte interessada em questões que são de competência do Executivo ou do Legislativo; que não tem pejo de usar a força do cargo de ministro para pressionar parlamentares, inclusive desta Casa, conforme seus interesses particulares ou de terceiros”, disse Vieira, dirigindo-se a Gonet.
Em resposta, Gonet defendeu o ex-sócio. “O ministro Gilmar Mendes é um nome honrado, é um nome de pessoa dedicada ao bem e é uma pessoa que não merece especulações totalmente desfundamentadas sobre o seu modo de agir. Posso dar o meu testemunho da lisura do comportamento dele durante todo o período em que estive no IDP como sócio e agora como professor”, respondeu a Vieira.
Dentro do Ministério Público Federal, que irá comandar a partir de agora, Gonet é descrito como “capacitado, muito competente e ponderado”, nas palavras de um procurador que transita bem na cúpula do órgão. “Muito estudioso, técnico, legalista e discreto”, diz outro, que apesar de não ser próximo, conhece seu trabalho na instituição.
Embora tenha se evadido de polêmicas, à direita e à esquerda, Gonet foi aprovado por ampla margem, tanto na CCJ, quanto no plenário do Senado. Na comissão, obteve 24 votos a favor e só três contrários, vitória bem mais larga que a obtida por Flávio Dino, com 17 pró e 10 contra. Entre os 81 senadores, Gonet teve 65 votos favoráveis e 11 contrários; Dino, 47 e 31.
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